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Proc. nº 691/92
1ª Secção Rel. Cons. Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal judicial da Comarca de Lousada, o Ministério Público deduziu acusação contra A., imputando-lhe a autoria de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelas normas dos artigos 23º e 24º, nº 1, do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927 (com a redacção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro).
O senhor juiz recebeu a acusação e designou dia para julgamento, mas, em despacho de 6 de Abril de 1992, viria a julgar extinto o procedimento criminal e a determinar o arquivamento dos autos. Considerando a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, e , designadamente, o tipo legal de crime que se contém no artigo 11º, nº 1, alínea a) ['será condenado nas penas previstas para o crime de burla (...) quem, causando prejuízo patrimonial: a) emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º que não fôr integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque] derivou daí que a introdução do elemento objectivo 'causando prejuízo patrimonial' fez transmudar o crime de emissão de cheque sem provisão num crime novo, num crime de resultado. Reconheceu, assim, no Decreto-Lei nº 454/91, artigo 11º, nº 1, alínea a), 'uma nova lei que deixa de incriminar factos previstos em lei anterior e que por ela eram punidos'. E, em razão dessa interpretação, convocou para o caso a norma do artigo 2º, nº 2, do Código Penal.
O Ministério Público interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto. Afirmou que, entre as duas normas penais, a do artigo 24º do Decreto-Lei nº 13004, de 12.01.1927, e a do artigo
11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28.12.91, havia uma continuidade normativa típica, explicitando a segunda um elemento objectivo do tipo que já se continha na primeira, o prejuízo patrimonial, e, com isso, reduzindo a punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão aos casos de comprovada existência daquele prejuízo.
Concluiu, depois, que a norma convocável era a do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, e não a do artigo 2º, nº 2, do mesmo Código, como se consignara no despacho recorrido.
A Relação do Porto, em acórdão de 7 de Outubro de
1992, concedeu provimento parcial ao recurso, determinando que pelo juiz 'a quo' fosse proferido novo despacho no sentido de os autos prosseguirem o seu curso normal. Para tanto, julgou inaplicável a norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica. Nos seguintes termos:
'(...) É um facto que relativamente ao tema da aplicação das leis no tempo e a propósito da publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº
454/91, de 28 de Dezembro, se gerou controvérsia com reflexos doutrinários e jurisprudenciais que se vêm polarizando essencialmente em duas teses, em cada uma das quais se enquadram, de algum modo, o despacho recorrido e a motivação do recurso.
Enquanto numa, através de um discurso centrado na preocupação de salvaguardar o rigor dos princípios, se chega a um resultado que se resolve na constatação de que o novo diploma provocou um corte abrupto na linha de evolução legislativa em matéria de punição da emissão de cheques sem provisão - a introdução, na previsão, do elemento constitutivo 'causando prejuízo patrimonial' terá convertido o que era um crime de perigo abstracto, como tal caracterizável à luz do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 1980, in Diário da República, de 13 de Abril de 1981, num crime novo, que reveste a natureza de crime de dano ou de resultado, em que o bem jurídico tutelado é absolutamente diverso do anterior regime -, a ponto de envolver na sua lógica intrínseca a descriminalização de todos os muitos milhares de casos pendentes - de julgamento e de execução -, já na outra tese a análise é focalizada na demonstração da existência de pontos de contacto entre a lei nova e todo o regime antecedente, à luz do critério da continuidade normativo-típica, até se chegar à conclusão de que a lei nova operou uma redução da previsão anterior, com a consequente limitação do âmbito da descriminalização das condutas anteriores àquelas em que se apure a inexistência de 'prejuízo patrimonial (...)
(...) Sem embargo, é desde já possível descortinar nas duas posições - que definem o quadro das opções possíveis com suficiente fundamento científico - um plano de convergência quanto a considerar que relativamente às condutas subsequentes ao início da vigência da lei nova se operou um campo de despenalização, em ambas praticamente coincidente, no que concerne à emissão de cheques sem provisão de valor superior a 5000$00, e não apenas à de cheques de valor igual ou inferior a esta quantia, seja despenalização decorrente da alteração da natureza do crime e do interesse primacial a proteger com a incriminação, seja ela a consequência de uma 'redução da previsão anterior'.
A existência destes planos ou zonas de coincidência sobre a descriminalização directa ou reflexamente operada pela lei nova, que é possível estabelecer nas diferentes posições que vêm dividindo a doutrina e a jurisprudência, viabiliza desde logo a abordagem da questão da conformação constitucional do preceito que em primeira linha fundamentou a decisão impugnada: - o nº 1, alínea a), do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. Abordagem que é legitimada pelo artigo 207º da Constituição e que é aconselhada pela expressão da perplexidade e divergências que tal normativo vem gerando no âmbito da sua aplicação concreta.
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Dispõe o nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91:
'1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral da punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:
a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º
(5000$00) que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme relativa ao Cheque;
b) Levantar, após entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.'
