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Processo nº 416/92
2ª secção Rel. Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. denunciou criminalmente B., por este, em 22 de Setembro de 1986, haver passado, para pagamento de serviços, ao Hotel C., um cheque de 4.800$00 que, apresentado a pagamento no banco sacado dentro do prazo legal, foi devolvido por falta de provisão.
Feito inquérito, durante o qual se apurou que o arguido passara outros cheques igualmente sem cobertura, foi contra ele deduzida acusação pelo Ministério Público, em 19 de Outubro de 1990, pelo crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelos artigos 23º e 24º, nºs
1 e 2, alínea a), do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927, na redacção introduzida pelo artigo 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro.
Distribuído o processo ao 2º Juízo Criminal de Lisboa, veio ele a ser devolvido (na sequência do despacho do respectivo juiz, de 7 de Abril de 1992) ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, a fim de que, aí, se procedesse a instrução contraditória.
O juiz do Tribunal de Instrução Criminal, no entanto, por despacho de 9 de Junho de 1992, recusou aplicação, por inconstitucionalidade, ao Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - recte, ao seu artigo 15º, alínea b), na parte em que revogou o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, em cujo artigo 6º se determinava que, nos processos crimes por emissão de cheque sem provisão, só haveria lugar a instrução contraditória, a requerimento do arguido, do Ministério Público ou dos assistentes -, com fundamento em que tal diploma fora publicado num momento em que já havia caducado a autorização legislativa ao abrigo da qual havia sido emitido.
2. É deste despacho que vem o presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício. Começou por ponderar que o objecto do recurso 'se cinge à questão da conformidade constitucional da norma que fundou a pretensão de realização de instrução contraditória: a do artigo 15º, alínea b), do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que revogou o artigo 6º do Decreto-Lei nº 14/84'. Finalizou, tirando as seguintes conclusões:
1º Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta que, antes de expirar o prazo da sua duração e antes do termo da legislatura da Assembleia da República que a concedeu, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei, sendo irrelevante que este só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além daqueles termos;
2º Assim, o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, aprovado em Conselho de Ministros de 29 de Agosto de 1991, foi-o antes de expirado o prazo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho, e antes do termo da V Legislatura da Assembleia da República;
3º Não sofre, por isso, de inconstitucionalidade orgânica a norma do artigo 15º, alínea b), desse Decreto-Lei, na parte em que revogou o artigo 6º do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir a aludida questão de inconstitucionalidade.
II. Fundamentos:
4. O Governo foi autorizado pela Assembleia da República
(Lei nº 30/91, de 20 de Julho) a legislar 'em matéria relativa à emissão de cheques sem provisão' (cf. artigo 1º), designadamente definindo o respectivo tipo legal (cf. artigo 3º), sendo de 90 dias a duração de tal autorização legislativa (cf. artigo 4º).
No uso desta autorização legislativa, veio o Governo a editar o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - cujo artigo 15º, alínea b), aqui está em causa -, o qual foi aprovado em Conselho de Ministros, em 29 de Agosto de 1991.
Este Decreto-Lei nº 454/91 foi submetido a fiscalização preventiva de constitucionalidade (o respectivo pedido entrou no Tribunal Constitucional, em 13 de Setembro de 1991: cf. acórdão nº 371/91, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1991), vindo a ser promulgado pelo Presidente da República, em 13 de Dezembro de 1991, referendado pelo Primeiro-Ministro, em 16 de Dezembro de 1991, e publicado no jornal oficial, em 28 de Dezembro de 1991.
O Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, foi, pois, aprovado, em Conselho de Ministros, dentro do prazo de duração da autorização legislativa ao abrigo da qual foi editado; e aprovado, bem assim, antes do termo da V legislatura da Assembleia da República que concedera essa autorização (os resultados das eleições, de 6 de Outubro de 1991, para a Assembleia da República, foram publicados em 29 de Outubro de 1991: cf. Diário da República, I série-A, nº 249, dessa data). Ou seja: foi aprovado antes de expirar o prazo de duração da autorização legislativa e antes também de se dar a caducidade desta
'com o termo da legislatura' (cf. artigo 168º, nº 4, da Constituição). Foi, no entanto, promulgado, referendado, e publicado fora daquele prazo de duração e depois do termo da respectiva legislatura.
5. O Decreto-Lei nº 454/91 - cujo artigo 15º, alínea b), que prescreve que é revogado o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro - será, então, inconstitucional, em virtude de, como se sustenta no despacho recorrido, haver sido emitido a descoberto de autorização parlamentar, por, no momento da sua publicação, ter já caducado, com o termo da legislatura, aquela que a Assembleia da República tinha concedido pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho?
A resposta a esta pergunta passa, naturalmente, pela decisão de qual seja o momento ou o acto do processo legislativo que deve ter-se por relevante para o efeito de saber se a autorização legislativa foi ou não tempestivamente utilizada pelo Governo. Relevante será a aprovação, em Conselho de Ministros, do decreto-lei autorizado? Será, antes, a recepção do diploma, pelo Presidente da República, com vista à sua promulgação? Ou será a promulgação? Ou a referenda? Ou a publicação?
