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Processo n.º 38/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, o ora reclamante, A., veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, do acórdão de 1 de junho de 2011, com fundamento nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
O juiz do tribunal a quo não admitiu o recurso interposto, considerando que não se verificava o circunstancialismo previsto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2. Inconformado, veio o recorrente reclamar, pugnando pela admissão do recurso.
Refere que interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, por pretender ver apreciada a constitucionalidade da interpretação, assumida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, “relativamente às normas conjugadas dos Art.os 411.º, n.º 1, 3 e 4 com o Art.º 107.º n.º 6 do C.P.P., no sentido de que aos recorrentes não poderia ser concedido prazo superior aos 30 dias conferidos pelo Art.º 411.º n.º 4, todos do C.P.P.”
Explica que o tribunal de 1.ª Instância decidiu conceder a prorrogação do prazo de interposição de recurso por vinte dias, tendo tal decisão transitado em julgado. Não obstante, o Tribunal da Relação rejeitou o recurso que lhe foi dirigido, por intempestividade, com fundamento na “inexistência jurídica” da referida decisão de prorrogação tomada na 1.ª Instância.
É sobre esta decisão de rejeição do recurso, que incide a presente reclamação.
O requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional foi indeferido pela decisão reclamada, que considerou não estar em causa qualquer interpretação normativa, mas antes o reconhecimento de um ato ilegal cometido pelo tribunal de 1ª Instância.
Segundo o reclamante, tal tese não poderá merecer acolhimento, porquanto, na verdade, está em causa “a interpretação dada em Tribunais diferentes ao mesmo instituto da “prorrogação” de prazo”.
Defende o reclamante que, em virtude do despacho da 1.ª Instância - devidamente transitado – que permitiu a prorrogação do prazo de recurso por vinte dias, o recorrente passou a dispor do prazo de cinquenta dias para interpor e motivar o recurso. Porém, à luz do entendimento plasmado no acórdão agora recorrido, o recorrente não poderia confiar em qualquer decisão ainda que transitada, já que a mesma sempre poderia ser declarada inexistente por nova decisão, esta insindicável, por não admitir recurso ordinário.
Por outro lado, o entendimento sufragado no acórdão recorrido limita o direito ao recurso do arguido, nos casos de excecional complexidade dos autos, já que não admite que o prazo máximo de trinta dias, para interpor recurso, seja prorrogável, violando “expressamente a letra da Lei, designadamente, o Art.º 107.º, n.º 6” do Código de Processo Penal.
Nestes termos, o acórdão recorrido, além de esvaziar de conteúdo o referido artigo 107.º, n.º 6, relativamente ao prazo de recurso, violou caso julgado anterior.
Não podendo o arguido “ser surpreendido por uma limitação temporal ao seu direito de recurso que quer face à Lei, quer face à decisão transitada em julgado, (…) não existia”, conclui o reclamante que “a interpretação plasmada naquele Acórdão porque violadora dos direitos e garantias de defesa do arguido deverá ser declarada inconstitucional e, em consequência substituída por uma outra que, respeitando a Lei e as decisões judiciais transitadas, dê cabal cumprimento às garantias de defesa, designadamente o direito de recurso.”
Acrescenta o reclamante que a decisão recorrida “mais não é que a denegação grosseira do direito à justiça e acesso aos tribunais, pelo que, também neste aspeto se encontra ferida na sua legalid ade, por inconstitucional.”
Refere, ainda, o reclamante que a questão de inconstitucionalidade da interpretação do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal não poderia ter sido suscitada antes da prolação da decisão recorrida, face à sua imprevisibilidade consubstanciada na natureza de decisão surpresa.
Conclui, pelo exposto, pedindo a procedência da sua reclamação.
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, acentuando que, não estando em causa qualquer ilegalidade, a invocação da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não faz sentido.
Assim, perspetivando o recurso como interposto com fundamento no disposto na alínea b) do mesmo número e preceito, defende o Ministério Público o indeferimento da reclamação, face à inidoneidade do objeto do recurso.
Explicitando, refere que, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, se questiona “a decisão da Relação quanto à forma de contagem do prazo para a interposição do recurso, nos casos em que o processo fora qualificado como de especial complexidade e tivesse havido prorrogação.
Por outro lado, o recorrente também sustenta que, tendo transitado o despacho que, na 1.ª instância, prorrogara o prazo e tendo o recurso sido interposto dentro do prazo então fixado, a Relação não poderia decidir como decidiu.”
Não obstante tais questões serem distintas, refere o Ministério Público que o recorrente se reporta a elas de forma conjunta, não enunciando, de forma adequada, em relação a cada uma delas, um problema de constitucionalidade normativa.
4. Notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC, veio o reclamante responder, referindo que pretendia ver reapreciada a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou o recurso, por si interposto, extemporâneo.
Explicita o reclamante que a pretendida reapreciação deve incidir em duas vias: por um lado, na vertente da violação do caso julgado; por outro lado, na dimensão da desconformidade com as garantias de defesa, plasmadas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, de um entendimento assente na ideia de que o prazo de recurso de trinta dias não admitiria prorrogação, independentemente da complexidade dos autos.
Na verdade, pretende o reclamante que o Tribunal Constitucional “se pronuncie (sobre) se uma decisão transitada em julgado pode ou não ser “revogada” ou, como no caso dos autos, declarada juridicamente inexistente sabendo-se que essa declaração muda as regras relativamente a um direito fundamental, qual seja, o do recurso.”
Pretende ainda o reclamante a apreciação da “constitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra à norma do n.º 6 do Art.º 107.º do C.P.P., uma vez que, nos casos de excecional complexidade sempre o direito ao recurso se encontrava limitado aos prazos resultantes do Art.º 411.º do mesmo diploma”, o que gera limitação ao direito constitucional de recurso plasmado no Art.º 32.º da Lei Fundamental.
Finaliza referindo que, ainda que se admitisse a interpretação plasmada no acórdão recorrido, “sempre teríamos em confronto normas constitucionais de diferente valia, não podendo deixar de prevalecer aquelas que tutelam interesses superiores como sejam, Direitos, Liberdades e Garantias e, bem assim, o Direito de Acesso à Justiça e aos Tribunais, tanto mais que, nos termos do n.º 1 do Art.º 18.º da C.R.P. são normas de aplicação direta.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
5. Antes de entrarmos na análise da reclamação apresentada, começamos por salientar que o recurso de constitucionalidade é interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT, considerando-se a alusão - feita pelo recorrente, no requerimento de interposição de recurso - à alínea f) do mesmo normativo desprovida de relevância, como bem acentua o Ministério Público, porquanto é manifesto que o presente recurso não se baseia em aplicação de norma, cuja ilegalidade haja sido suscitada, com fundamento em violação de lei com valor reforçado; nem na aplicação de norma constante de diploma regional, relativamente à qual haja sido suscitada a ilegalidade, por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República; nem, por último, na aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, relativamente à qual haja sido suscitada a ilegalidade, por violação do estatuto de uma região autónoma.
6. O Tribunal Constitucional tem entendido que a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade pressupõe a verificação dos seguintes requisitos gerais: a existência de uma decisão de natureza jurisdicional revestida de definitividade, como alvo de impugnação; o carácter normativo do objeto, que implica a obrigatoriedade de o recurso se reportar a normas ou interpretações normativas; a característica de instrumentalidade do recurso, consubstanciada na efetividade de repercussão útil da decisão a proferir, na solução do caso concreto a dirimir no processo base.
Além destes requisitos, comuns a todos os recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade, existem ainda pressupostos específicos do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC: o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a efetiva aplicação – expressa ou implícita - da norma ou interpretação normativa, a sindicar, como ratio decidendi da decisão recorrida; a prévia suscitação da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, pois, se tais pressupostos se encontram preenchidos in casu, elegendo, para a primeira abordagem, a análise da natureza do objeto de recurso de constitucionalidade.
O reclamante identifica o objeto do recurso como “a interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, relativamente às normas conjugadas dos Art.os 411.º, n.º 1, 3 e 4 com o Art.º 107.º n.º 6 do C.P.P., no sentido de que aos recorrentes não poderia ser concedido prazo superior aos 30 dias conferidos pelo Art.º 411.º n.º 4, todos do C.P.P.”
Ora, independentemente do acerto desta decisão, que não cabe a este Tribunal ajuizar, o certo é que a questão enunciada não detém uma verdadeira natureza normativa, não tendo o recorrente logrado isolar um critério normativo da decisão recorrida, extraível da conjugação dos preceitos que identifica, – e recondutível a um sentido com um mínimo de correspondência na literalidade dos mesmos preceitos - depurado da referência remissiva aos elementos casuísticos específicos da presente situação.
A este propósito, são transponíveis para o presente caso, mutatis mutandis, as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ), que se transcrevem:
“ (…) cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Nestes termos, não tendo o recorrente conseguido individualizar e especificar um critério normativo, entendido como regra abstrata e vocacionada para uma aplicação genérica, enunciando-o de forma clara e autónoma do caso concreto - em termos tais “que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental” (cfr. Acórdão n.º 178/95, disponível no sítio da internet já aludido) - mas, ao invés, demonstrando pretender a sindicância da decisão recorrida, na dúplice vertente da invocada violação de caso julgado e violação expressa da letra da lei (infraconstitucional), especificamente do artigo 107.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, teremos de concluir pela inidoneidade do objeto de recurso, que não corresponde a uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa.
Sendo os pressupostos de admissibilidade do recurso de necessária verificação cumulativa, torna-se ociosa a análise concreta dos restantes.
Assim, face às considerações expendidas, julga-se improcedente a reclamação, atenta a inadmissibilidade do recurso.
III – Decisão
7. Nestes termos, decide-se:
- julgar improcedente a presente reclamação, não admitindo o recurso, por inidoneidade do respetivo objeto.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de março de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.