Sucede que a definição dos crimes e das penas é matéria contida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por isso que susceptível de autorização legislativa ao Governo (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa). E foi no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho, que o Governo aprovou o Decreto-Lei nº 454/91.
O respectivo processo legislativo foi desencadeado pelo Governo com a apresentação à Assembleia da República da Proposta de Lei nº 201/V
(publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 51, de 29 de Maio de 1991, págs. 1238 e segs.) solicitando autorização para estabelecer um novo regime de restrição do uso do cheque.
Nessa proposta foi apresentada para o artigo 3º da pretendida Lei de autorização a seguinte redacção:
ARTIGO 3º
1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheques sem provisão quem:
a) Emitir e entregar a outra pessoa cheque superior a 5000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme relativa ao Cheque.
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral.
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, com isso causando prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro;
e a punir este tipo de crime com as penas previstas no Código Penal para o crime de burla, de acordo com as circunstâncias.
Esta redacção patenteia que o elemento constitutivo 'causando prejuízo patrimonial' está circunscrito à previsão da alínea c) e se não comunica à previsão das alíneas a) e b), havendo apenas a definição da punição aferida à do crime de burla como denominador comum às três alíneas.
E o correspondente artigo 3º, nº 1, da Lei de Autorização (nº
30/91) manteve essencialmente a mesma redacção, apenas se verificando a
'nuance', na composição tipográfica, de a definição da punição ter ficado acoplada à redacção da alínea c), o que, na parte que nos ocupa, em nada alterou a constatação de que o elemento constitutivo 'prejuízo patrimonial' ficou circunscrito à previsão da alínea c), não se referenciando à das alíneas a) e b).
Foi assim que foi entendido no Acórdão nº 371/91 do Tribunal Constitucional, publicado na II Série do Diário da República de 10 de Dezembro de 1991, em que aquela instância se pronunciou em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto-Lei que veio a ser publicado com o nº 454/91, como se pode ver na seguinte transcrição (pág. 12
605):
'Tendo em linha de conta que o inciso 'prejuízo patrimonial' consta apenas da alínea c) do artigo 3º. querendo punir tal conduta do sacador, o Governo, nos termos da lei de autorização, só o poderia fazer desde que dessa conduta resultem prejuízos patrimoniais porque este é um requisito impostergável da extensão e do sentido da autorização legislativa contida no nº 1 do artigo 3º da Lei nº 30/91. Logo, a contrario, poder-se-ia dizer que sem tal requisito de prejuízo patrimonial não seria possível ao Governo criminalizar a conduta em causa do sacador.
A omissão de referência ao 'prejuízo patrimonial' quanto às alíneas a) e b) pode bem significar, em tese geral, que quanto a estas condutas ilícitas o legislador parlamentar entendeu que a sua criminalização já não deveria estar dependente do requisito de provocarem qualquer tipo de prejuízo patrimonial'.
Nesta passagem debruçava-se o Tribunal sobre o pedido de apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b), do diploma do Governo, por pretensa violação do artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição, mormente por ter estendido o elemento 'causar prejuízo patrimonial' àquelas duas alíneas. E no acórdão o Tribunal Constitucional veio a decidir por não se pronunciar pela inconstitucionalidade, com base em considerações que se sumariam: - o Governo não estava obrigado a utilizar a autorização que lhe foi concedida pelo Parlamento, a qual até podia apenas utilizar em parte; à liberdade de decisão que assiste ao Governo quanto à utilização ou não da autorização que lhe foi concedida deve aditar-se a de decidir, dentro dos parâmetros da lei de habilitação, quanto ao conteúdo da lei delegada; no caso vertente o Governo tinha uma 'credencial parlamentar ampla', no sentido de considerar crime de emissão de cheque sem provisão as condutas prevista nas alíneas a) e b), quer elas causassem 'prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro' que não o causassem; e o Governo, no uso dos seus poderes próprios no quadro da delegação legislativa de que era beneficiário, decidiu utilizá-la de forma restrita, isto é, colocando como requisito da qualificação do crime de emissão de cheque sem provisão, também para as condutas previstas nas alíneas a) e b), a existência de prejuízo patrimonial, ou seja, criminalizando apenas uma das duas vertentes munidas de credencial parlamentar.
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Não nos inclinamos para aceitar a lógica de tal argumentação, pelo menos no que respeita ao caso em apreço, mas reconhecemos que a análise retrospectiva tem sempre em relação à análise perspectiva a vantagem que lhe confere o conhecimento dos efeitos decorrentes da aplicação prática do diploma do Governo e do desenvolvimento da controvérsia que essa aplicação gerou.
Vejamos:
O nº 2 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa dispõe que as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
Segundo Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 5ª edição, pág.
861), a autorização legislativa deve tornar previsível e transparente para o cidadão as hipóteses em que o Governo fará uso da autorização e ainda o conteúdo
(objecto, sentido, extensão, alcance) que, com fundamento na autorização, virão a ter as normas autorizadas.
No caso da lei de habilitação em apreço (nº 30/91, de 20 de Julho), o objecto da autorização está definido na epígrafe e no artigo 1º, o sentido e a extensão em cada um dos artigos 2º e 3º, e a duração no artigo 4º.
E por estar em causa matéria da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República - definição de crimes e penas -, daí a necessidade da autorização.
É importante sublinhar desde já que, conforme entendimento de há muito adquirido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, a reserva relativa da Assembleia da República em matéria de definição de crimes abrange tanto a criação como a supressão de tipos de ilícito criminal - v.g. o Acórdão nº 56/84 (Diário da República, I Série, de 9 de Agosto de 1984), o Acórdão nº
173/85 (Diário da República, II Série, de 8 de Janeiro de 1986) e o Acórdão nº
414/89 (Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1989).
Por isso que na verificação sobre a conformação constitucional do nº 1, alínea a), do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, devamos considerar os efeitos descriminalizadores desse normativo para, também nesta prespectiva, se aferir da sua adequação ao sentido e extensão da autorização legislativa.
Da já acima referida proposta de lei nº 201/V consta uma
'exposição de motivos' em que o Governo, constatando que diplomas como o Decreto-Lei nº 530/75, de 25 de Setembro, e o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, não conseguiram obviar ao preocupante acréscimo do número de cheques devolvidos por falta de provisão, nem a estrangulamentos no sistema, considerou que 'nas actuais circunstâncias' o instrumento mais adequado para se conseguir o aumento desejável da confiança neste meio de pagamento é uma actuação que consista na recusa de celebrar ou manter convenções de cheques com os maus utilizadores do título, e que, por outro lado, o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque aconselha a que se reaja penalmente à emissão de cheques sem provisão, definindo o tipo legal de crime respectivo e prevendo a sua punição com as penas fixadas no Código Penal para o crime de burla, 'ficando, assim, assegurada a responsabilização do respectivo autor'. Do mesmo passo, e no sentido da protecção daquele bem jurídico - o espírito de confiança no cheque - propôs-se a criminalização de condutas relacionadas com a emissão de cheques, tendencialmente favorecedoras do incremento da circulação desses títulos sem provisão.
Conjugando estas considerações introdutórias com o texto do articulado da proposta, vemos que o sentido da autorização legislativa pedida pelo Governo não continha qualquer modificação relativamente ao regime que vinha vigorando à luz do Assento de 20 de Novembro de 1980, quer quanto ao bem jurídico tutelado com a incriminação - que na 'exposição de motivos' foi repetidamente sublinhado ser o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque - quer quanto aos elementos constitutivos que vinham conferindo a essa incriminação a natureza de crime de perigo abstracto.
E no capítulo da despenalização temos apenas os casos de emissão de cheques sem provisão de valor até 5000$00, mas aqui com a contrapartida - para os lesados - da obrigação de a instituição de crédito sacada pagar o cheque
(alínea a) do nº 1 do artigo 2º da proposta), chamando-se, assim, estas instituições a um procedimento mais rigoroso na entrega de módulos de cheques.
Com esta única excepção, o que de facto se detecta na proposta é o propósito de alargar o âmbito da criminalização de actuações relacionadas com a emissão de cheques, inclusive consagrando soluções que a jurisprudência já vinha elaborando (casos estes das alíneas b) e c) do nº 1 do seu artigo 3º).
E o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, na intervenção que fez na Assembleia da República para apresentação da proposta
(v. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 89, de 7 de Junho de 1991, págs. 2954/5), sublinhou que se propunha a despenalização do crime de cheque sem provisão sempre que o seu montante titulado não seja superior a 5000$00, e nenhuma outra área de despenalização referiu ser pretendida, tendo até destacado, no final dessa primeira intervenção na discussão, que na proposta em análise estava tipificado 'o crime de emissão de cheque sem cobertura', o mesmo
é dizer que nela se continham os elementos do tipo de crime em causa.
Numa segunda intervenção (v. págs. 2956 do mesmo Diário da Assembleia da República), aquele membro do Governo, em resposta à interpelação de dois deputados, deixou bem claro que à despenalização pretendida - do crime de emissão de cheque sem provisão até 5000$00 - estava associado um 'apelo muito veemente' à solidariedade social das diversas instituições de crédito.
Acresce que em toda a discussão sobre a proposta de lei nº 201/V esteve subjacente, como dado adquirido, o pressuposto de que o Governo propusera e pretendia uma autorização legislativa que no plano da despenalização da emissão de cheques sem provisão incluísse apenas os títulos de valor não superior a 5000$00 (v.g. as intervenções dos deputados Costa Andrade e Nogueira de Brito, a págs. 2958 do referido Diário da Assembleia da República, sendo que a intervenção do último finalizou com a afirmação de que 'os bancos vão ter muito mais cuidado, pois sabem agora que não há crime de emissão de cheques sem cobertura até ao montante de 5 contos', o que inculca que não estava em causa qualquer despenalização que pressupusesse, ou de que adviesse, a desprotecção do lesado com a emissão do cheque.
Eis porque consideramos que a lei de autorização que resultou da aprovação dessa proposta de lei, sem qualquer alteração para além da já referida 'nuance' na composição tipográfica, envolve a obrigação de o Governo não reduzir o âmbito da criminalização de condutas operada pela legislação até então vigente, com a única excepção daquelas relacionadas com a emissão de cheques de valor até 5000$00 (e ainda assim com a definição da contrapartida de as instituições sacadas deverem proceder ao seu pagamento ao lesado) sabido que é que, como no caso, a conversão da natureza do ilícito, de crime de perigo abstracto em crime de dano ou de resultado (isto numa das teses), ou a redução da incriminação relativamente aos cheques de valor superior a 5000$00 (na outra tese), terá sempre uma repercussão despenalizadora, de maior ou menor âmbito consoante a perspectiva afectando quer os comportamentos futuros, quer as condutas pregressas. E para tais hipóteses não foi proposta, discutida ou autorizada, e nem tão pouco prevista no Decreto-Lei nº 454/91, qualquer providência em contrapartida à despenalização, à semelhança do que de facto sucedeu relativamente aos cheques de valor igual ou inferior a 5000$00.
Há que concluir que o nº 1, alínea a), do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, em confronto com o nº 1, alínea a), do artigo 3º da Lei nº 30/91, operou um significativo desvio do sentido da autorização legislativa, envolvendo uma alteração qualitativa, que não uma mera utilização parcial ou parcelada da autorização.
Dizer-se, como se afirma no acórdão do Tribunal Constitucional que se pronunciou em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto-lei que veio a tomar o nº 454/91, que o Governo tinha uma credencial parlamentar ampla e que a utilizou de forma restrita ao colocar como requisito da qualificação do crime, também para a conduta prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 3º da Lei nº 30/91, a existência de prejuízo patrimonial, só teria sentido, quanto a nós, na medida em que a autorização respeitasse à definição do
âmbito da incriminação 'ex novo' de matéria ou realidade que até agora não tivesse sofrido enquadramento legal de natureza penal - seria o caso de condutas contempladas em alíneas do nº 2 do artigo 3º da Lei nº 30/91 -; mas já não pode colher quando, como na hipótese em apreço, a autorização respeita a uma realidade jurídica desde há muito enquadrada como ilícito criminal, relativamente à qual, por força dos princípios inerentes à aplicação das leis penais no tempo, a uma alteração da natureza da incriminação ou a uma redução do âmbito dessa incriminação corresponde um efeito despenalizador que não está apoiado em necessária credencial parlamentar (...)
Por isso, em face do artigo 207º da Constituição, o nº 1, alínea a), do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, normativo invocado no despacho recorrido para, em conjugação com o nº 2 do artigo 2º do Código Penal, justificar o arquivamento dos autos por extinção do procedimento criminal, é inaplicável por estar ferido de inconstitucionalidade; daí que tal despacho deva ser revogado para que os autos retomem o seu curso normal, o que corresponde a provimento do recurso, embora por fundamentos e em parâmetros diferentes dos defendidos pelo recorrente (...).
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório de constitucionalidade, nos termos do artigo 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e dos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Alegando, o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal reiterou a tese da inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo
11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. Concluiu assim:
' (...) 1º - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República relativa à 'definição de crimes' (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição) abrange quer a definição de novos tipos de crimes, quer a modificação, degradação ou eliminação de tipos existentes;
2º - No nº 1 do artigo 3º da Lei nº 30//91, de 20 de Julho, a Assembleia da República define como sentido da autorização legislativa concedida ao Governo para definir as condutas integradoras do crime de emissão de cheque sem provisão uma diferenciação consistente em exigir a verificação do requisito da produção de prejuízo patrimonial a outrem para a incriminação da conduta descrita na alínea c), e em não exigir a verificação desse requisito para a incriminação das condutas descritas nas alíneas a) e b);
3º - Ao estender a exigência da verificação desses requisitos para a incriminação das condutas descritas nas correspondentes alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454//91, de 28 de Dezembro - e, assim, ao não criminalizar tais condutas nos casos em que não ocorra a produção de prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro -, o Governo desrespeitou o sentido da autorização legislativa que para o efeito lhe havia sido concedida;
4º - É, assim, inconstitucional (ou ilegal, consoante a qualificação que se prefira para o vício consistente em o decreto-lei autorizado, não extravasando o objecto da autorização legislativa, lhe desrespeitar o sentido), por violação do artigo 115º, nº 2, da Constituição, a norma constante do corpo e da alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº
454/91, na parte em que exige a verificação da produção de prejuízo patrimonial para outrem para a incriminação da conduta prevista nessa alínea.
II - As normas e a questão de constitucionalidade
A Assembleia da República, nos termos dos artigos
164º, alínea d), 168º, nº 1, alínea c), e 169º, nº 3, da Constituição, editou a Lei nº 30/91, de 20 de Julho, autorizando o Governo a estabelecer um novo regime de restrição do uso do cheque. O artigo 2º definia o sentido e extensão da legislação a produzir e o artigo 3º dispunha assim:
'1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheque sem provisão quem:
a) Emitir e entregar a outra pessoa cheque de montante superior a 5.000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, com isso causando prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro, e a punir este tipo de crime com as penas previstas no Código Penal para o crime de burla, de acordo com as circunstâncias.
2 - Fica ainda o Governo autorizado a legislar no sentido de considerar:
a) Aplicáveis a quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a sua falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial, as penas referidas no número anterior; (...)'.
A iniciativa legislativa da autorização exercera-a o Governo através da Proposta de Lei nº 201/V (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 51, de 29 de Maio de 1991). A este propósito do regime penal do cheque, dizia o artigo 3º:
'1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheque sem provisão quem:
a) Emitir e entregar a outra pessoa cheque de montante superior a 5.000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, com isso causando prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro;
e a punir este tipo de crime com as penas previstas no Código Penal para o crime de burla, de acordo com as circunstâncias.
2 - Fica ainda o Governo autorizado a legislar no sentido de considerar:
a) Aplicáveis a quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a sua falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial, as penas referidas no número anterior (...)'.
Em sequência da Lei nº 30/91, de 20 de Julho (lei de autorização), o Governo aprovou o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. O artigo 11º, sobre o crime de emissão de cheque sem provisão, dispõe:
'1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:
a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.
2 - Nas mesmas penas incorre quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial (...)'.
É a norma transcrita do artigo 11º, nº 1, alínea a) que aqui se constitui em objecto do recurso de constitucionalidade. O Tribunal da Relação do Porto considerou-a inaplicável ao caso, afirmando que o elemento 'prejuízo patrimonial' não constava da autorização legislativa e, por isso, configurou a mesma norma como organicamente inconstitucional.
III - A fundamentação
1. A autorização legislativa provoca uma 'vicissitude de competência' (Jorge Miranda) pela qual a Assembleia da República deixa que o Governo intervenha na regulação de matérias que a Constituição delimita na esfera da sua competência reservada (CRP, artigo 168º). O estabelecimento de um vínculo de subordinação dos decretos-leis de uso de autorização legislativa aos princípios e critérios estabelecidos pelo Parlamento (CRP, artigo 115º, nº 2) destina-se precisamente a garantir a ordem de competências constitucionalmente estabelecida. A determinação contida na norma do artigo 168º, nº 2, da Constituição, de que 'as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização' concretiza a exigência de uma parametricidade conformadora da lei de autorização, só podendo o Governo actuar nos limites e com o sentido por ela estabelecidos. É assim que
'a desconformidade com a lei de autorização legislativa implica directamente uma ofensa à competência da Assembleia da República e, logo, uma inconstitucionalidade orgânica' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993, pág. 162).
2. A norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, define o tipo de crime de emissão de cheque sem provisão e, assim, está a regular matéria da reserva relativa de competência do Parlamento, referida no artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição da República ['Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos...'].
Indagar-se-á se a autorização legislativa que a Lei nº 30/91, de
20 de Julho, conferiu ao Governo permite a inclusão do elemento 'prejuízo patrimonial' na modalidade de cometimento do crime de emissão de cheque sem provisão agora prevista na norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91.
E a resposta à pergunta pela conformidade dessa norma ao sentido e alcance da lei de autorização há-de ter-se à luz de uma compreensão da reserva de competência legislativa atribuída ao Parlamento pela norma constitucional do artigo 168º, nº 1, alínea c), como reserva de programação total da política criminal. Ela compreende a definição de crimes e penas, mas também a sua modificação, eliminação ou degradação em outras formas de ilícito (cf., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 56/84, 173/85, 254/86,
427/87, 158/88 e 414/89, respectivamente, in D.R. I Sèrie, de 9-8-1984; II Série, de 8-1-1986, de 26-11-1986 e 5-1-1988; I Série, de 29-7-1988 e de
3-7-1989). Na verdade, a reserva de lei como garantia dos direitos fundamentais faz-se valer com especial abrangência neste domínio da delimitação das competências constitucionais para a produção da legislação penal.
3. O Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, confrontou já com a Constituição a norma impugnada, do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. Fê-lo no Acórdão nº 371/91 (D.R., II Série, de 10-12-1991), considerando que a inclusão do elemento 'prejuízo patrimonial' nas modalidades do crime de emissão de cheque sem provisão previstas no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b), daquele Decreto-Lei, não contendia com o sentido e a extensão da autorização parlamentar. E reconheceu a necessidade de um 'esforço interpretativo' dos termos da lei delegante.
4. A compreensão do programa normativo da Lei nº 30/91 há-de ter-se nos quadros da dogmática jurídico-penal e dos princípios constitucionais que aí detêm relevância. Nos quadros da dogmática jurídico-penal, em razão da matéria sobre que incide, e à luz daqueles princípios, porque a lei de autorização, como todas as leis, deve ser lida do modo que melhor a adeque à Constituição. Diz Larenz (Metodologia da Ciência do Direito, 1ª edição portuguesa, a partir da 2ª edição alemã 1969, págs. 388-398;
2ª edição portuguesa, a partir da 5ª edição alemã 1983, pág. 411): 'O princípio de que, entre várias interpretações possíveis, prefere a que é 'conforme com a Constituição', não pode vigorar só quando exista a suspeita de que uma lei ou uma disposição legal é inconstitucional, mas vigora em geral. Isto decorre do postulado da unidade interna da ordem jurídica em conjugação com o nível hierárquico do direito constitucional. 'Conformidade com a Constituição' é, portanto, igualmente um critério de interpretação'.
Esta linha metódica está também presente no Acórdão nº
371/91 que, ao tratar a questão de constitucionalidade (orgânica) então levantada, da moldura penal para as modalidades de crime previstas no artigo
11º, nº 1, alíneas a) e b) do Decreto-Lei nº 454/91, lembrou que 'uma norma não deve ser julgada inconstitucional enquanto puder ser interpretada conforme a Constituição' e que 'esta foi também a interpretação acolhida pelo Governo'.
5. Retomemos o problema de saber se o Governo, ao incluir na modalidade do crime de emissão de cheque sem provisão prevista no artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, o elemento 'prejuízo patrimonial', respeitou ou não o sentido da autorização parlamentar.
A necessidade de um 'esforço interpretativo', reconhecida no acórdão nº 371/91 e decorrente da deficiente formulação do artigo
3º da Lei nº 30/91, é evidente. Este preceito, por um lado, não faz referência expressa ao elemento 'prejuízo patrimonial' nas alíneas a) e b) do nº 1 e, por outro lado, na alínea c), conjuga sintacticamente esse mesmo elemento com o regime punitivo das três modalidades do crime de emissão de cheque sem provisão.
O tratamento do problema há-de orientar-se aos critérios atrás assinalados. O programa político-jurídico do Parlamento, o sentido e alcance da autorização conferida ao Governo, hão-de ter-se na ponderação do equilíbrio interno do preceito que contém as directivas para a tipificação do crime de emissão do cheque sem provisão. Isso pressupõe que a teleologia do artigo 3º da Lei nº 30/91 está em relação com o sistema de valorações do Direito Penal e com o funcionamento das regras de interpretação que entranham esse sistema. E pressupõe, conforme também ficou sublinhado, uma leitura constitucionalmente adequada desse mesmo artigo 3º. Lembremos a formulação que contém:
'1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheque sem provisão quem:
a) Emitir e entregar a outra pessoa cheque de montante superior a 5.000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue, com isso causando prejuízo patrimonial à mesma pessoa ou a terceiro, e a punir este tipo de crime com as penas previstas no Código Penal para o crime de burla, de acordo com as circunstâncias'.
Prevêem-se, aí, três modalidades de cometimento do mesmo tipo de crime. Que se trata do mesmo tipo de crime resulta logo evidente da concatenação das expressões agora sublinhadas: 'crime de emissão de cheque sem provisão' [corpo do preceito] e 'a punir este tipo de crime' [parte final da alínea c)].
O legislador marcou a dignidade punitiva das condutas referidas nas alíneas a), b), e c), através da remissão para a moldura penal do crime de burla. Mostrou que essas três modalidades de cometimento do crime são idênticas, que têm um peso de ilicitude idêntico. E porque tratou do mesmo crime, perpetrável em diferentes formas, a todas correspondendo a mesma moldura penal, mostrou também a unicidade do bem jurídico protegido com a regulação que propôs.
Ora, presumir que o legislador distinguiu arbitrariamente condutas com a mesma relevância axiológica seria contrariar uma teleologia do preceito constitucionalmente orientada. O legislador não tinha razões para tratar diferentemente as três condutas previstas nas alíneas a), b), e c), do artigo 3º da Lei nº 30/91 pela razão de que entre elas não há uma diferença significativa.
O que está em causa em todas as condutas previstas no artigo 3º, nº 1, da Lei nº 30/91, ou seja, o bem que se protege é o mesmo, é o património, na sua relação de sentido com a confiança no cheque enquanto meio de pagamento. 'Se se entendesse que o prejuízo patrimonial só deveria ser elemento constitutivo do crime relativamente ao comportamento tipificado na alínea c), teríamos então que os interesses jurídicos protegidos seriam diversos, consoante se tratasse dos comportamentos previstos nas alíneas a) e b) ou na alínea c)'
(Germano Marques da Silva, 'Do Regime Penal do Cheque Sem Provisão', Direito e Justiça, volume V, 1991, pág. 175, nota 1).