Este Tribunal já teve ocasião de decidir esta questão.
Mesmo perante um texto como a da primitiva redacção do nº 4 do artigo 122º da Constituição - que estabelecia que a falta de publicação dos actos implicava a 'inexistência jurídica' dos mesmos - o Tribunal (seguindo, aliás, na esteira da jurisprudência que, a partir do acórdão nº 122, se impôs na Comissão Constitucional) pronunciou-se no sentido de que a publicação de um decreto-lei não era elemento de validade, sim e tão-só de eficácia (cf. Acórdãos nºs 37/84, 59/84 e 80/84, todos publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, no 3º volume, os três primeiros, e no 4º volume, o último). E esta jurisprudência manteve-a no Acórdão nº 400/89, de 18 de Maio de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 387, página 215, e no Diário da República, II série, de 14 de Setembro de 1989, tirado já no domínio do texto constitucional revisto pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro - num momento, portanto, em que o nº 4 do artigo 122º já dispunha (como continuava a dispor, após a revisão de 1989: Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho) que
'a falta de publicidade dos actos [...] implica a sua ineficácia jurídica'.
A publicação de um decreto-lei não é, assim, um elemento da sua validade.
A falta de promulgação ou de referenda importam, é certo, a inexistência jurídica do acto (cf. artigos 140º e 143º, nº 2, da Constituição).
Daqui, porém, não decorre que, para o efeito agora considerado - ou seja: para o efeito de saber qual o acto do iter legislativo que se deve considerar relevante quando esteja em causa verificar se o Governo, ao editar um decreto-lei no uso de uma autorização legislativa, o fez dentro do respectivo prazo de validade - se haja de atender à data da promulgação ou à da referenda.
'Para que se considere respeitado o prazo da autorização legislativa - escreveu-se no Acórdão nº 150/92, publicado no Diário da República, II série, de 28 de Julho de 1992 -, basta que ocorra dentro desse prazo a aprovação pelo Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa autorização'.
É esta jurisprudência que, agora, se reitera.
De facto, como então se escreveu:
Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria. Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar diplomas -
[risco para que alerta J. J. GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional, 5ª edição, Coimbra, 1991, p. 865] -, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário). Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo da autorização legislativa 'existe' para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como 'existe' qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas.
Esta tese é também defendida na Doutrina por ANTÓNIO VITORINO [As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, páginas 252 e
257 a 259) e admitida por JORGE DE MIRANDA (Funções, Órgãos e Actos do Estado), Lisboa, 1990, policopiado, página 476, nota 4].
6. O Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - cujo artigo 15º, alínea b), aqui está sub iudicio -, tendo sido aprovado, em Conselho de Ministros, em 29 de Agosto de 1991, ao abrigo da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho, não padece, pois, de inconstitucionalidade que radique na falta de competência legislativa para o editar. E não padece porque - repete-se -, para o efeito ora considerado, o facto de a sua promulgação, referenda e publicação terem ocorrido em momento em que já havia expirado o prazo de duração da autorização legislativa e em que também já se tinha iniciado outra legislatura é, de todo, irrelevante.
A irrelevância destes outros momentos do iter legislativo resulta evidente, quando se considere - como põe em destaque o Ministério Público nas suas alegações - que o prazo concedido ao Governo para legislar (no caso, recorda-se, eram 90 dias) seria praticamente anulado, se nele houvessem de computar-se os 8 dias de que o Presidente da República dispõe para requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto-lei (cf. artigo 278º, nº 3), os 25 dias que o Tribunal tem para decidir o pedido (cf. artigo 278º, nº 5), o tempo necessário à publicação do respectivo acórdão, os 40 dias (contados desta publicação) que o Presidente da República pode utilizar para, sendo caso disso, promulgar o diploma (cf. artigo 139º, nº 4), e o tempo necessário à referenda e publicação do mesmo.
7. Por último, registe-se que o facto de o Decreto-Lei nº 454/91 ter sido assinado pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça (e não por este) - contrariamente ao que alguns pretendem - também não importa a inconstitucionalidade do mesmo, agora por violação do nº 3 do artigo
204º da Constituição.
É que - como sublinhou o Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações - o nº 3 do artigo 204º da Constituição (que prescreve que 'os decretos-leis [...] são assinados pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros competentes em razão da matéria') tem que ser lido em conjugação ('conciliado') com o nº 2 do artigo 188º da Lei Fundamental, que preceitua que 'cada Ministro será substituído na sua ausência ou impedimento pelo Secretário de Estado que indicar ao Primeiro-Ministro ou, na falta de indicação, pelo membro do Governo que o Primeiro-Ministro designar'.
8. Conclusão:
O Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, não é inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da inconstitucionalidade que nela se contém, devendo a mesma ser reformada em conformidade com o aqui decidido quanto a essa questão.
Lisboa, 8 de Junho de 1993
Messias Bento Fernando Alves Correia
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa