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Proc. nº 276/93
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Os presentes autos de reclamação reportam-se a um processo onde A. intentou, no Tribunal de Trabalho de Coimbra, uma acção com processo sumário emergente de contrato de trabalho contra a B., tendo sido esta absolvida na 1ª instância, decisão que foi igualmente confirmada pela Relação de Coimbra.
A autora recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, onde, por acórdão de 13 de Maio de 1992, foi concedida a revista, tendo sido revogado o acórdão recorrido e condenada a ré no pagamento à autora do quantitativo correspondente aos acréscimos de remuneração pelas horas de trabalho prestado que tenham excedido as 48 horas semanais, considerando designadamente os acréscimos de horas nocturnas e os descansos compensatórios.
Nesta decisão o S.T.J. considerou que a alínea c) do nº 2 e o nº 3 da cláusula 89ª do Acordo Colectivo de Trabalho (publicado no 'Boletim do Trabalho e Emprego' de 22 de Janeiro de 1981), ao estabelecer para as passagens de nível do tipo 'P' um horário de trabalho superior a 12 horas, sem limites e sem interrupções, são inconstitucionais, visto violarem frontalmente o direito dos trabalhadores ao repouso e aos lazeres e a um limite máximo da jornada de trabalho consagrado no artigo 59º, nº 1, alínea d) da Constituição da República, razão pela qual recusou a sua aplicação.
A ré recorreu deste acórdão para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 763º do Código de Processo Civil, em virtude de oposição com o acórdão do mesmo S.T.J. de 18 de Julho de 1986.
Este recurso foi decidido, por acórdão de 27 de Janeiro de
1993, no sentido de inexistir a alegada oposição de acórdãos e, consequentemente, julgou-se findo o recurso.
2. Notificada deste acórdão, por carta registada, expedida em
28 de Janeiro de 1993, a ré, em 2 de Fevereiro de 1993, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 13 de Maio de 1992, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, identificando como objecto do recurso a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas:
- da cláusula 89ª do Acordo Colectivo de Trabalho, publicado no 'Boletim do Trabalho e Emprego', nº 3, 1ª Série, de 22 de Janeiro de 1981;
- do artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro;
- do artigo 13º, nº 1, do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro; e
- do artigo 14º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro.
Por despacho do relator do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 1993 o recurso não foi admitido por intempestividade, em virtude de, sendo o prazo para a sua interposição de 8 dias, contados da data de notificação do acórdão recorrido, e tendo este sido notificado em 7 de Maio de
1992, o recurso para o Tribunal Constitucional só ter sido deduzido em 2 de Fevereiro de 1993.
Resulta, pois, que é contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, uma vez que a reclamante entende que o prazo para interposição do recurso se deve contar a partir da notificação do acórdão do Tribunal Pleno (de 27 de Janeiro de 1993), em virtude das disposições conjugadas dos artigos 70º, nº 4 e 75º, nºs 1 e 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O S.T.J., por acórdão de 14 de Abril de 1993, ao ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, implicitamente manteve o despacho reclamado.
O representante do Ministério Público neste Tribunal foi de opinião que o recurso era tempestivo, devendo por isso ser deferida a presente reclamação. Sem embargo, mais opinou que 'a decisão recorrida não recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas do artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 409/71, 13º, nº 1, do Decreto nº 381/72, e 14º do Decreto nº
381/72, pelo que, quanto a estas normas, o recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, é inadmissível'. Contudo, foi do entendimento que a reclamação já deveria ser deferida quanto à apreciação da constitucionalidade da norma da cláusula 89ª, nº 2, alínea c) e nº 3, do Acordo de Empresa (ou Acordo Colectivo de Trabalho), pois que 'essas sim, foram desaplicadas pelo acórdão recorrido com fundamento em inconstitucionalidade', uma vez que entende que tal tipo de normas deve ser objecto de controlo de constitucionalidade subscrevendo, quanto à fundamentação desta opinião, a declaração de voto de vencido do Conselheiro Sousa Brito junta ao Acórdão da 2ª Secção do Tribunal Constitucional nº 172/93, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1993.
3. Nestes termos, a questão central que a presente reclamação coloca é a da tempestividade do recurso de constitucionalidade em causa. Afirme-se, desde já, que tal recurso se afigura tempestivo, uma vez que, nos termos do nº 2 do artigo 75º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'interposto recurso ordinário que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torne definitiva a decisão que não admita o recurso'.
Ora, para os presentes efeitos, tem-se entendido que o recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça constitui ainda um recurso ordinário, pelo que o prazo para interpor recurso de constitucionalidade deve contar-se a partir da decisão daquele Pleno, pois que só com esta decisão se torna definitiva a pronúncia do aludido Tribunal sobre o recurso, nela se esgotando o correspondente poder jurisdicional do S.T.J.. No caso, é o acórdão de 27 de Janeiro de 1993 que, ao decidir inexistir oposição de julgados, que constitui a 'última palavra' do Supremo Tribunal de Justiça sobre o caso em apreço, pelo que é a partir da notificação desta decisão à parte que começa a contar-se o prazo para interposição do recurso de constitucionalidade.
Neste contexto, o recurso foi tempestivamente interposto e a reclamação deve ser deferida.
4. Sem embargo, conforme tem sido sublinhado por várias vezes, a decisão do Tribunal Constitucional quanto à admissibilidade de um recurso tomada em sede de apreciação de uma reclamação tem como consequência, pelo menos em princípio, a de formar caso julgado no processo quanto àquela admissibilidade. Pelo que, embora a reclamação, em si mesma, tenha apenas por objecto a questão do prazo de interposição do recurso, não pode o Tribunal deixar de, nesta sede, considerar a temática dos pressupostos de admissibilidade do recurso em toda a sua dimensão aplicativa.
Ora, vistas as coisas numa perspectiva substantiva, quanto aos pressupostos postulados pela alínea a), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o recurso sobre que versa a presente reclamação não poderá ser recebido neste Tribunal na parte respeitante às já referidas normas do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro e do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro, como resulta, aliás, da jurisprudência já firmada por este Tribunal em duas situações homólogas, onde a não verificação dos aludidos pressupostos foi suscitada pelos relatores neste Tribunal, sobre as quais recaíram os Acórdãos nºs 266/92 (da 2ª Secção), publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992, e 608/93 (da 1ª Secção), ainda inédito, cuja linha argumentativa, nesta vertente, se acompanha.
5. Com efeito, e quanto às referidas normas do Decreto-Lei nº 409/71 e do Decreto nº 381/72, sublinhe-se que são normas pré-constitucionais, que integram diplomas publicados ao abrigo da ordem constitucional vigente antes da instauração do novo regime constitucional português, a 25 de Abril de 1976. Mas estas normas, em boa verdade, não foram desaplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça com fundamento em inconstitucionalidade, tal como sublinha o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal no 'parecer' que emitiu a propósito da presente reclamação.
Na realidade, resulta do acórdão recorrido que é apenas a propósito da cláusula 89ª do Acordo de Empresa que se alude a uma questão de inconstitucionalidade ('impõe-se concluir que a alínea c) do nº 2 e o nº 3 da cláusula 89º do AE (...), ao estabelecer para as passagens de nível de tipo 'P' um horário de trabalho superior a 12 horas, sem limites e sem interrupções, é manifestamente ilegal, além de inconstitucional, visto violar frontalmente a norma constante do artigo 59º, nº 1, alínea d) da Constituição da República, pelo que deve ser recusada a sua aplicação'), e que é da recusa de aplicação daquela aludida cláusula que 'consequentemente, [se] impõe aplicar ao caso sub judice o preceito do artigo 5º do Decreto-Lei nº 409/71 (...) por força do disposto no artigo 1º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro'.
Ora, em nenhuma passagem do acórdão recorrido se coloca a questão da eventual inconstitucionalidade dos preceitos destes diplomas de 1971 e de 1972, seja à luz da Constituição de 1933 seja à luz da de 1976, que assim foram expressa e inequivocamente aplicados ao caso. Nesta parte, pois, mostra-se inadmissível o recurso com fundamento na alínea a), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como invocou a reclamante.
6. Resta, pois, analisar a questão atinente à admissibilidade do recurso em causa quanto à cláusula 89ª do Acordo de Empresa. Nos já atrás citados arestos, que versavam situações homólogas à presentemente em apreço, o Tribunal entendeu não poder tomar conhecimento da questão de constitucionalidade colocada a propósito da aludida cláusula, pois a desaplicação operada pelo acórdão recorrido foi determinada por tal juízo de ilegalidade, e não por qualquer violação do disposto nos artigos 55º, 56º, 59º, nº 3, alínea d), ou
115º, nºs 1 e 5, da Constituição vigente'.
Contudo, no caso vertente, é distinta a situação, pois, como resulta do trecho já transcrito, o S.T.J. identificou explicitamente a desaplicação da cláusula 89ª como resultando da sua inconstitucionalidade, por confronto com o disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 59º da Constituição. É bem verdade que o acórdão recorrido o faz reconhecendo um 'concurso de vícios'
('a cláusula (...) é manifestamente ilegal, além de inconstitucional, visto violar frontalmente a norma constante do artigo 59º, nº 1, alínea d), da Constituição da República, pelo que deve ser recusada a sua aplicação'), mas do teor da decisão resulta inequivocamente que o alegado vício de inconstitucionalidade foi tomado autonomamente e com base nele foi efectivamente desaplicada a referida cláusula do Acordo de Empresa.
Pelo que, nesta parte, há-de ter-se por verificado o pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
7. Mas a esta conclusão só será possível chegar se se entender que a norma constante da cláusula 89ª é, ela mesma, susceptível de controlo de constitucionalidade, ou seja, que as regras constantes deste tipo de convenções colectivas de trabalho podem ser objecto do controlo de constitucionalidade que o ordenamento atribui ao Tribunal Constitucional.
Sobre esta temática debruçaram-se os Acórdãos da 2ª Secção deste Tribunal nºs 172/93 e 209/93, os quais concluiram que este tipo de normas se encontram excluídos do controlo de constitucionalidade cometido ao Tribunal Constitucional.
Em ambas as decisões votou vencido o Conselheiro Sousa e Brito, a cuja declaração de voto aderiu o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal nas suas alegações e em sentido convergente pronuncia-se também sobre o tema GOMES CANOTILHO na 6ª edição do seu 'Direito Constitucional'.
Por nosso lado também entendemos acompanhar, no essencial, aquela tese, conforme se passa a explanar.
8. É sobejamente conhecida no moderno direito a profunda crise a que sucessivamente foram votados os critérios tradicionais da generalidade e da abstracção como definidores do conceito de norma jurídica, a que se tem procurado responder, em sede de controlo da constitucionalidade, através da construção de um 'conceito funcional de norma' que se prefigure como constitucionalmente adequado aos fins do aludido controlo e dos relevantes valores que se pretendem proteger ou salvaguardar. Sobre esta evolução escreveu-se na aludida declaração de voto:
'Conceito funcional de norma. A normatividade como elemento do conceito. O ponto de partida só pode ser um conceito funcional de norma ou seja, nas palavras do Acórdão nº. 26/85 (Acórdãos cit 5, pág. 18) 'o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277º e segs. da Constituição, é ... um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido'.
A primeira grande clarificação consistiu em substituir as exigências de generalidade das pessoas e abstracção dos factos abrangidos pela previsão da norma pela de normatividade, ou função orientadora do comportamento, relativa à estatuição da norma. Reconheceu-se, assim, o carácter de norma a 'preceitos legais de conteúdo individual e concreto ainda mesmo quando possuam eficácia consultiva', como eram as normas dos decretos-leis em apreço no acórdão nº. 26/85, que extinguiam, cada uma delas, uma empresa pública. Já, no mesmo sentido, a Comissão Constitucional tinha considerado normas os preceitos de decretos-leis que regulavam uma classe fechada de casos, impondo, por exemplo, em certas condições, a expulsão das fileiras das forças armadas dos autores das tentativas de golpe de 11 de Março e de 25 de Novembro
(Parecer nº. 223/78, Pareceres da Comissão Constitucional, 4, p. 221 ss.), ou a caducidade dos arrendamentos e termo do direito das ocupações de dois prédios de Lisboa (Parecer nº. 13/82, Pareceres cit., 19, p. 149 ss.). Esta jurisprudência tem-se mantido, nomeadamente nos Acórdãos nºs 80/86 (Acórdãos cit., 7-I, p. 79 ss.), quanto à norma que restringe o preenchimento de um lugar de escrivão de direito a ajudantes de escrivão constantes de uma lista nominativa e atribui a categoria de escrivão de 1ª classe aos ajudantes de escrivão constantes da mesma lista, 157/88 (Diário da República, I série, de 26 de Julho de 1988, p. 3O2O), quanto às normas que criam duas empresas de transportes marítimos,168/88 (Diário da República, I série, de 11 de Outubro de
1988, p. 4138 ss.) e quanto às normas de vários acordos - que o Tribunal qualificou de tratados-contratos - entre Portugal e os Estados Unidos da América em matérias de defesa. A razão essencial que justifica esta jurisprudência foi expressa, em minha opinião, já no Parecer nº. 13/82:
'... é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo da constitucionalidade das 'normas' jurídicas, e ao fazê-lo quer no artigo 281º quer no seguinte, teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (i.é., de 'normas'): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu. Simplesmente - e este outro argumento será, no nosso modo de ver, decisivo - cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de 'aplicação' do direito pré-existente, pois que simultaneamente se traduz num acto de 'criação' de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento de validade (de validade 'legal', claro). Em tal preceito ou disposição legal vai implicitamente contida, por conseguinte, uma norma - uma norma 'individual', decerto, mas que não há razão para subtrair só por esse facto, e como já se disse, à possibilidade do controlo previsto no artigo 281º da Constituição' (p.
159).
Formulou-se assim um critério de normatividade: só actos de criação normativa (em sentido amplo, abrangendo manifestamente a modificação e a revogação total ou parcial de normas), por oposição a actos de aplicação normativa são controlados por via da fiscalização de inconstitucionalidade do Tribunal. É esta a razão material que explica porque os actos com forma legislativa contêm sempre normas, mesmo quando contêm materialmente também actos administrativos: é que contêm então as normas que regem estes actos, que obrigam, como leis formais, particulares, autoridades e tribunais, e relativamente à constitucionalidade das quais as decisões dos tribunais administrativos estão sujeitas à última palavra, em fiscalização concreta, do Tribunal Constitucional.
Mal seria que violações directas da Constituição, por parte de
órgãos de soberania ou de região autónoma, com conteúdo normativo e, portanto, projectando-se no futuro através da orientação de comportamentos, não pudessem ser prevenidas em geral e eliminadas em concreto, em última instância, pelo Tribunal Constitucional, podendo, contudo, ser julgadas por outros tribunais. Como assim, se o Tribunal Constitucional foi especificamente instituído 'para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional' (artigo
223º da Constituição)?
Acresce que no mundo contemporâneo, que se caracteriza pelo pluralismo e pela emergência de grandes organizações, personalizadas ou não, a regulação jurídica da vida económica e social depende decisivamente de leis-medida e de leis individuais, de modo que uma renúncia à fiscalização constitucional de tais leis reduzir substancialmente a efectividade funcional do Tribunal Constitucional, o que 'não faria sentido', 'sendo certo que no seu
âmbito é ainda maior o risco de desatenção e de desrespeito pelas exigências constitucionais' (assim o Acórdão nº. 26/85, cit. p.18).
Aliás, é da competência reservada da Assembleia da República conceder amnistias e perdões genéricos através de leis que são gerais, no sentido que se referem a uma classe de factos individualizados indirectamente através de conceitos genéricos, mas também retroactivos, referentes a uma classe fechada de factos que já existiram no momento da criação da lei. Nesta medida assemelham-se a leis-medida ou leis-providência, não são susceptíveis de aplicação indefinidamente repetida. Mas é claro que contêm normas que estatuem vários efeitos jurídicos que se impõem aos amnistiados, a vários órgãos do Estado e até a terceiros, e que estão sujeitas à fiscalização do Tribunal Constitucional (cfr. por último os Acórdãos nºs. 152/93 e 153/93, inéditos).
Afastamento de um conceito formal de norma. Como se disse no Acórdão nº. 157/88, ao adoptar a doutrina do carácter normativo do conteúdo dos actos legislativos (artigo 115º, nº. 1 da Constituição), isto é, ao concluir que todas as leis em sentido formal são normas, o Tribunal limita-se a 'extrair a consequência' postulada pela 'consideração teleológica e funcional (isto é,
'material') das coisas' (p.30 ss). Isto não é equivalente a dizer, como o mesmo acórdão equivocadamente disse, que tal consideração postula 'um critério ou noção 'formal' de norma'. A não ser que se entenda a expressão 'formal' no sentido amplíssimo de 'qualquer preceito ou disposição inserida num diploma normativo', referido no Parecer nº. 13/82 (p.161). Tratar-se-ia então de um conceito que só seria formal pela abstracção de toda a determinação de conteúdo para lá da simples normatividade e da restrição, aliás injustificada, ao direito escrito. Mas quando se fala em 'conceito formal de norma' tem-se mais frequentemente em vista o conceito de 'lei em sentido formal', que Haenel definiu, na esteira de Laband, como 'aquele acto do Estado que - segundo determina mais de perto o direito positivo - foi produzido e declarado de uma forma solene determinada, especialmente com intervenção da representação popular', e que pode ter ou não como conteúdo uma proposição jurídica (Das Gesetz im formellen und materiellen Sinne, 1888, reimp. 1968 pp 204-5). A exigência material de normatividade equivale à de ter como conteúdo uma proposição jurídica, o que afasta um conceito formal no sentido referido, independentemente da questão de saber onde passariam os seus limites no direito português - onde se justificaria uma delimitação baseada no conceito de 'acto legislativo' do nº. 1 do artigo 115º. da Constituição.
Necessidade de outros critérios adicionais. Normatividade do objecto do processo e 'generalidade' de norma jurídica. Mas é claro que todos estes argumentos, incluindo a razão essencial primária referida, implicam que as leis formais sejam 'normas', para efeito de fiscalização da constitucionalidade, mas não implicam que só elas o sejam. Os tribunais judiciais aplicam outras formas de regulação e orientação de comportamentos, nomeadamente normas gerais e individuais criadas por autoridades públicas, normas gerais do costume, interno e internacional, normas de direito estrangeiro recebidas por remissão das normas do direito internacional privado, decisões de tribunais com força obrigatória geral, normas de convenções colectivas de trabalho, normas gerais (como os regulamentos de empresa, de uso, de instalação, estatutos, etc.) e individuais criadas por pessoas privadas. Em todos estes casos pode haver violação directa da Constituição (pensa-se em violação do princípio da igualdade, ou da proibição da perda de direitos civis ou profissionais como efeito necessário de penas criminais, para referir exemplos actualmente presentes no Tribunal) por normas do caso e se aplicam os argumentos baseados na 'normatividade' tida em vista pelo Tribunal. Uma delimitação das normas relativamente às quais se justifica a fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal implica outros critérios adicionais. Os principais contributos da jurisprudência do Tribunal para a formulação desses critérios foram os Acórdãos nº. 150/86 e 168/88, para a formulação do critério do reconhecimento estatal, os Acórdãos nºs 156/88 (Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1988, p. 8579 ss) e 472/89, para a formulação do critério da heteronomia e os Acórdãos nºs. 26/85 e 150/86 para o critério da imediação (ou da violação directa da Constituição). Antes de tentar demonstrar esta doutrina, cumpre esclarecer a relação essencial entre a normatividade e a generalidade, relação decisiva para fixar o exacto alcance de todos os critérios envolvidos. A 'normatividade', se exclui a generalidade e abstracção, como características essenciais das previsões das normas que são objecto possível do processo constitucional, não exclui, antes possibilita, a apreciação da 'generalidade' das estatuições, como exigência da conformidade destas à vontade geral. O apuramento desta conformidade é a própria essência do processo constitucional. O objecto do processo tem que ser uma norma, como razão de agir, para se apurar se é uma recta ratio, uma razão correcta, sustentável perante a Constituição. A exigência de generalidade da lei surge historicamente em Rousseau como exigência de racionalidade, baseada na igualdade e na consequente concepção do bem comum como o maior bem de todos:
'como a coisa estatuída se refere necessariamente ao bem comum, segue-se que o objecto da lei deve ser geral bem como a vontade que o dita, e é esta dupla universalidade que faz o carácter da lei' (Rousseau, Du contrat social (1e version, Oeuvres complètes, ed. Pleiade, III, p. 438). Estabelece-se assim uma dialéctica entre a 'vontade de todos' e a 'vontade geral', que é a base de toda a teoria do Estado de direito: a vontade de todos, determinada por órgãos legitimados democraticamente, só obriga se conforme à 'vontade geral' e só através da 'vontade de todos' 'se pode assegurar que uma vontade particular é conforme à 'vontade geral' (Du contrat social, 1.2, e 7, ed. cit., p. 383). Assim entendida, a exigência de generalidade não depende do carácter mais ou menos determinado dos casos a que se aplica, mas da conformidade com a vontade geral, ou correcção, ou racionalidade, do ponto de vista do Estado de direito, da estatuição normativa, isto é, da susceptibilidade da sua generalização, como diz, no mesmo sentido, Krüger: 'a lei é geral (e portanto correcta) quando passa a prova do critério da capacidade de generalização (Allgemeine Staatslehre, 2ª ed., 1966, p. 3O6-7).
A norma que é objecto do processo constitucional não tem que ser geral neste sentido, pois poderá concluir-se pela sua inconstitucionalidade, mas tem que pretender sê-lo. A pretensão da generalidade confunde-se com a pretensão de constitucionalidade e não é um requisito autónomo do objecto de processo constitucional, mas fundamenta a heteronomia e o reconhecimento. O momento dialéctico da legitimação democrática conduz à doutrina do reconhecimento. Os dois momentos dialécticos da legitimação democrática e da legitimação racional
(pela referência ao bem comum do Estado de direito) implicam a doutrina da heteronomia.
A imediação como elemento do conceito funcional de norma. A exigência de mediação tem a ver com a dimensão fiscalizadora das competências constitucionais da jurisdição constitucional: o Tribunal Constitucional só excepcionalmente julga acerca da legalidade de quaisquer normas, nomeadamente quando se trata da ilegalidade de um acto legislativo - a que os tribunais, por consequência de inconstitucionalidade, não devem obediência -, ou quando está em causa a autonomia regional (nº. 2 do artigo 280º. da Constituição; artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional). Em todos estes casos a ilegalidade implica a violação de limites à competência de órgãos soberanos ou de autonomia regional, regulados na Constituição, e assim, uma inconstitucionalidade orgânica indirecta. O Tribunal Constitucional então intervém na sua função típica de fiscalizar competências constitucionalmente definidas, tal como nos juízos de inconstitucionalidade. Esta problemática não existe nas restantes inconstitucionalidades indicadas por ilegalidade. São, portanto, os fins da jurisdição constitucional que implicam a imediação.
A imediação foi formulada logo no já citado acórdão nº. 26/85:
'também os preceitos com a natureza agora considerada têm como parâmetro de validade imediato, não a lei ('outra' lei), mas a Constituição. Nada justifica, por consequência, que o seu exame escape ao controlo específico da constitucionalidade - é dizer, à jurisdição e à competência deste Tribunal'
(p. 19). Identicamente se pronunciou o acórdão nº. 15O//86 (p. 299). Em rigor, são os fins da jurisdição constitucional e, portanto, o conceito funcional de norma, que implicam a imediação. Assim, se não houvesse violação directa da Constituição é que haveria uma razão para escapar ao controlo específico de constitucionalidade e tal não se verifica nas hipóteses dos acórdãos. A imediação não era problemática no caso do Acórdão nº. 26/85, em que se julgavam normas de actos legislativos, que estavam imediatamente sujeitos à Constituição. Mas já se tornava decisiva quanto às normas do regulamento de arbitragem julgadas inconstitucionais no Acórdão nº. 150/86, que só violavam directamente a Constituição por não estar em vigor a Lei nº. 31/86 de 29 de Agosto (artigo
16º.), que as teria tornado ilegais. Assim foi com base na falta de imediação que o Acórdão nº. 266/92, de 14 de Julho, considerou inadmissível o recurso da alegada inconstitucionalidade de uma norma de convenção colectiva de trabalho, por se tratar de mera ilegalidade, deixando debaixo do tapete as questões relativas a outros elementos do conceito de norma (supra nº. 1).
A jurisprudência do Tribunal tem justamente deduzido a exigência da imediação da alínea i) do nº. 4 do artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional, introduzida pela Lei nº. 85/89, de 7 de Setembro, negando que haja inconstitucionalidade no sentido da alínea b) do mesmo nº.1 quando há violação directa da convenção internacional e indirecta do nº.2 do artigo 8º da Constituição (cfr. os Acórdãos nºs. 185/92, 277/92, 351/92, 603/92, 162/93, todos inéditos).
Contudo, tal como a normatividade, a imediação é uma condição necessária mas não suficiente da existência de uma norma, como objecto do processo constitucional: os negócios jurídicos podem violar directamente a Constituição, mas tal inconstitucionalidade é apenas fundamento de medida absoluta do negócio por o seu objecto ser 'contrário à lei', no sentido do artigo 280º. do Código Civil, em que a 'lei' inclui a Constituição.
A heteronomia como elemento do conceito funcional de norma. No Acórdão nº. 150/86 tratou-se da questão de saber se as normas de um regulamento de arbitragem aprovado pela 'determinação' de uma comissão arbitral, prevista nas condições gerais da Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao decreto-lei e constituída para resolver um litígio entre a C., e a Federação dos Municípios do Distrito de Faro, podem ser objecto de fiscalização concreta do Tribunal Constitucional. Depois de afirmar a normatividade de tal
'determinação', e a imediação das normas questionadas do regulamento de arbitragem que era conteúdo do Acórdão nº. 150/86, trilhou novos caminhos ao discutir a questão de saber se o regulamento de arbitragem é um acto normativo privado. O acórdão recusa uma concepção segundo a qual 'os preceitos em causa só seriam susceptíveis de constituírem objecto da fiscalização concreta de constitucionalidade, caso tivessem sido editados sob a forma de acto legislativo ou, quando conceito, no exercício de um poder regulamentar' (p. 297) E continua:
'Dando por adquirido - o que faltaria demonstrar - que os actos normativos privados estão todos eles subtraídos à fiscalização da constitucionalidade, a verdade é que tal natureza não pode, em rigor, ser atribuída à determinação em causa. E isto, desde logo, porque sendo a comissão arbitral um tribunal arbitral necessário, o afastamento das normas legais vigentes em matéria de processo e a consequente subordinação aos termos processuais fixados por aquela comissão em nada resulta da vontade das partes, pelo que se não pode aí descortinar uma manifestação da autonomia privada.
Mas também, acrescente-se, porque os tribunais, arbitrais exercem poderes soberanos, tal como os restantes tribunais, não sendo legítimo, por isso, negar o carácter público da função que desempenham'.
Estes dois últimos argumentos apontam para duas diferentes determinações do conceito de norma. A subordinação à norma independentemente da vontade das partes aponta para o elemento da heteronomia, o apelo à soberania dos tribunais arbitrais aponta para o elemento do reconhecimento estatal.
A exigência de heteronomia é fácil de demonstrar. Heteronomia é a característica de uma orientação de comportamento que se impõe independentemente da vontade daqueles a quem se dirige. Excluem-se, portanto, as normas criadas pela autonomia privada. Só as normas heterónomas suscitam o problema típico da administração de justiça constitucional, que é o do conflito entre liberdade e autoridade, entre a vontade individual e a vontade geral, que as normas heterónomas resolvem fazendo depender a liberdade e a autodeterminação da pessoa, que são valores que decorrem imediatamente da dignidade da pessoa humana, da vontade alheia, que se impõe, se necessário pela força coercitiva do Estado, em nome da racionalidade do bem comum (neste sentido, citando Herzog, Ferdinand Kirchhof, Private Rechtssetzung ,1987, p.86). Consequentemente, o Tribunal Constitucional tem vindo a excluir as normas que considera de autonomia privada, da sua esfera de fiscalização.
A heteronomia funcionalmente relevante para a definição de norma jurídica como objecto do processo constitucional não se basta com a simples susceptibilidade de imposição a terceiros. Também as normas de uso por terceiros de certas instalações, de coisas ou de prédios privados, emitidas pelo seu proprietário como tal, e não no âmbito de relações obrigacionais de que seja sujeito, obrigam terceiros independentemente da vontade destes. E, no entanto, tais normas pertencem à autonomia privada. A vontade privada - incluindo a vontade particular de associações infra-estatais - exprime-se nelas dentro da sua esfera própria de actuação no prosseguimento de fins pessoais ou particulares, que não se integram num sistema de fins do Estado. Não têm pretensão de 'generalidade', como qualidade da estatuição normativa, no sentido atrás (nº. 4) apontado. Não têm, por isso, que se legitimar democraticamente, nem racionalmente pelo bem comum do Estado de direito, pelo que não se justifica o específico controlo da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. É a 'generalidade' que fundamenta a heteronomia do direito objectivo, a qual nessa medida se contrapõe à autonomia privada, mesmo quando esta se impõe ao respeito de terceiros. Assim o Tribunal considera no Acórdão nº. 156/88 que uma norma do Regulamento da Prevenção e Controlo do Alcoolismo da B. não podia ser objecto de controle da constitucionalidade pelo Tribunal por ser proveniente de autonomia privada. Do mesmo modo, o Tribunal decidiu, no Acórdão nº. 472/89 - desta vez profundamente dividido, não quanto à doutrina, mas quanto à sua aplicação - que duas normas, uma do Estatuto e outra do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, não podiam ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal, porque os poderes regulamentar e disciplinar em questão são poderes privados, que a lei reconhece às associações de direito privado, no quadro da sua autonomia própria (p. 9585).
O reconhecimento como elemento do conceito funcional de norma. O direito heterónomo que os tribunais aplicam e de que o Tribunal Constitucional controla a constitucionalidade não é apenas constituído por normas criadas por
órgãos do Estado. A Constituição incorpora no direito português o direito internacional, nos termos do artigo 8º. (cfr. ainda o artigo 16º.) e 278º., nº.
1), e refere-se às 'normas' das convenções colectivas de trabalho (nº. 4 do artigo 56º.), resultantes do direito à contratação colectiva que é reconhecido
às associações sindicais (nº. 3 do artigo 58º.). Sendo indiscutível o controlo da constitucionalidade das convenções internacionais (nº. 1 do artigo 278º.), que o Tribunal tem feito, tanto preventiva (cfr., por exemplo, o Acórdão nº.
168/88) como sucessivamente (cfr., por exemplo, o Acórdão nº. 423/87, Acórdãos, cit., 10, p. 77 ss), é difícil conceber outra solução para o restante direito internacional, incluindo as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais (nº. 3 do artigo 8º.) e o costume internacional (nº.
1 do artigo 8º.). Ora nenhuma forma de ratificação, assinatura ou incorporação transforma os órgãos de Estado estrangeiros e de organizações internacionais e os sujeitos das práticas e das convenções jurídicas costumeiras em poder público do Estado português, nem este se investe em poderes de autoridade, para usar a dicotomia que fez vencimento no presente acórdão. Tanto basta para negar o monopólio normativo do Estado português. Tal monopólio não deriva aliás de nenhum princípio constitucional. A soberania interna do Estado apenas exige que o Estado tenha 'a última palavra' (Ossenbühl fala numa 'prerrogativa de criação normativa'), o que equivale à supremacia da Constituição. O monopólio da força física coercitiva apenas exige que as sanções jurídicas garantam coercitivamente o cumprimento das obrigações contidas naquelas normas que o Estado reconhece para tal efeito, a que empresta a força do seu braço. Não impede a existência de outros poderes que não são públicos, nem por si nem por delegação, com competência para criar normas heterónomas, que são reconhecidas como tais pelo Estado. Numa palavra: o Estado detém não o monopólio de criação, mas apenas o do reconhecimento das normas como normas jurídicas (neste sentido: Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 133 ss., Fritz Ossenbühl em Josef Isensee, Paul Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts, 1988, § 61, Rn. 3O ss.).
A jurisprudência do Tribunal tem procurado manter a doutrina do monopólio da criação normativa através da noção de 'atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas'. Segundo o Acórdão nº. 472/89 'essa atribuição ou devolução de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas - e, então, as correspondentes normas serão normas públicas, porque justamente produzidas no exercício desse poder público devolvido ou delegado no ente privado' (p. 9 584). Não se nega a possibilidade de delegação de poderes normativos públicos. Só que tal delegação é uma ficção indesejável sempre que implica a atribuição a um acto de um sentido diferente daquele que corresponde à intenção do seu autor e ao sentido explícito das palavras em que se manifesta. Não é necessário, para explicar a validade das regras de processo a observar na arbitragem, atribuir um poder público, e menos ainda 'poderes soberanos' (como pretende o Acórdão nº. 150/86, p. 299), às partes e na falta do seu exercício por estas, aos árbitros que elas escolheram. Como é pura ficção falar de um poder público estatal português derivado atribuído ao governo de um Estado estrangeiro ou ao órgão de uma organização internacional para criar direito internacional convencional. O mesmo se deve dizer, como procurarei mostrar a seguir, do poder de contratação colectiva. Basta, em todos estes casos, evocar as normas legais ou constitucionais, de remissão ou de reconhecimento, que são aplicáveis. Quanto ao costume, tal atribuição nem sequer é concebível, pelo que não pode ser ficcionada.
A imposição dogmática do modelo da delegação de competência normativa pública corresponde, aliás, a uma doutrina da identidade - isto é, dos critérios de pertença de uma norma jurídica a uma ordem jurídica - e da unidade da ordem jurídica - isto é, dos elementos comuns a todas as normas da ordem jurídica -, que encontrou a sua mais acabada expressão na teoria de Kelsen. A consequência indesejável desta doutrina é a impossibilidade de admitir a simultânea validade de ordens normativas diversas - a internacional, as estrangeiras, as eclesiásticas, as institucionais infra-estaduais. A doutrina mais recente tem seguido a orientação pluralista propugnada por Santi Romano
(L'ordinamento giuridico, 1918, reimp. 1977), que chama a atenção para os factos institucionais ligados à criação, à aplicação e à garantia das normas e considera a ordem estatal como uma entre outras ordens institucionais. Nesta linha, Hart ('Kelsen's, Doctrine of the Unity of Law', em Ethics and Social Justice, ed. for H.E.Kiefer, M. K. Munitz, 197O, p. 171 ss.) defendeu que o critério de pertença de normas jurídicas a um único sistema depende de critérios comuns de reconhecimento dessas normas pelos agentes da aplicação e garantia delas, e não de uma relação de delegação de competência ou de derivação de validade e, portanto, de uma inexistente origem comum. E Wengler
('Betrachtungen über den Zusammenhang der Rechtsnormen in der Rechtsordnung und die Verschiedenheit der Rechtsordnungen', em Festschrift für Laun, 1953, p. 719 ss) mostrou como a unidade sistémica da ordem jurídica se revelava, não na origem comum das suas normas, mas na comum contribuição de todas elas para a definição dos mesmos bens jurídicos. Não importa aqui decidir esta questão doutrinária, apenas mostrar que a transformação de poderes privados ou outros não-estatais em poderes públicos é uma desnecessária hipóstase de evitável dogmatismo para explicar a validade dentro do Estado de normas de origem não estatal, validade que resulta simplesmente de normas remissivas, de incorporação normativa ou de reconhecimento de fontes de direito.
Outros elementos do conceito funcional de norma. A determinação que anteriormente se fez dos elementos do conceito funcional de norma como objecto do processo constitucional não pretende ser exaustiva, mas apenas destacar aqueles elementos que importa questionar na generalidade dos casos e justificar suficientemente a solução a dar ao presente caso. Noutras hipóteses poderá haver outros problemas de delimitação, nomeadamente os relacionados com o
âmbito de aplicação especial e temporal das normas (quanto ao direito estrangeiro, dos órgãos de Governo próprio de Macau, pretérito, etc.) que não são aqui relevantes.'
9. Afastando-se deste entendimento, o Acórdão nº 172/93 respondeu negativamente quanto à possibilidade de as normas constantes de convenções colectivas de trabalho se terem por abrangidas no 'conceito funcional de norma' construído pela jurisprudência constitucional, de que se acaba de transcrever uma panorâmica geral fornecida pela declaração de voto ao citado aresto aposta pelo Conselheiro Sousa e Brito. E a decisão em causa da 2ª Secção apoiou-se na seguinte argumentação:
'A questão de fundo foi repetidamente suscitada pela recorrente ao longo do processo, tanto perante a primeira instância como perante a Relação; resta, porém, saber se estamos perante uma norma, na acepção em que o termo é usado no artigo 280º da Constituição, já que dúvidas não subsistem de que a mesma foi aplicada na decisão recorrida.
Com efeito, de acordo com aquele dispositivo constitucional, para que se abra o recurso para o Tribunal Constitucional é indispensável que esteja em causa a questão da inconstitucionalidade de uma norma. Ora, não será unívoco o conceito de norma constante do artigo 280º da Lei Fundamental; designadamente, não é seguro, à partida, que nele se enquadrem as cláusulas das convenções colectivas de trabalho. A este propósito, note-se que não importa aqui saber se tais cláusulas devem ou não ser consideradas como normas para qualquer outro efeito, nomeadamente para efeitos de classificação doutrinal: do que se cura é de apurar se a Constituição pretendeu submetê-las ao específico sistema de controlo da constitucionalidade constante do artigo 280º (e 281º).
Segundo Gomes Canotilho, 'os contratos e acordos colectivos de trabalho têm um valor normativo pelo menos equivalente ao das portarias regulamentares (cfr. artº. 57º/4 da C.R.P.). Como actos normativos, e na parte em que têm valor normativo, estão sujeitas ao controlo de constitucionalidade'
(Direito Constitucional, 5ª edição, 1991, pág. 1011). No mesmo sentido, se pronunciaram também Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º vol., 1984, pág. 60), Vitalino Canas (Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal Constitucional, Cognitio, Lisboa, 1984, pág.
60, nota 54) e Luís Nunes de Almeida (O Tribunal Constitucional e o conteúdo, a vinculatividade e os efeitos das suas decisões, Portugal - O Sistema Político e Constitucional, págs. 947/948).
Em sentido contrário, porém, Jorge Miranda observa que 'a fiscalização da constitucionalidade não abrange normas provenientes da autonomia privada ou da autonomia colectiva, como as provenientes de convenções colectivas de trabalho (art. 57º,nº 4); não abrange, simplesmente, porquanto qualquer contradição entre essas normas e a Constituição não se reconduz, como acima vimos, a inconstitucionalidade no sentido técnico rigoroso e elas só poderão ser arguidas, nos termos gerais das respectivas normas, perante os tribunais competentes em razão da matéria.' (Manual de Direito Constitucional, tomo II, 1983, pág. 347). Este autor acrescenta que já as portarias de regulamentação do trabalho são susceptíveis de fiscalização de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional (ib. nota 3).
Seja qual for a concepção que se queira adoptar sobre a natureza jurídica das convenções colectivas de trabalho (isto é, quer se propenda para uma concepção contratualista, jurisprivatística, quer para uma concepção jurispublicística, quer para uma concepção intermédia, quer para a de um tertium genus), uma coisa é certa: no nosso direito vigente, as convenções colectivas de trabalho não têm constitucionalmente fixado o regime da sua eficácia, já que a Constituição remete tal fixação para a lei ordinária no artigo 56º, nº 4 (57º, nº 4, na versão anterior à revisão de 1989).
E a lei ordinária concretiza essa norma remissiva no Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro. Dispõe o artigo 7º deste diploma:
1. As convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as subscrevem e as inscritas nas associações patronais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros quer das associações sindicais celebrantes, quer das associações sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes.
2. As convenções outorgadas pelas uniões, federações e confederações obrigam as entidades patronais empregadoras e os trabalhadores inscritos, respectivamente, nas associações patronais e nos sindicatos representados nos termos dos estatutos daquelas organizações, quando outorguem em nome próprio ou em conformidade com o mandato a que se refere o artigo 4º.
Daqui resulta que a lei estabelece que as convenções colectivas obrigam exclusivamente as entidades que as celebram, e bem assim as organizações e trabalhadores que nelas estão ou venham a estar inscritos. E tanto assim que, para estender a eficácia dessas convenções a terceiros, se torna necessário usar um acto normativo público, a portaria de extensão prevista no artigo 29º, nº 1, do mesmo diploma.
Comparativamente, o artigo 39º, último parágrafo, da Constituição italiana estabelece que 'I sindacati [organizações profissionais de trabalhadores ou empresários] registrati [...] possono, rappresentati unitariamente in proporzione dei loro iscritti, stipolare contratti collettivi con efficacia obbligatoria per tutti gli appartenenti alle categorie alle quali il contrato si referisce'. Gustavo Zagrebelsky começa por comentar que aquela norma implica o reconhecimento explícito do contrato colectivo de trabalho como modo de produção de normas jurídicas, isto é, como fonte de direito (segundo a conhecida formulação de Carnelutti, para quem tal contrato tem corpo de contrato e alma de lei). Todavia, logo acrescenta que aquela norma autorizatória nunca teve qualquer concretização, por obstáculos técnicos e políticos que foram opostos à sua regulamentação, e que radicam sobretudo na contradição, latente em tal norma, entre o princípio da liberdade de organização sindical e a necessidade de regulamentar as associações profissionais, para tornar efectiva a eficácia erga omnes prevista naquele artigo 39º; e, daí, retira, como consequência, que os contratos colectivos hoje efectivamente celebrados não assumem a natureza de fontes de direito em sentido próprio
(Manuale di Diritto Costituzionale, 1 - Il sistema delle fonti del diritto, UTET, Torino, 1988, págs. 247 e segs.).
Quanto ao direito português, e apesar de o artigo 56º, nº 4, da Constituição (actual redacção) dar ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer a eficácia das normas das convenções colectivas de trabalho, estas não são efectivamente configuradas, na legislação ordinária, como actos normativos públicos, as entidades que as subscrevem não têm poderes de autoridade, e o clausulado normativo que elas integram não obriga terceiros.
Segundo A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1991, pág. 321), 'com as particularidades acima examinadas, que têm a ver com deveres instrumentais, as convenções colectivas surgem no termo do livre exercício de poderes de celebração e de estipulação. Elas formam-se nos moldes contratuais e têm eficácia porque as pessoas constituíram livremente associações para que estas, também em liberdade, contratassem em termos colectivos. - Os poderes que explicam este mecanismo não são originários, antes assentando numa normativização conferida pelo Direito objectivo. Mas isso ocorre precisamente com os diversos negócios jurídicos. - A autonomia colectiva representa assim uma particular forma de autonomia privada; as convenções colectivas de trabalho são negócios (privados) colectivos'.
Mas, mais à frente, este autor acrescenta que 'a privatização das convenções colectivas, fortemente alicerçada no princípio da filiação e na liberdade sindical e de associação, não pode ser levada até ao fim. ... O regime em vigor reconhece expressamente a contratação colectiva - artigo 57º/3 e 4 da Constituição - e aponta-a como fonte - artigo 12º/1 da LCT - sendo um facto que ela permite a revelação de normas jurídicas. [...] As convenções colectivas são, pois, negócios (privados) colectivos e fontes mediatas do Direito' (ib. pág.
322).
O argumento retirado do texto do artigo 12º, nº 1, da Lei do Contrato Individual de Trabalho não será assim tão decisivo na determinação da natureza jurídica da convenção colectiva de trabalho: é preciso ter em conta que tal diploma é o Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de 1969, e que aí as convenções colectivas de trabalho são colocadas em último lugar na ordem de precedência, depois das normas legais, das emitidas pelo Ministério das Corporações e Previdência Social, e mesmo depois das normas corporativas. Trata-se, como se vê, de uma disposição legal estabelecida no quadro do anterior sistema jurídico corporativo, e cuja desactualização é patente.
Em resumo: a lei regulamenta a eficácia específica das convenções colectivas impondo a sua obrigatoriedade unicamente quanto àqueles que devem considerar-se representados pelas entidades que as subscrevem, à luz dos princípios do direito do trabalho. As organizações profissionais que as celebram não têm poderes de autoridade mas apenas poderes de representação, isto
é, de defesa e de promoção da defesa dos direitos e interesses dos respectivos filiados (cfr. artigo 56º, nº 1, da Constituição). E, assim, o clausulado que elas incorporam não contém normas, entendidas como padrões de conduta emitidos por entidades investidas em poderes de autoridade.
Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma estabelecida no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, parece seguro, pelo menos, que com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de entidades investidas em poderes de autoridade, e mais precisamente, os actos dispositivos dos poderes públicos. Por exemplo, esta questão é dada como assente no Acórdão nº 26/85 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Abril de
1985), onde se concluiu que nem todos os actos dos poderes públicos devem considerar-se normas (e, portanto, sujeitos à fiscalização do Tribunal Constitucional): aí se optou por um conceito funcionalmente adequado, segundo o qual não são normas as decisões judiciais e os actos da administração sem carácter normativo, nem os actos políticos ou actos de governo em sentido estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão nº 150/86 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se considerou ser o mesmo aplicável, não só aos casos de fiscalização abstracta, mas também aos casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa verificar é se o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a lei ou a Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse exame escape à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas
(Acórdão nº 472/89, in Diário da República, 2ª série, de 22 de Setembro de 1989; e Acórdãos nº 156/88 e nº 157/88, in Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro e de 26 de Julho de 1988, respectivamente).
Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280º, nº 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56º, nº 4, da Constituição se refere a normas das convençõescolectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo artigo 3º, nº 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda no texto acima referido.
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão nº
392/89 (Diário da República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se conheceu de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto de uma portaria de extensão. É que, como então se assinalou, ' a cláusula foi aplicada ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a
'apropriou', fazendo seu o respectivo conteúdo normativo', sendo certo que 'as normas de uma portaria preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao controlo de constitucionalidade'.
10. Conforme já atrás se deixou expresso, entende-se não dever seguir esta fundamentação pelas razões expostas na declaração de voto do Conselheiro Sousa e Brito, que se passa a transcrever na parte ora pertinente:
'Nada mais resta do que aplicar os resultados que uma ponderação da jurisprudência anterior do Tribunal permitia alcançar, às convenções colectivas de trabalho.
Não é duvidosa a normatividade das convenções colectivas de trabalho, porque regulam o comportamento dos membros das associações sindicais subscritoras, dos membros das associações patronais subscritoras e ainda dos trabalhadores ao serviço de empresas públicas ou de capitais públicos, cujo processo de negociação foi autonomizado, sejam ou não membros das associações negociantes. Não se aplicam aos membros actuais, mas também aos futuros e aos que não são membros mas já alguma vez o foram durante o período da sua vigência
(artigos 8º., 9º. e 3º., nº. 3, da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho
(Decreto-Lei nº. 519-C1/79, de 29 de Dezembro)). Uma vez que a generalidade da previsão normativa não é exigida pelo conceito funcional de norma, sempre seria irrelevante para a normatividade que as convenções não se apliquem aos trabalhadores não filiados nem às entidades patronais não subscritoras ou não filiadas. Mas, dada a delimitação que a lei faz do âmbito de aplicação pessoal das normas das convenções colectivas, é claro que elas não se aplicam a uma classe fechada, mas a uma classe aberta de casos e de pessoas, são susceptíveis de aplicação indefinidamente repetida, são, portanto, gerais e abstractas. Aplicam-se, nomeadamente da forma indicada, a trabalhadores futuros e a futuras entidades patronais.
Também contra o que diz o acórdão, não é duvidoso que a norma sub judicio viola directamente a Constituição, nomeadamente o princípio da igualdade, e não há uma primária ilegalidade que exclua o pretendido exame. É certo que as convenções colectivas não podem 'limitar o exercício dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos' (alínea a) do nº. 1 do artigo 6º. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho), mas a disposição do artigo 6º. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho não transforma as normas constitucionais em normas legais, não incorpora o princípio da igualdade, que é aplicável à relação de trabalho por força da Constituição e não por força da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho.
As normas das convenções colectivas são potencialmente heterónomas, vinculam as pessoas por elas abrangidas nos termos da lei independentemente e eventualmente contra a vontade dos destinatários das normas. Impõem-se aos contratos individuais de trabalho que lhes estão subordinados como se fossem leis imperativas e mesmo contra leis imperativas: ao alterarem mínimos legais de remuneração, por exemplo, proíbem cláusulas de contratos individuais permitidas por lei (alínea c) do nº. 1 do artigo 6º. enº.
1 do artigo 14º. da Lei de Regulamentação Colectiva de Trabalho).As convenções colectivas de trabalho têm, é certo, uma imperatividade em sentido único, só enquanto estabelecem condições mais favoráveis para os trabalhadores: impõem níveis mínimos e não tectos máximos, os quais só podem ser estabelecidos por lei. Além disso, valem para trabalhadores e entidades patronais que não se integram em associações ou entidades subscritoras no momento da celebração da convenção ou que deixaram de as integrar. É certo que para as partes outorgantes, as normas das convenções colectivas são autónomas, são resultado de um processo negocial de criação normativa, regulam de acordo com a sua vontade os seus interesses, mas impõem-se depois aos seus destinatários por força e nos termos da lei, independentemente da contribuição destes para a sua criação.
Dizer que os destinatários são representados pelas associações outorgantes só faz sentido relativamente aos que são associados ao tempo da celebração. Mas mesmo quanto a estes cumpre acentuar que a filiação numa associação sindical ou patronal não tem o sentido de um mandato de representação em futuras convenções colectivas nem é um acto de submissão voluntária a prévias ou futuras convenções colectivas - do mesmo modo que a aquisição de cidadania por naturalização, por exemplo, não é um acto de submissão voluntária às leis do Estado. A sua submissão às convenções colectivas
- como além, no caso de naturalização - não deriva normativamente da vontade mas da lei (assim, Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 184 ss).
Decisiva é, porém, a questão de saber se as convenções colectivas de trabalho têm pretensão de 'generalidade', isto é, se se integram no sistema do direito objectivo, se prosseguem ao fim e ao cabo os fins da Constituição, não obstante o espaço da autonomia na sua negociação. De tal depende justificar-se ou não, quanto a elas, o controlo específico de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. O mesmo é dizer, na terminologia adoptada (supra nº. 6), que de tal depende serem ou não heterónomas no sentido funcional relevante.
São úteis a este respeito os contributos constitucionalistas alemão e italiano, não obstante o contexto constitucional e legal seja parcialmente diferente. Na Alemanha é discutida e ainda não foi decidida pelo Tribunal Constitucional Federal a questão de saber se as convenções colectivas são actos de criação de direito e se, por isso, é possível contra eles um
'Verfassungsbeschwerde' (recurso de agravo constitucional).Benda (Benda, Klein, Lehrbuch des Verfassungsprozessrechts, 1991, p. 1835) põe, em minha opinião, o dedo na ferida, embora as suas considerações estejam afinal em contradição com toda a evolução do direito do trabalho para a sua plena integração na ordem constitucional, com paralelas consequências no entendimento das relações entre o Estado e a sociedade como relações jurídicas subordinadas à Constituição. Benda começa por expor a opinião contrária nos seguintes termos: 'A opinião que, além do mais, vê nos contratos colectivos objectos possíveis de um agravo constitucional, invoca não por acaso a função objectiva do agravo constitucional. A sua função não é simplesmente esgotar-se na protecção da esfera dos direitos fundamentais do indivíduo. Antes deve preencher também uma
'função geral' dentro da ordem jurídica na medida em que defende o direito constitucional e promove a sua interpretação e desenvolvimento. Daqui resulta a tarefa de conceber o conceito de poder público de modo tão amplo que não fique limitado ao exercício da autoridade estatal, mas abranja outras relações de autoridade, que se tivessem estabelecido a par do poder estatal e subsistissem por força do reconhecimento estatal'. Passando a expor a sua própria opinião escreve: 'tais considerações têm, porém, consequências para o entendimento da liberdade no domínio da liberdade sindical (artigo 9º., secção 3, da Lei Fundamental), que é uma parte importante da liberdade dos cidadãos. A liberdade sindical e a autonomia das convenções colectivas não são expressão de uma divisão de trabalho entre Estado e partes convencionais ou da assunção pelas forças sociais de funções públicas. Elas devem, ao contrário, respeitar um espaço livre do Estado. Nisso tem-se em conta que as decisões tomadas neste domínio independentemente do Estado, tais como a conclusão de contratos colectivos podem ter reflexos muito importantes, mas também prejudiciais, sobre a política económica e financeira. Se as partes convencionais fossem 'poder público', estariam nas suas convenções vinculadas ao bem comum. É certo que a consciência de ser corresponsável pelo todo é um pressuposto essencial também da autonomia convencional. Mas se associações, que representam interesses parciais legítimos, são vinculadas juridicamente ao bem comum ou se lhes é imposta uma 'vinculação social', então não só se limita o carácter liberal da autonomia convencional, como também o Estado se desonera da sua obrigação de actuar no interesse do bem comum, no caso de derivarem perigos da actividade de associações livres e não incorporadas no Estado'. Quanto à avaliação que Benda faz dos argumentos dos que defendem que as convenções colectivas são fontes de direito, já aqui se mostrou que o reconhecimento estatal das normas não implica o carácter de poder público das partes convencionais como entidades criadoras de direito. Por outro lado, se é verdade que é a vinculação ao bem comum que fundamenta o reconhecimento das convenções colectivas como direito objectivo e não o invés, não é menos que se trate de uma questão a responder na base do direito positivo, e aí as várias manifestações do reconhecimento podem ser outras tantas provas do carácter jurídico e não de novas regras da autonomia privada, das normas das convenções colectivas. A ser assim, como se pretenderá para o direito português, haverá que concluir-se que as regras achadas por concordância de empregadores e trabalhadores na prossecução dos seus interesses parciais são, em princípio, as mais conformes com o bem comum a que estão não obstante vinculadas e que o Estado não está desonerado de promover através da legislação económica financeira e da legislação laboral de enquadramento e suprimento que lhe competem. Uma orientação relevante, apesar das críticas, parece, aliás, ser a do Tribunal Constitucional Federal Alemão, embora formulada em contextos diferentes do do objecto do processo constitucional. Assim aquele Tribunal disse que 'a convenção colectiva contém na sua parte normativa regras jurídicas, isto é, disposições imperativas - nos termos do §
4, secção 3ª da Lei da Convenção Colectiva - gerais-abstractas sobre o conteúdo das relações jurídicas de trabalho por ela abrangidas '(BVerfGE 34, 3O7 [317]. Na criação de normas pelas partes convencionais trata-se de legislação no sentido material que produz normas em sentido técnico-jurídico (acórdão de 24 de Maio de 1977: BVerfGE 44, 341)'.
Em Itália existia a prática de obter a eficácia erga omnes das normas dos contratos colectivos de âmbito limitado através de decretos legislativos delegados de recepção daquelas normas. Estes decretos tinham a natureza de uma lei transitória, provisória e excepcional, mas podiam ser reiterados, obtendo-se assim um efeito semelhante às portarias de extensão do direito português. A Corte Costituzionale (sentença 70/1963) considerou inconstitucionais as leis de reiteração, por serem uma forma de estabilizar um sistema de eficácia erga omnes das convenções colectivas diverso do previsto no artigo 39º da Constituição Italiana que prevê a possibilidade de convenções colectivas de trabalho com eficácia obrigatória para todos os que pertencem às categorias profissionais a que as convenções se referem. Mas a jurisprudência passou a entender que as convenções colectivas assumiam indirectamente uma eficácia geral por aplicação imediata do artigo 36º da Constituição Italiana, na parte relativa aos direitos retributivos do trabalhador. Em síntese da descrição que faz desta solução, conclui Zagrebelsky (Manuale di Diritto Costituzionale, I, 1984, p. 252 ss.) que ' o direito efectivo triunfou sobre o direito formal. Se bem que de modos indirectos, a contratação actual chega a valer de um modo que se assemelha bastante mais ao que é típico das fontes de direito do que dos actos de autonomia privada '.
Passando finalmente ao exame do direito português, deverá dizer-se que ele claramente reconhece as convenções colectivas de trabalho como fontes de direito e que as integra na unidade sistemática do direito objectivo subordinado à Constituição, pelo que as normas das convenções colectivas não são só reconhecidas como heterónomas.
Desde logo, o nº. 4 do artigo 56º da Constituição tem o sentido de reconhecer como 'normas' jurídicas as das convenções colectivas de trabalho.
Quando dispõe que ' a lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas ', a Constituição não deixa ao arbítrio do legislador ordinário a própria existência das convenções colectivas como normas jurídicas, mas apenas as modalidades do seu regime. De qualquer modo, a lei tem de respeitar a garantia constitucional às associações sindicais do direito de contratação colectiva (nº. 3 do mesmo artigo 56º.).A redacção do nº. 4 é altamente significativa na medida em que atribui à lei e não à vontade das partes a determinação da legitimidade das partes e do âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas. Se se tratasse de autonomia privada, essa legitimidade e esse âmbito estariam predeterminados pela natureza das coisas: as convenções só poderiam obrigar as partes contratantes. A redacção revela assim que a Constituição teve em vista a manutenção das características essenciais do instituto jurídico no direito português da altura, que se mantêm hoje (artigo 12º. da Lei do Contrato Individual de Trabalho, ainda em vigor; artigos 4º., 5º. e 9º. da Lei nº. 169-A/76, de 28 de Fevereiro, correspondentes aos artigos 6º, 14º. e 7º. do Decreto-Lei nº 519-C1/79), dando justificadamente uma base constitucional à heteronomia, como fonte de direito, das convenções colectivas.
Isto é confirmado, de forma decisiva, pelo confronto entre o nº. 3 e o nº. 4 do artigo 56º. Na verdade, a Constituição não reconhece as normas das convenções colectivas como consequência da atribuição de um poder público ou sequer normativo a certas entidades ou órgãos. Apenas ressalva o direito de contratação colectiva de cada associação sindical, como uma possível parte contratual, direito que terá que ser respeitado pela lei definidora das regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções, além de que implica desde logo um espaço de autonomia reservado à contratação colectiva. O reconhecimento das normas das convenções colectivas é feito pela Constituição através da criação da forma jurídica da convenção colectiva, cujas normas, por revestirem essa forma, têm a eficácia que a lei, não a vontade das partes, determinar.
O regime legal veio desenvolver e reafirmar as determinações constitucionais. Além do que já se disse sobre o âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas, importante é a inserção das convenções colectivas no sistema de fontes do direito do trabalho. Do artigo 12º. da Lei do Contrato Individual de Trabalho e dos artigos 5º, 6º, e 14º., nº. 1 da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho deriva, nomeadamente, que as convenções colectivas se situam hierarquicamente abaixo das normas jurídicas de origem estatal, mas que regulam os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades patronais reconhecido por contrato individual de trabalho, não podendo ser afastadas por estes salvo para estabelecer condições mais favoráveis aos trabalhadores. As normas convencionais que estabelecem condições mais favoráveis aos trabalhadores prevalecessem nessa parte sobre as normas estatais que derrogam relativamente às entidades patronais e aos trabalhadores abrangidos pela convenção. Nestas as normas que impõem limites mínimos não são dispositivas mas imperativas, contêm uma proibição de limites contratuais abaixo dos mínimos e uma permissão de limites contratuais superiores. As normas mais favoráveis dos contratos individuais movem-se dentro do permitido, não derrogam parcialmente a norma que as permite. Quanto às normas estatais dispositivas, são derrogadas parcialmente pelas convenções colectivas mais favoráveis, e são afastadas pelos contratos individuais em todos os casos. Ora a derrogação parcial de normas estatais só pode ser feita por outras normas jurídicas igualmente heterónomas.
O argumento também vale, por maioria de razão, quando não há subordinação hierárquica, mas identidade de nível, entre a norma estatal e a convenção colectiva. É o que se passa entre as portarias de regulamentação e as convenções colectivas. Estas últimas fazem cessar automaticamente a vigência das portarias em cujo âmbito são aplicáveis, relativamente aos trabalhadores e identidades patronais abrangidas pelas convenções (artigo 38º. da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho).
O mesmo se diga das decisões arbitrais em conflitos colectivos que resultem da celebração ou revisão de uma convenção colectiva, decisões que têm os mesmos efeitos das convenções colectivas (nº. 8 do artigo 34º. da mesma Lei). Ora, segundo a doutrina do acórdão nº. 15O/86, as decisões arbitrais contêm normas sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal. É inadmissível que deste ponto de vista as normas das convenções colectivas tenham natureza diferente das normas das decisões arbitrais.
O âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas pode ser estendido, total ou parcialmente, a entidades patronais do mesmo sector económico e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga mediante portarias de extensão (artigos 27º. a 29. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho). As portarias de extensão tornam-se necessárias por força do princípio da igualdade (artigo 13º. da Constituição) e da sua especial aplicação que é o princípio de que para trabalho igual salário igual (alínea a) do nº. 1 do artigo
59º. da Constituição). A relatada jurisprudência constitucional italiana (supra nº. 11) pôs este ponto em relevo. Mesmo sem portaria, a imediata aplicabilidade do princípio já impõe que na mesma empresa os trabalhadores de igual qualificação tenham as mesmas condições remuneratórias, independentemente da sua filiação sindical. Todos eles devem ser considerados no número de trabalhadores por categoria profissional envolvidos no processo que se situem no âmbito da aplicação do acordo a celebrar (nº. 4 do artigo 22º. da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho). Mas o princípio também vale para empresas e trabalhadores fora da convenção mas em iguais circunstâncias. As portarias de extensão não se aplicam aos trabalhadores abrangidos directamente pelas convenções colectivas que estendem. Ora o princípio da igualdade que fundamenta a extensão do âmbito pessoal de um certo regime jurídico, proíbe também que tenham diferente regime jurídico trabalhadores e empresas que se encontram em circunstâncias iguais do ponto de vista relevante da igualdade. Ora não há dúvida de que as portarias de extensão são fontes de direito objectivo, contêm normas jurídicas 'gerais' e, portanto, vinculadas ao bem comum como é entendido no Estado de direito democrático da Constituição e sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional. É jurisprudência assente (Acórdão nº. 392/89, Diário da República, 2ª Série, de 14 de Setembro p. 9177 ss.) e o acórdão também o confirma ( nº. 7 ). Seria uma ofensa da igualdade, se as normas da convenção colectiva não estivessem sujeitas aos mesmos critérios de validade, e se as pessoas por esta abrangidas não tivessem os mesmos direitos garantidos da mesma maneira, inclusivamente do ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade. E que a lei assim o considera depreende-se desde logo de se tratar de portarias de extensão e não, como na Alemanha, de generalização. Se a portaria tivesse uma diferente natureza jurídica ( norma jurídica em vez de regra da autonomia privada ), diferentes critérios de apreciação da sua conformidade com a Constituição e diferente regime de controlo da constitucionalidade, então o princípio da igualdade exigiria que o Estado substituísse o título e o regime dos direitos e obrigações resultantes da convenção e 'generalizasse' o regime desta. Não o faz porque pressupõe que as normas da convenção já têm a mesma qualidade jurídica e o mesmo regime que a portaria se limita a estender a outra classe de pessoas.
As portarias não visam, portanto, essencialmente, controlar a conformidade das convenções colectivas com a Constituição e a lei e com a política económico-financeira do Governo. Não há controlo do fundo deste tipo no processo de depósito para publicação e entrada em vigor das convenções, que o Governo controla ( artigos 24º a 26º da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho ). A interpretação correcta é antes a de que se comete aos parceiros sociais a determinação de certos aspectos da política económico-social e de que essa comissão serve melhor o bem comum do que a interferência do Estado nessa esfera.
Finalmente o Código de Processo de Trabalho prevê acções de anulação e interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho
(artigo 177º e ss.), estatuindo-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre tais questões tem o valor de assento e como tal é designado, e será publicado na 1ª Série do Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego. Sem caber discutir aqui a constitucionalidade dos assentos, tem justamente o Tribunal considerado que os assentos contêm normas susceptíveis de controlo específico da constitucionalidade (cfr. Acórdão nº. 359/91, Diário da República, I série-A, de 15 de Outubro de 1991, p. 5332 ss.). Seria absurdo que a norma interpretativa de uma cláusula de convenção colectiva de trabalho fosse uma norma jurídica objecto possível do processo constitucional, e que a materialmente idêntica norma interpretada já não o fosse. O assento fixa direito, e por isso só anula ou interpreta normas jurídicas, nunca regras da autonomia privada.'
11. Chegados, assim, à conclusão que as regras jurídicas constantes das convenções colectivas de trabalho se devem ter como normas para efeitos do controlo de constitucionalidade cometido a este Tribunal, importa, portanto, retirar as necessárias conclusões quanto à presente reclamação.
E tal conclusão só poderá ser no sentido do seu deferimento parcial, considerando-a como tempestiva e devendo o recurso de constitucionalidade sobre que versa ser admitido na parte referente à questão da constitucionalidade da norma constante da cláusula 89ª do Acordo de Empresa.
Termos estes em que se decide deferir parcialmente a reclamação.
Lisboa, 2 de Março de 1994
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto)
Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Proc.Nº 276/93 Sec. 1ª Rel. Cons. António Vitorino DECLARAÇÃO DE VOTO
1. - Votei vencido quanto à questão da tempestividade do recurso bem como quanto à posição que fez vencimento na apreciação da questão de fundo.
2. - Entendi que o recurso vinha ferido de intempestividade em resumidas contas porque, na minha maneira de ver, o nº 2 do artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) não pode dissociar-se do que se dispõe no nº 4 do artigo 70º da mesma Lei.
É certo e não contesto que a lei processual civil qualifica como ordinário o recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com fundamento em oposição de julgados.
Mas, como relator do Acórdão nº 236/90, de 3 de Julho de 1990 (ainda inédito), no qual subscrevi a posição vinda da 2ª secção deste Tribunal e que não reconhece aos recursos baseados única e exclusivamente em oposição de julgados, a natureza de «recurso ordinário» para o efeito previsto no artigo
78º, nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional, posição esta que já tinha sido defendida antes pelo Tribunal nos Acórdãos nºs 498/89, 59/90, 87/90 e 105/90
(todos inéditos).
Nos termos de tal posicionamento, o Tribunal decidiu afastar o critério tradicional de distinção entre recursos ordinários e recursos extraordinários, tal como fora criada e desenvolvida no âmbito do processo civil e alargada a outros ramos de direito. Embora os acórdãos mencionados (salvo o nº
105/90) se reportem a casos relativos à fixação do efeito do recurso de constitucionalidade (artigo 78º, nº 2 da LTC) respeitante a um processo de suspensão de eficácia de actos contenciosamente impugnados, o certo é que a fundamentação do referido posicionamento assenta essencialmente no entendimento de que tal tipo de recurso é, afinal, um recurso sui generis, que depende apenas da verificação de um específico pressuposto - a existência de um anterior acórdão em oposição ao proferido.
É certo que, no Acórdão nº 105/90 (que não subscrevi), se aceitou a possibilidade de a parte poder interpor recurso para o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), recorrendo para o Tribunal Constitucional só depois de resolvido aquele recurso, não se impondo todavia que tivessem de interpor tal recurso ou de deixar decorrer o respectivo prazo, para suscitar a questão de constitucionalidade.
Daí se concluiu que, o recurso para o Tribunal Pleno com fundamento em oposição de julgados podia ser 'qualificado como «ordinário» para os efeitos do artigo 70º, nº 4 e do artigo 75º nº 2, todos da Lei do Trib. Const.', não o sendo, todavia, para o efeito do artigo 70º, nº 2, do mesmo diploma.
No entanto, em meu entender, há que aprofundar este relacionamento inseparável entre o artigo 70º, nº 4 e o artigo 75º, nº 2, da LTC.
Estabelece o artigo 70º, nº 4, que 'se a decisão admitir recurso ordinário, a não interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de interpô-lo de ulterior decisão que conforme a primeira', isto é, este preceito apenas confere o direito de recurso para este tribunal
'de ulterior decisão que confirme a primeira'.
Pelo seu lado, a norma do artigo 75º, nº 2, relativa ao prazo de interposição do recurso de constitucionalidade, determina que 'interposto recurso ordinário que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torne definitiva a decisão que não admite o recurso'.
Este preceito esclarece que só o recurso ordinário que não tenha sido admitido por a decisão não ser recorrível é que permite começar a contar o prazo do recurso de constitucionalidade a partir do 'momento em que se torne definitiva' aquela decisão de não admitir o recurso.
Nos presentes autos está em causa a tempestividade da interposição do recurso de constitucionalidade, levantado contra a decisão final de mérito proferida pela secção do STJ antes da interposição do recurso por oposição de julgados, questão esta decorrente do facto de o reclamante ter interposto recurso para o Pleno do STJ e, como o recurso foi julgado extinto pelo acórdão da secção, pretendeu então o reclamante interpor recurso de constitucionalidade daquele acórdão proferido sobre o mérito, o que não foi aceite pelo tribunal recorrido.
Ora, de acordo com o preceituado no nº 4 do artigo 70º da LTC, tal recurso só podia ser recebido se se entendesse o recurso para o Pleno como recurso ordinário e, além disso, se se considerasse que a decisão interlocutória da secção era uma decisão 'que confirme a primeira'.
E, se se considerar o nº 2 do artigo 75º da LTC, então às exigências referidas haverá ainda que acrescentar para além de se tratar de um «recurso ordinário», que o mesmo não tenha sido admitido por a decisão ser irrecorrível.
No caso, a entidade reclamante não interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 13 de Maio de 1992, inicialmente proferido pelo STJ. Mas mandaria a prudência que desde logo o tivesse feito pois caberia no
âmbito de uma prognose de experiência feita e que sempre será exigível das partes, que o próprio Supremo Tribunal poderia vir a concluir pela inexistência de oposição de julgados, em sede de julgamento da questão preliminar (artigo
766º do C.P.C.). E ainda que viesse entretanto a ser decidido que essa oposição efectivamente existia, bem poderia o mesmo Supremo Tribunal vir resolver o conflito da jurisprudência em sentido que fosse contrário àquele que se tinha sustentado no acórdão tirado no processo em que fora parte o recorrente.
Quer dizer, nestas duas últimas situações não ocorreria o requisito considerado indispensável pelo nº 4 do artigo 70º da LTC: uma ulterior decisão que viesse confirmar a primeira não recorrida.
E, na hipótese residual - decisão final do Tribunal Pleno que vier a confirmar a decisão de mérito da secção - o recurso de constitucionalidade a interpôr deve visar a última decisão do Pleno e respeitar os requisitos gerais e especiais de admissibilidade de tais recursos. Isto é, se o acórdão que resolver a oposição de julgados for no sentido defendido pelo recorrente e confirmar a decisão de mérito da secção e ainda aplicar ou desaplicar a norma cuja conformidade constitucional vinha sendo questionada, então do que se trata é de um normal recurso de constitucionalidade de uma decisão que é recorrível para o Tribunal Constitucional porque dela já não cabe qualquer outro recurso no ordem processual aplicável, devendo ser observados os outros pressupostos legais.
O que me parece claro é que, uma decisão que decide inexistir oposição de julgados nunca pode valer como confirmação de um qualquer acórdão anterior. O seu conteúdo é precisamente e meramente o de reconhecer essa inexistência, sendo que não se pronuncia sobre a decisão anterior nem analisa a respectiva fundamentação. É, mais precisamente, uma 'questão preliminar' que, na perspectiva do recurso com fundamento em inconstitucionalidade, tem uma função meramente ancilar e indissociável, nesta perspectiva, de uma hipotética decisão ulterior do mesmo Supremo Tribunal que eventualmente venha a resolver o conflito, resolvendo-o no sentido de vir a confirmar a orientação contida no acórdão de que anteriormente se poderia ter interposto recurso de constitucionalidade.
Nesta última situação, como se expôs antes, poderia ser interposto recurso de constitucionalidade, nas condições atrás referidas, e sendo o recurso dirigido contra o acórdão do Pleno, devendo respeitar todos os requisitos de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade.
Tudo isto significa que o recurso por oposição de julgados para o Pleno (do STJ ou do STA), dada a sua peculiar natureza - total dependência da existência de decisões opostas - não pode ser considerado para efeitos do regime de interposição do recurso de constitucionalidade -, um «recurso ordinário».
Não há propriamente que invocar especificidades do contencioso da constitucionalidade senão aquela de que se trata de um recurso para apreciação de normas que tenham sido desaplicadas ou aplicadas. Em sede da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da LTC a 'última palavra' em sede de aplicação tem de ser uma decisão que aplique uma determinada norma. Admito que a esta exigência se aplique a designação de 'especificidade', mas não considero necessária a utilização de tal qualificativo.
3. - Quanto ao mérito do recurso, não posso deixar de aderir à posição que maioritariamente votou o Acórdão nº 172/93 (in Diário da República, IIª Série, de 18 de Junho de 1993), aderindo assim à doutrina do Tribunal do
'conceito funcional' de norma, para efeitos de controlo de constitucionalidade e
à delimitação nele feito do que deve considerar-se «norma» para aquele efeito.
Mas neste domínio há limites, não podendo ir-se tão longe como se faz no acórdão.
Designadamente, norma é fonte de direito, é direito objectivo no sentido de expressão de uma vontade que unilateralmente se impõe a sujeitos que em relação a ela própria são terceiros, isto ainda que lhe falte generalidade.
Cláusulas acordadas entre sujeitos juridicamente colocados em posição de paridade não cabem neste conceito, salvo se a Constituição ou a Lei lhe vierem a conferir conotação diferente. Mas então assistir-se-á a uma novação dessas cláusulas: o seu título de validade formal, o seu fundamento, passaria a vir então não da vontade dos sujeitos que tinham intervindo na respectiva formação, mas da própria ordem objectiva.
Com a contratação colectiva nada disto se passa. Ela continua a ser produto da vontade dos contratantes, só para eles sendo vinculativa, e este aspecto é decisivo, como expressão da autonomia da vontade que o Estado tem de reconhecer ao cidadão, singularmente considerado ou livremente constituído em membro de uma associação.
Os sindicatos e associações patronais são associações de direito privado - não são associações públicas. Na verdade, considerar como norma, para efeitos de controlo da constitucionalidade, uma cláusula de convenção colectiva
é conferir a esta a natureza de acto de autoridade, com eficácia idêntica à de um acto normativo proveniente de uma autoridade pública no exercício de poderes de império.
De acordo com a própria Constituição (artigo 56º, nºs 3 e 4), é à lei que é atribuído o poder de determinar 'as regras respeitantes à legitimidade para a celebração de convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas', concretização esta feita no artigo 7º do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro.
Mas, como se escreveu no Acórdão nº 172/93, 'estas [as normas das convenções colectivas] não são efectivamente configuradas, na legislação ordinária, como actos normativos públicos, as entidades que as subscrevem não têm poderes de autoridade e o clausulado normativo que elas integram não obriga terceiros'.
As convenções colectivas tal como os acordos colectivos ou os acordos de empresa - como é o que está em causa nos presentes autos - continuam a ser verdadeiros «contratos colectivos» com primazia sobre os contratos individuais, mas ainda negócios privados, mas de eficácia alargada, por colectivamente fixada. Efectivamente, qualquer que seja a teoria que se defenda sobre a natureza jurídica da convenção colectiva (concepção contratual, mandato, gestão de negócios, contrato a favor de terceiro, contrato normativo, teoria corporativa ou da associação, concepção regulamentar ou de natureza dupla) o certo é que sempre tais convenções revelam a existência de uma faceta obrigacional e de uma faceta normativa, mas no âmbito do direito privado.
De facto, as convenções colectivas não podem: limitar o exercício dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, contrariar normas legais imperativas, incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei, estabelecer regulamentação das actividades económicas, estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelo sistema de segurança social, salvo em circunstâncias específicas, nem conferir eficácia retroactiva a qualquer das suas cláusulas, salvo quanto às tabelas salariais, em certas circunstâncias(artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79).
Esta enumeração das limitações do objecto das convenções colectivas
é suficiente para concluir que não se vê bem como possa uma norma de uma convenção colectiva violar um preceito ou princípio constitucional sem violar antes um preceito legal que se interponha entre aqueles preceitos.
Assim acontece, aliás, no caso concreto em apreço. A norma do Acordo de Empresa (AE) em questão, antes de se poder concluir que violava a norma constitucional referida sempre teria violado a norma relativo à lei de horário de trabalho que fixa o período de trabalho em oito horas, pelo que a afirmação de violação da Constituição me parece falha de conteúdo.
Acima de tudo, porém, e de acordo com a minha forma de ver as coisas, no caso de um Acordo de empresa, a lei que regulamenta a sua específica eficácia apenas impõe a sua obrigatoriedade no âmbito dos trabalhadores da empresa associados das associações sindicais que subscreveram tal acordo, não se contendo aí normas 'entendidas como padrões de conduta emitidas por entidades investidas em poderes de autoridade', e não estando tais normas sujeitas ao controlo jurisdicional de constitucionalidade, não se deveria ter tomado conhecimento do presente recurso. Vítor Nunes de Almeida
Procº nº 276/93
1ª Secção Rel.: Consº António Vitorino
Declaração de voto
1 - Votei vencido, pelas razões constantes do Acórdão nº 172/93, de que fui relator.
Reconhecendo que a questão é complexa e que se trata de um «caso de fronteira», apenas acrescentaria, neste momento, duas notas à tese sustentada na declaração de voto aposta pelo Exmº. Consº Sousa e Brito ao referido Acórdão nº 172/93, de que o presente aresto dá eco.
2 - A primeira nota tem por objectivo afirmar que, ao contrário do que ali se sustenta, o facto de o Tribunal se ter considerado competente para apreciar as normas constantes de convenções internacionais em nada implica que idêntica solução haja necessariamente de ser seguida relativamente ao costume internacional ou relativamente às normas emanadas dos órgãos competentes de organizações internacionais.
Quanto ao primeiro, por se afigurar absurdo, dada a sua natureza, pretender submetê-lo aos ditames da Lei Fundamental, pelo que há-de valer, na ordem interna, com valor constitucional ou, mesmo, supra-constitucional. Quanto às segundas, porque a sua eficácia na ordem interna não depende, ao invés do que acontece com as convenções internacionais, de qualquer acto volitivo dos poderes públicos (aprovação e ratificação), pelo que o reconhecimento do respectivo valor jurídico pela autoridade estadual se não opera de forma idêntica.
Ora, a questão que se coloca a propósito de normas como as das convenções colectivas de trabalho apresenta paralela configuração: não se trata de saber se existe um monopólio normativo do Estado, mas exactamente de determinar em que casos e termos é que normas de outros ordenamentos podem ser sujeitas ao controlo de constitucionalidade - basta pensar no Direito Canónico e, bem assim, no direito estrangeiro, aplicável por força de normas de reenvio.
Ou seja, a tese sufragada no Acórdão nº
172/93 não assenta necessariamente no questionamento da «validade dentro do Estado de normas de origem não estatal, validade que resulta simplesmente de normas remissivas, de incorporação normativa ou de reconhecimento de fontes de direito», mas no entendimento que não é obrigatório meter no mesmo saco, para os efeitos que aqui interessam, todas esses tipos de normas (por exemplo, o tratamento pode ser distinto, conforme a validade dentro do Estado resulte de normas remissivas ou de incorporação normativa).
3 - A segunda nota tem a ver com a pretensa contradição existente entre os Acórdãos nº 172/93 e nº 150/86, de que também fui relator.
Em primeiro lugar, cabe salientar que, neste último aresto citado, nunca se afirmou que era atribuído um «poder público» ou que eram atribuídos «poderes soberanos» às partes, para explicar a validade das regras de processo a observar na arbitragem, sendo, assim, errada a referência a esse acórdão feita na mencionada declaração de voto do Exmº Colega Sousa e Brito, ora reproduzida na presente decisão. Com efeito, só se afirmou que tais poderes eram apanágio dos tribunais arbitrais, como decorrência do facto de esses tribunais encontrarem acolhimento no artigo 211º da Lei Fundamental, ao mesmo título que qualquer outro tribunal, afirmação que se reitera.
Em segundo lugar, é manifestamente desadequado retirar do referido Acórdão nº 150/86 a conclusão de que as decisões arbitrais previstas na legislação sobre contratação colectiva do trabalho se encontram sujeitas a fiscalização de constitucionalidade pelo Tribunal Contitucional. Como acima se referiu, o mencionado aresto debruçou-se sobre decisões de tribunais arbitrais e estribou-se na natureza desses tribunais; pretender equiparar-lhes as decisões arbitrais no âmbito da negociação colectiva não passa, pois, de mero jogo de palavras, dada a radical diferença de natureza entre as entidades decisórias. Luís Nunes de Almeida