Para esta compreensão concorre o 'chamamento' da moldura penal do crime de burla. É que o prejuízo patrimonial integra o tipo objectivo deste tipo de crime (cf. Código Penal, artigo 313º). Como se afirmou no preâmbulo do Decreto-Lei nº 454/91, 'a aplicação das penas do crime de burla ao sacador de cheque sem provisão, bem como ao que, após a emissão, procede ao levantamento de fundos que impossibilitam o pagamento ou proíba ao sacador este pagamento, é uma consequência da proximidade material desses comportamentos com os que integram aquela figura do direito penal clássico'.
A remissão feita para 'as penas previstas no Código Penal para o crime de burla' [abrangendo todas as alíneas do artigo 3º, nº 1, da Lei nº 30/91] abre-se também à interpretação de que a Assembleia da República quis exigir o 'eventus damni' como elemento sempre presente no tipo objectivo do crime de emissão de cheque sem provisão. Larenz (Metodologia..., cit., 1ª edição portuguesa, a partir da 2ª edição alemã 1969, págs. 391-394) chama a atenção para a importância do 'contexto interno de sentido das proposições jurídicas e da sua harmonização recíproca'. Diz: 'Entre os princípios que resultam imediatamente da ideia de Direito, há que nomear, em primeiro lugar, o princípio da valoração idêntica do que tem sentido idêntico. A diversa valoração pela mesma ordem jurídica de factos com idêntico sentido, isto é, materialmente equivalentes, aparece como uma contradição axiológica que não é compatível com a exigência de justiça. Evitar não só a contradição lógica, mas também a contradição teleológica ou de valoração é uma exigência a fazer não apenas ao legislador mas também ao intérprete...'.
6. Indagando os fins da lei delegante, e com apoio no contexto significativo do artigo 3º dessa lei, o Acórdão nº 371/91 ensejou mesmo responder à pergunta de se 'o requisito de 'prejuízo patrimonial' não será um elemento congénito às actuações ilícitas previstas nas alíneas a) e b), isto é, se das referidas condutas não terá que resultar sempre e necessariamente um dado prejuízo patrimonial para outrem'. E prosseguiu assim: 'com efeito, considerando a alínea a), a emissão de cheque sem provisão até 5.000$00 não é crime nem gera, em princípio, prejuízo patrimonial, pelo menos ao portador do cheque, porquanto o banco será obrigado a pagá-lo nos termos do artigo 8º, nº 1, do Decreto. Quando muito, em tal caso, só haverá prejuízo patrimonial para o próprio banco pagador, em virtude da obrigação constante do aludido artigo 8º, nº 1 (embora este, recorde-se, nos termos do artigo 10º do diploma, fique subrogado nos direitos do portador até ao limite da quantia paga), mas prejuízo em si mesmo irrelevante para o que ora nos interessa, porque a conduta que o origina não é, por definição do próprio legislador parlamentar, susceptível de criminalização. A emissão de cheque sem provisão de valor superior a 5.000$00, quando não satisfeita pela instituição de crédito com fundamento em falta de provisão, gerará, em regra, prejuízo patrimonial ao portador do cheque, porque este dispõe de um título de pagamento que não vê satisfeito pela instituição de crédito. É evidente que tal prejuízo pode ulteriormente vir a ser reparado (mediante o pagamento da quantia em causa por qualquer outro meio), mas ponto é que, quanto
à emissão e entrega do cheque e à tipificação criminal que se lhe reporta, a emissão de cheque sem provisão causará sempre ao seu destinatário prejuízo patrimonial. Quanto à alínea b), a norma parece só poder ser cabalmente entendida em relação de subordinação com a alínea a) (...)'
Esta orientação é retomada no Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-01-93 (DR, I série A, nº
82, de 7 de Abril de 1993), que, em dado passo, analisa as relações entre a Lei nº 30/91, de 20 de Julho, e o Decreto-Lei nº 454/91: '(...) Por muitas prevenções que se façam contra o argumento 'a contrario sensu', é meridianamente claro que a Assembleia da República, no artigo 3º, nº 1, alínea a), da Lei nº
30/91, apenas permitiu a despenalização quanto aos cheques de montante não superior a 5000.00'. E, mais à frente: 'pode mesmo reconhecer-se que o legislador sempre considerou o 'prejuízo patrimonial' como conatural do não pagamento de um cheque por falta de provisão'.
Já no domínio do Decreto nº 13004, de 12/1/1927 [conquanto a jurisprudência fosse no sentido de que o crime de emissão de cheque sem provisão era um crime de perigo abstracto (Assento nº 1/81 do STJ, de 12 de Março)] não faltava na doutrina quem defendesse que se tratava antes de um crime de dano, sendo o património da vítima o bem jurídico que a incriminação visava proteger
(cf. Figueiredo Dias, parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, Tomo 3, págs. 65 e segs.).
7. É ainda a exigência de prejuízo patrimonial estabelecida na norma do artigo 3º, nº 2, alínea a), da Lei nº 30/91, para o Governo 'legislar no sentido de considerar aplicáveis a quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a sua falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial, as penas referidas no número anterior', a contribuir para a descoberta do sentido da autorização legislativa.
