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Proc. nº 612/93
2ª Secção -Plen. Rel. Cons. Sousa Brito
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I
RELATÓRIO
1. O Procurador-Geral Adjunto em exercício no Tribunal Constitucional veio requerer em 29 de Outubro de 1993 que este Tribunal apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do segmento final da norma ínsita no artigo 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, na parte em que permite ao construtor ser dispensado, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar nas condições aí impostas, da consideração e previsão de áreas de estacionamento, previstas na mesma norma.
Este pedido foi formulado ao abrigo dos artigos
281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, invocando-se que 'tal segmento normativo foi julgado inconstitucional, por violação dos artigos 106º, nºs 1 e 2, e 167º, alínea o), da primitiva versão da Constituição, através dos Acordãos nºs. 277/86 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1986, e no 8º volume dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a fls. 383 e seguintes), 313/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Fevereiro de 1993) e 520/93, de 26 de Outubro
[este inédito]'.
Com o pedido foram juntas cópias destes três acórdãos.
2. Ordenada a notificação do Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º da Lei do Tribunal Constitucional, não foi recebida qualquer resposta da entidade autora do diploma, no prazo legal.
3. Por não haver razões que a tal obstem, passa-se a conhecer do objecto do pedido.
II
FUNDAMENTAÇÃO
4. Dispõe o artigo 12º da Portaria nº 274/77, de
19 de Maio, emitida pelo Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção, que aprovou o Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, sob a epígrafe 'estacionamentos e garagens':
'Em todas as zonas deverá ser considerada uma área para estacionamento equivalente a 12,5 m2 de área útil de estacionamento por fogo.
Para instalações industriais deverá ser prevista para tal fim uma
área a utilizar pelo pessoal igual a um décimo da área coberta total de pavimentos.
Para instalações terciárias, grandes armazéns e demais locais abertos ao público, uma área de estacionamento equivalente a um quarto de área
útil da edificação.
Para salas de espectáculo e locais de reunião deverão prever-se
25m2 de área de estacionamento por cada vinte e cinco lugares.
Para hotéis deverão prever-se, para a mesma finalidade, 25 m2 por cada cinco quartos de hóspedes.
Caso o município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições, o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar, mediante aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário médio estimado para a construção'.
5. O segmento final deste artigo ('Caso o município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições, o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar, mediante aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário médio estimado para a construção') foi julgado inconstitucional em decisões das duas secções do Tribunal Constitucional, destacando-se, além dos três acórdãos invocados no pedido, o Acórdão nº 836/93, ainda inédito.
Nestas decisões reiteradas tem-se considerado que
é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal, tendo o referido encargo de compensação a natureza de imposto. Pode ler-se no primeiro daqueles Acórdãos, o nº 277/86:
'Nos casos em que a actividade do Estado se traduziria na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares - como se poderia querer ver na hipótese dos autos -, já recentemente se entendeu que só haveria taxa quando essa remoção
«possibilita a utilização de um bem semi-público» (cfr. Teixeira Ribeiro, «Noção Jurídica de Taxa», in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3727, ano 117º, p. 289 e segs.)
A adoptar-se esta última tese estaríamos iniludivelmente, no caso em apreço, perante um imposto.
Mas, ainda que assim se não entenda, sempre haverá que reconhecer que o «encargo de compensação» a que se reportam os autos se não configura como uma taxa, na acepção tradicional deste conceito jurídico.
Efectivamente, se a ausência de uma área de parqueamento própria vai conduzir a uma maior utilização das áreas de parqueamento público porventura existentes, a verdade é que o pagamento do encargo de compensação em causa não confere o direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público, nem sequer constitui o município na obrigação de criar ou manter tais áreas.
Estaríamos, assim, perante aquilo a que alguma doutrina denomina como contribuições ou tributos especiais [...], por vezes considerados como tertium genus, para além das taxas e dos impostos [...].
Assim, e no caso vertente, a ausência de áreas de parqueamento privado ocasiona um acréscimo de despesas para o município, por este se ver
«forçado» a aumentar as áreas de parqueamento público.
6. Acontece, porém, que a doutrina portuguesa se tem pronunciado de forma largamente maioritária, se não unânime, no sentido de negar autonomia
às contribuições especiais, considerando que as mesmas devem ser tratadas como impostos (é o que sucede com o imposto de camionagem, devido pelo facto de os veículos pesados ocasionarem despesas com a conservação das estradas) [...].
Ora, não se vê motivo para que este Tribunal, ao arrepio da doutrina portuguesa da especialidade, viesse agora considerar que as denominadas contribuições especiais mereciam um tratamento jurídico autónomo, relativamente aos impostos, para efeitos de subtrair a respectiva criação à reserva de competência legislativa da Assembleia da República'. (Acórdãos cit., págs.
386-387)
Aceitando esta caracterização do encargo de compensação referido, o Acórdão nº 313/92 sustentou igualmente que tal contribuição para maior despesa não afastava que as contribuições especiais tivessem de ter um tratamento legislativo semelhante àquele que é exigido aos próprios impostos:
'Na realidade, tem a doutrina fiscal portuguesa vindo a entender que, muito embora haja justificação económico-financeira para uns tributos serem havidos como compensações ou contribuições especiais, do ponto de vista jurídico estas e os «impostos» propriamente ditos têm de sofrer o mesmo tratamento (cf. Cardoso da Costa, ob. cit., p. 15, Sá Gomes, idem, p. 97, e Alberto Xavier, idem, p.
59).
Aos argumentos utilizados pela doutrina, designadamente aqueles que se podem encontrar nos referidos autores, não são oponíveis quaisquer outros que agora este Tribunal divise, como já não divisava aquando da prolação do aludido Acórdão nº 277/86.
Daí que se tenha de concluir que o tributo instituído pela norma de que curamos deva ser perspectivado como um «imposto» quanto ao tratamento legislativo que há-de sofrer tal compensação' (Diário cit., pág. 1848).
6. Nada há a acrescentar ao entendimento assim expresso sobre a presente questão de constitucionalidade, o qual deve ser reiterado uma vez mais.
De facto, 'a Constituição determina no seu artigo
106º que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição» (nº 3) e que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes» (nº 2). E, ao tempo da emissão da Portaria nº 274/77 (antes da revisão constitucional de 1982), preceituava então a alínea o) do artigo 167º da mesma Lei Fundamental - aplicável por força do princípio tempus regit actum -, tal como hoje preceitua a alínea i) do nº 1 do artigo 168º, que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a «criação de impostos e sistema fiscal».' (citado Acórdão nº 277/86, in Acórdãos cit., pág. 385).
Tendo o referido «encargo de compensação» sido criado por regulamento aprovado por portaria, em vez de ter sido criado por lei ou decreto-lei autorizado, deve concluir-se que o segmento final do artigo 12º do Regulamento aprovado pela Portaria nº 274/77 se acha afectado de inconstitucionalidade.
III
CONCLUSÃO
7. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do segmento final do artigo 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de
19 de Maio - segmento normativo que permite ao construtor ser dispensado mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar nas condições aí impostas, da consideração e previsão de áreas de estacionamento, previstas na mesma norma - por violação dos artigos 106º, nºs 2 e 3, e 167º, alínea o), da Constituição (versão originária).
Lisboa, 16 de Março de 1994
José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Bravo Serra Maria da Assunção Esteves Luís Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa