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Procº. nº 417/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Instaurado que foi inquérito preliminar por denúncia apresentada em 10 de Novembro de 1987 contra A. pela indiciária autoria de crime de emissão de cheque sem provisão, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de 15 de Maio de 1992, determinou que o processo viesse a ser distribuído como autos de instrução preparatória, visto que, tendo o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro - que consagrava um regime processual especial relativamente àquele tipo de delitos - sido revogado pelo Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, ter-se-ia repristinado o regime processual penal geral anterior, razão pela qual, face ao disposto no artº 63º do Código de Processo Penal de 1929 e no artº 1º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, seria a instrução preparatória a forma processual adequada a que o processo devia agora obedecer.
2. O Juiz do aludido Tribunal de Instrução, contudo, por despacho de 9 de Junho de 1992, recusou, por inconstitucionalidade orgânica, a aplicação do citado D.L. nº 454/91, pois que, na sua óptica, tal diploma, tendo sido publicado em 28 de Dezembro de 1991, foi-o já depois de ter caducado a autorização legislativa constante da Lei nº 30/91, de 20 de Junho, à sombra da qual ele foi editado, e isto porque, aquando da sua publicação, estava já a decorrer a sexta legislatura, a qual teve início em 4 de Novembro de 1991, sendo que, ainda na sua óptica, não interessaria saber se o dito Decreto-Lei foi aprovado em Conselho de Ministros antes do início da referida legislatura, já que os diplomas legais são inexistentes antes da sua publicação.
3. Deste despacho recorreu o Ministério Público, por dever de ofício, para o Tribunal Constitucional, aqui tendo o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto produzido a sua alegação, na qual concluiu por se dever conceder provimento ao recurso, por isso que, devendo ser entendido que, para
'que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta que, antes de expirar o prazo da sua duração e antes do termo da legislatura da Assembleia da República que a concedeu, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei', então o Decreto-Lei nº 454/91, que foi aprovado em Conselho de Ministros em 29 de Agosto de 1991 e, assim, a norma constante da alínea b) do seu artº 15º, na parte em que revoga o nº 1 do artº 3º do Decreto-Lei nº 14/84, não sofreriam de inconstitucionalidade orgânica, porquanto teria sido validamente utilizada a autorização legislativa constante da Lei nº
30/91.
II
1. Está aqui em causa, unicamente, a questão de saber se o D.L. 454/91 - e tocantemente à norma constante do seu artº 15º, alínea b), no segmento em que revogou o nº 1 do artº 3º do D.L. nº 14/84 - como acto legislativo, é, ou não, de considerar perfeito antes de ter decorrido o prazo de autorização legislativa concedida pela Lei nº 30/91 ou antes do termo da legislatura da Assembleia da República durante a qual tal lei foi editada.
2. De harmonia com o este último diploma, foi o Governo autorizado a legislar em matéria relativa à emissão de cheques sem provisão
(artº 1º), vindo no seu artº 2º a estabelecer-se o sentido e a extensão da legislação a emitir quanto a este ponto, consagrando-se igualmente no artº 3º autorização ao Governo para:
definir a fattispecie do crime de emissão de cheque sem provisão;
considerar incursos nas penas relativas àquele crime, aos crimes de desobediência e desobediência qualificada e na pena de multa de 100 a 360 dias, determinados sujeitos que se encontrassem nas situações ali desenhadas;
na legislação autorizada publicar e respeitando determinada extensão e limites ali delineados, se consagrar poderem os tribunais aplicar certas sanções acessórias a quem viesse a ser condenado pelo crime de emissão de cheque sem provisão, e se considerar competente para conhecer desse crime o tribunal de comarca onde se situasse o estabelecimento de crédito em que aquele título de crédito fosse inicialmente entregue para pagamento.
O artº 4º da citada lei, por seu turno, dispôs que a autorização legislativa concedida tinha a duração de 90 dias, pelo que, atenta a data da sua publicação - 20 de Julho de 1991 - terminaria tal prazo em 18 de Outubro do mesmo ano [cfr. artº 296º, com referência ao artº 279º, alínea b), ambos do Código Civil].
3. O decreto do Governo emitido ao abrigo da autorização legislativa a que acima nos reportámos e que veio a dar origem ao Decreto-Lei nº
454/91, foi objecto, de aprovação em Conselho de Ministros em 29 de Agosto de
1991, de promulgação em 13 de Dezembro do mesmo ano, de referenda em 16, e de publicação em 28, os dois últimos referidos dias também do indicado mês de Dezembro.