O endosso é um acto substancialmente idêntico à conduta prevista no artigo 3º, nº 1, alínea a). Não faria sentido que o legislador associasse o prejuízo patrimonial à incriminação do endosso e já não
à emissão e entrega a outra pessoa de cheque sem provisão, ou mesmo ao levantamento, após a entrega do cheque, dos fundos necessários ao seu pagamento integral. É que assim seriam os postulados constitucionais da igualdade em Direito Penal a ser postos em causa. Teríamos, de novo, uma valoração diferente para situações axiologicamente idênticas.
Os argumentos da unidade do bem jurídico protegido com a norma do artigo 3º, nº 1, da Lei nº 30/91, da identidade do peso da ilicitude nas três modalidades de cometimento do crime de emissão de cheque sem provisão aí previstas e da ponderação sistemática das valorações a que procedeu o Parlamento bem podem fazer concluir pela legitimidade constitucional da norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91. Esta norma vai ao encontro do sentido da lei de autorização e dos quadros da política criminal por ela definidos.
8. Subsidiariamente, mas numa perspectiva relevante para a solução do problema de constitucionalidade, está a própria 'justificação social' (O. Ascensão) da lei delegante. A exigência do 'prejuízo patrimonial' como elemento de incriminação das condutas previstas nas três alíneas do nº 1 do artigo 3º vai ligada a uma ideia de 'prevenção geral positiva' segundo a qual a definição do bem jurídico protegido é influenciada pelas expectativas sociais
(cf. Günther Jakobs, Strafrecht - Allgemeiner Teil - Die Grundlagen und die Zurechnungslehre, Berlim, 1983, págs. 4-9). O legislador atendeu a essas expectativas pela circunstância de que o prejuízo é o que as pessoas directamente reputam como efeito mais grave a resultar do crime. É claro que a
'finalidade prática da norma' (Manuel de Andrade) é ainda a confiança no cheque enquanto meio de pagamento, mas é precisamente a lesão dos interesses patrimoniais que põe em causa essa confiança (sobre esta relação de sentido, cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-1993, cit.).
Finalmente, poderá dizer-se que a exigência do elemento 'prejuízo patrimonial' para incriminação da emissão de cheque sem provisão vai ao encontro de uma política legislativa marcada pelos princípios da necessidade da pena e da máxima restrição da lei restritiva, decorrentes do artigo 18º, nº 2, da Constituição.
Conclui-se, assim, de tudo o que antecede, que o Parlamento autorizou o Governo a associar a todas as modalidades de cometimento do crime de emissão de cheque sem provisão o elemento 'prejuízo patrimonial' e que a separação sintáctica que ocorre na proposta de lei de autorização entre a fixação da moldura penal e a exigência daquele elemento, no que à alínea a) [e b)] do artigo 3º respeita (além de irrelevante, pois que é da proposta de lei que se trata), não supera uma interpretação teleológica, constitucionalmente orientada, do programa político-jurídico traçado pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho.
9. Mas, uma vez determinado o sentido da política criminal pretendida pela lei de autorização legislativa, não poderá ainda sustentar-se a inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço, com fundamento em caducidade dessa mesma autorização ?
Com efeito, o artigo 168º, nº 4, da Constituição, dispõe que 'as autorizações caducam (...) com o termo da legislatura (...)' e tanto a promulgação como a referenda e publicação do Decreto-Lei nº 454/91, de
28 de Dezembro, tiveram lugar após o termo da 5ª Legislatura da Assembleia da República.
Porém, como este Tribunal vem entendendo, o momento relevante na contagem dos prazos da autorização legislativa é, quanto aos decretos-leis autorizados, o da sua aprovação em Conselho de Ministros. Acolhendo a orientação de António Vitorino, o Acórdão nº 150/92 deixou afirmado:
'Fica-nos, pois, como mais aceitável a tese da utilização com a aprovação em Conselho de Ministros. Não só pelo paralelo que se pode estabelecer com a aprovação parlamentar (a lei considera-se definitivamente aprovada quando o Parlamento vota o seu texto final em termos globais) mas também porque, sendo a autorização legislativa um instituto que assenta no relacionamento directo e especialmente vinculante entre o Parlamento e o Governo, um dado e concreto Governo, este cumpre o ónus que para ele decorre da lei de autorização com a aprovação do acto delegado, desonerando-se assim da incumbência que se lhe encontra cometida pela lei de delegação, cessando aí, nessa aprovação, a sua responsabilidade quanto à efectiva utilização da autorização conferida' (in D.R., II Série, de 28-7-1992; cf. também Acórdão nº 400/89, in B.M.J., nº 387, pág. 215).
Não procede, pois, a tese da inconstitucionalidade da norma impugnada, mesmo em confronto com o enunciado relativo à caducidade da autorização legislativa, contido no artigo 168º, nº 4, da Constituição da República.
IV - A decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, assim concedendo provimento ao recurso e determinando a reforma do acórdão recorrido em harmonia com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Maio de 1993
Maria da Assunção Esteves
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José de Sousa e Brito
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
José Manuel Cardoso da Costa