Será, pois, que o dito decreto-lei, tendo em atenção as datas de promulgação, referenda e publicação, todas elas ocorridas após 18 de Outubro de 1991 (data em que caducou a autorização legislativa constante da Lei nº 30/91) e, bem assim, após o termo da V legislatura da Assembleia da República, é de considerar validamente emitido, porque respeitador do prazo de autorização contido naquela Lei [a VI legislatura foi iniciada no terceiro dia posterior ao apuramento dos resultados definitivos das eleições legislativas para o efeito realizadas em 6 de Outubro de 1991, acarretou a demissão do Governo até então em funções e, com esta, a caducidade das autorizações legislativas que ao executivo tivessem sido concedidas - cfr. artigos 176º, nº
1, 168º, nº 4, e 198º, nº 1, alínea a) da Constituição; o apuramento em causa ocorreu com a publicação, na 1ª Série da Diário da República de 29 daquele mês, da relação dos deputados eleitos e do mapa oficial de tais eleições]?
4. O problema ligado com a questão de saber qual o momento relevante para se aferir, relativamente a um diploma governamental, da tempestividade do uso de uma autorização legislativa tendo em atenção as diferentes fases do processo de produção legislativa, tem sido objecto de variadas posições doutrinais e de algumas posições jurisprudenciais, mesmo perante o primitivo texto da Constituição segundo o qual - cfr. artigo 122º, nº
4 - era juridicamente inexistente o acto legislativo não objecto de publicidade.
4.1. É assim que, a propósito, se citam Oliveira Ascenção, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 1977, 150, VI, Jorge Miranda, A Constituição de 1976, nº 29, Funções, órgãos e Actos do Estado, 1986, 281, nota
1, e no estudo intitulado «Autorizações Legislativas» na Revista de Direito Público, ano I, nº 2, 18, nota 46, Isaltino Morais, Ferreira de Almeida e Pinto Leite, Constituição da República Portuguesa Anotada e Comentada, 331, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1ª edição, 1978, 336, e 2ª edição, 2º Vol., 205, António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, 252 e segs., e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2ª edição, 305 e 356, 4ª edição, 635, e 5ª edição, 865, Pareceres da Comissão Constitucional números 23/80 e 4/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 13º e 14º volumes, pags. 99 e segs. e 205 e segs., respectivamente, Acórdãos 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 165,
212, 293, 401 e 402, publicados nos Apêndices ao Diário da República de 6- JUN-77, 25- -OUT-77, 16-ABR-81 e 22-DEZ-81, e Acórdãos do Tribunal Constitucional números 37/84, 59/84, 60/84 e 80/84, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume, pags. 69 e segs., 309 e segs e 317 e segs., e 4º volume, pags. 217 e segs., 400/89 e 150/92, no Diário da República, 2ª Série, de
14 de Setembro de 1989 e 28 de Julho de 1992.
Nos citados pareceres da Comissão Constitucional números
23/80 e 4/81 (e a partir do também citado Acórdão nº 212) e nos referidos Acórdãos do Tribunal Constitucional números 37/84, 59/ /84, 60/84 e 400/89, ficou expressa a ideia de que não implicava inconstitucionalidade orgânica a circunstância de um decreto-lei emitido ao abrigo de uma autorização legislativa ter sido publicado em data posterior ao termo do prazo ali concedido, pois que o acto de publicação não poderia ser visto como um elemento constitutivo necessário à aferição da existência jurídica do diploma.
4.2. Mas, se o requisito da publicação é, face aos ensinamentos extraíveis daqueles arestos e das considerações e da doutrina em que se suportaram, arredado como elemento de validade de um diploma, questão diferente é a de saber qual o item, de entre os demais que constituem o processo de produção legislativo - e para os efeitos que agora relevam, isto é, para se apurar se um decreto-lei foi emitido dentro do prazo autorizado pela Assembleia da República - a que se deverá atender.
A este respeito, o Tribunal Constitucional, por intermédio da sua 2ª Secção, tomou já posição no aludido Acórdão nº 150/92, posição essa que agora se reitera e segundo a qual o momento a ter em consideração, para se aferir se a autorização legislativa foi usada em tempo, é o da aprovação em Conselho de Ministros.
Disse-se, então e além do mais, no referido Acórdão:
'Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo da autorização legislativa «existe» para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como «existe» qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeitos de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas'.
5. Há, desta sorte, que concluir, para os efeitos que agora interessam, que o acto legislativo originador do D.L. nº 454/91 ficou perfeito em 29 de Agosto de 1991, data da sua aprovação em Conselho de Ministros, não relevando para uma tal perfeição os items da referenda e da promulgação.
Consequentemente, ocorrendo a mencionada data em momento anterior àquele em que se operou o termo do prazo consignado no artº 4º da Lei nº 30/91 e, de igual modo, antes do final da V legislatura da Assembleia da República, então haverá que considerar que o Decreto-Lei em apreço utilizou validamente, no que ao seu período de duração tange, a autorização legislativa
ínsita na referida Lei, pelo que, neste particular, não enferma ele e, logo, a norma constante da alínea b) do seu artº 15º, no segmento em que determinou a revogação do Decreto-Lei nº 14/84, de inconstitucionalidade orgânica.
III
Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão impugnada de harmonia com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 8 de Junho de 1993
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa