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Processo nº 115/92
1ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1.- “A., EP.”, com sede em Lisboa (entretanto transformada em sociedade anónima pelo Decreto-Lei nº 405/90, de 21 de Dezembro), deduziu, em 1 de Fevereiro de 1989, oposição à execução contra si instaurada para cobrança da quantia de 24.853.453$00, por falta de pagamento da taxa prevista no artigo 1º do Decreto-Lei nº 75-C/86, de 23 de Abril - o que fez de harmonia com o disposto no artigo 176º, alínea a), do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI), então em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei nº 45 005, de 27 de Abril de 1963 (ilegalidade da dívida exequenda).
Reporta-se aquela quantia ao valor global das taxas previstas nas alíneas c) e d) do referido artigo 1º, liquidadas pelo Instituto dos Produtos Florestais (IPF) relativamente às vendas efectuadas pela executada nos meses de Setembro de 1987 a Janeiro de 1988, a que respeitam as sete execuções fiscais ora apensas.
Para a executada, o Decreto-Lei nº 75-C/86 é, designadamente, inconstitucional, dado ter sido emitido ao abrigo de uma autorização legislativa que já havia caducado com a dissolução da Assembleia da República e com a exoneração do Governo - Decretos do Presidente da República nºs. 43/85 e 43-A/85, respectivamente, ambos de 12 de Julho - porque desrespeita a regra constitucional da anualidade do orçamento e porque no Orçamento do Estado para 1987 não se contempla a cobrança das taxas que constituem receita do IPF, nos termos daquele diploma, o que tudo atenta contra o disposto nos artigos 168º, nº 4, 93º, alínea c), 170º, nº 2, e 108º, nºs. 1, alínea a), e 6, todos da Constituição da República (CR).
2.- A oposição foi, no entanto, julgada improcedente por sentença de 28 de Junho de 1991, do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, que, além do mais, afastou as invocadas inconstitucionalidades.
Inconformada, recorreu a A. para o Supremo Tribunal Administrativo o qual, por acórdão de 15 de Janeiro de 1992, da sua Secção do Contencioso Tributário, com fundamento na inconstitucionalidade orgânica das normas das alíneas c) e d) do artigo 1º do Decreto-Lei nº 75-C/86, de 23 de Abril, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença impugnada, e julgou a oposição procedente, com anulação da dívida exequenda.
Na sua fundamentação, o acórdão considera, por um lado, não caducarem as autorizações legislativas em matéria fiscal, insertas em Lei do Orçamento, com a demissão do Governo ou a dissolução do parlamento mas, por outro lado, entende que tais autorizações têm como limite temporal o termo do ano económico a que respeita o Orçamento, o que, in casu, sucedeu em 31 de Dezembro de 1985, dado a autorização concedida constar do artigo 64º, nº 1, da Lei nº 2-B/85, de 28 de Fevereiro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1985.
Assim sendo, ao legislar em 23 de Abril de 1986, o Governo já não se encontrava munido da necessária credencial parlamentar.
3.- É deste acórdão, por ter recusado a aplicação, por inconstitucionalidade, das alíneas c) e d) do artigo 1º do Decreto-Lei nº
75-C/86, que o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, e 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (com a redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro)'.
Admitido o recurso, só o Ministério Público alegou, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto concluído nos seguintes termos:
'1.- São organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, as normas das alíneas c) e d) do artigo 1º do Decreto-Lei nº 75-C/86, de 23 de Abril;
2.- Deve, assim, confirmar-se a decisão recorrida, na parte impugnada'.
4.- Corridos os vistos legais e tendo por claro constituir objecto do recurso a questão de constitucionalidade das normas das alíneas c) e d) daquele artigo 1º, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A questão de constitucionalidade do Decreto-Lei nº
75-C/86, de 23 de Abril, nos termos em que é posta no presente recurso, foi já analisada por este Tribunal em diversos arestos, em todos eles se decidindo pela inconstitucionalidade do diploma, por violação do disposto no artigo 168º, nº
1, alínea i) da Constituição (cfr. Acórdãos nºs. 387/91, 388/91, 183/92, 380/92 e 326/92), publicados o primeiro e o terceiro no Diário da República, II Série, de 2 de Abril e de 18 de Setembro, respectivamente).
É essa mesma conclusão que o Tribunal agora reitera, limitando-se, para tanto, a recordar o essencial da fundamentação então aduzida.
2.- As normas sub iudicio - as alíneas c) e d) do artigo
1º do Decreto-Lei nº 75-C/86, de 23 de Abril - dispõem:
'Constituem receita do Instituto dos Produtos Florestais:
(...)
c) A taxa de 0,45% sobre o valor total das vendas de pastas químicas;
d) A taxa de 0,20% sobre o valor total do papel, cartolina e cartão vendido ou integrado no fabrico de outros produtos no seio do mesmo ciclo produtivo;
(...).'
As normas referidas foram editadas ao abrigo do nº
1 do artigo 64º da Lei nº 2-B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para
1985), que autorizou o Governo 'a criar ou rever receitas a favor dos organismos de coordenação económica ou dos que resultarem da sua reestruturação e a estabelecer a incidência, as isenções, as taxas, as garantias dos contribuintes, as penalidades e o regime de cobrança das mesmas'.
3.- Estas normas criaram, pois, uma imposição tributária a favor de um organismo de coordenação económica (no caso, a favor do Instituto dos Produtos Florestais), que viria a ser extinto pelo Decreto-Lei nº 466/88, de 15 de Dezembro, que, como recorda o acórdão recorrido, o Supremo Tribunal Administrativo, reiterada e pacificamente, tem vindo a qualificar como imposto.
Tendo a natureza de imposto, o Governo só poderia criá-la (e, assim, editar as referidas alíneas c) e d) do artigo 1º do Decreto-Lei nº 75-C/86) munido de autorização legislativa (cfr. artigo 168º, nº
1, alínea i), da Constituição). Constando tal autorização legislativa, como se viu, do artigo 64º, nº 1, da Lei nº 2-B/85, de 28 de Fevereiro, e tendo ela sido invocada pelo Governo para editar as normas sub iudicio, estas serão inconstitucionais por ter caducado em 31 de Dezembro de 1985 aquela autorização legislativa.
4.- No Acórdão nº 387/91, depois de se ponderar, na esteira da doutrina (cfr. J.M. Cardoso da Costa, Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, 1981', Coimbra, 1982) e da jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., o Acórdão nº 69/86, no Diário da República, II Série, de 9 de Junho de 1986), que a autorização legislativa constante do nº 1 do artigo 64º da Lei nº 2-B/85 tinha a duração do Orçamento, ou seja, a duração máxima de um ano, já que o Orçamento do Estado, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei nº
40/83 de 13 de Dezembro - Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, então em vigor - é anual, de se considerar que, de acordo com os nºs. 1 e 2 do artigo
15º desta mesma Lei, o Orçamento do Estado para o ano de 1985 se manteve em vigor até à data do início da vigência da Lei do Orçamento para o ano de 1986 e de se discutir a constitucionalidade destas últimas normas da Lei 40/83, escreveu-se:
'A questão que aqui se discute não é, porém, a da manutenção do Orçamento, mas a da manutenção das autorizações legislativas em matéria fiscal que figurem na respectiva lei.
Ora, essa questão está hoje resolvida, isto é, depois da 2ª revisão da Constituição, no nº 5 do seu artigo 168º:
As autorizações concedidas ao Governo na Lei do Orçamento observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam.
Quer dizer: as autorizações legislativas em matéria fiscal constantes da Lei do Orçamento não caducam, ao contrário das restantes autorizações, com a demissão do Governo a que foram concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República (nº 4 do citado artigo 168º), mas caducam “no termo do ano económico a que respeitam”, ou seja, em 31 de Dezembro, uma vez que, como se disse, o ano económico coincide com o ano civil.
A consideração deste novo preceito permitiu precisamente ao Prof. Teixeira Ribeiro afirmar na anotação citada em último lugar [anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (pleno da Secção do Contencioso Tributário), de 7 de Março de 1990, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 123, p. 329]:
Por conseguinte, se for constitucional, como pretende o Supremo, o artigo 15º desta lei (a Lei do Enquadramento), isto é, se a Lei do Orçamento de um ano continuar em vigor no ano subsequente até que entre em vigor uma nova lei, nem por isso se mantêm para depois de 31 de Dezembro as autorizações legislativas fiscais que tenham sido concedidas naquela lei. Tais autorizações caducam com o termo do ano civil.
Por outras palavras: o novo nº 5 do artigo 168º da Constituição, ' por um lado [...], desprende da vigência da Lei do Orçamento a validade das autorizações legislativas fiscais dadas nessa lei; por outro lado, estabelece um termo para a validade de tais autorizações, que coincide com o termo da anualidade orçamental'.
Simplesmente, este preceito, acrescentado, como se disse, pela 2ª Revisão da Constituição (Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho), não pode ser aplicado a uma situação anterior, como é o caso dos autos.
O seu valor doutrinário não deve, porém, deixar de ser tomado em conta (cfr., a propósito, Professor Pires de Lima, na citada Revista, ano 100, p. 329, nota 2).
E, na verdade, as razões invocadas para que, em caso de atraso na votação ou aprovação da proposta de orçamento, se mantenha em vigor o Orçamento do ano anterior, como se dispõe no nº 1 do artigo 15º da Lei nº 40/83 - ou seja, os serviços do Estado têm de funcionar sem interrupções, não podendo haver hiatos, no desenvolvimento da sua actividade financeira -, não procedem quanto às autorizações legislativas constantes da Lei do Orçamento que incidam sobre matéria fiscal. O atraso na entrada em vigor da nova Lei do Orçamento não impede o Governo de legislar, até 31 de Dezembro, sobre a matéria que foi objecto de autorização legislativa na lei anterior.
Dito de outra maneira: se se pode justificar a não observância da regra da anualidade para o Orçamento propriamente dito, já o mesmo não se pode dizer a respeito das autorizações legislativas concedidas ao Governo na Lei do Orçamento que incidam sobre matéria fiscal.
O nº 2 do citado artigo 15º da Lei nº 40/83, interpretado no sentido de que a manutenção da vigência do orçamento do ano anterior abrange as autorizações legislativas concedidas ao Governo que incidam sobre matéria fiscal, ofende, pois, a regra, resultante da conjugação do nº 3 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1982 (as leis de autorização legislativa devem definir a duração da autorização), com os citados artigos 93º e 108º, nº 2, de que tais autorizações só podem ser utilizadas até 31 de Dezembro.'
5.- Assim sendo, a autorização legislativa contida na norma do artigo 64º, nº 1, da Lei nº 2-B/85, não podia valer nem ser utilizada para além do dia 31 de Dezembro de 1985, havendo, consequentemente, caducado já
à data em que foi editado o Decreto-Lei nº 75-C/86.
Tudo se passou assim como se este diploma houvesse sido aprovado a descoberto de credencial parlamentar, e daí a sua irremissível inconstitucionalidade por afrontamento do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição.
Diga-se, a finalizar, que a Doutrina mais recente, anotando alguns acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, tem defendido a tese da vigência anual das autorizações legislativas orçamentais, de caducidade reportada ao ano económico a que respeitam, independentemente do procedimento a que se encontra sujeito o acto em que formalmente se integram - o orçamento
- e o deferimento no tempo que este porventura experimente. Neste sentido, Teixeira Ribeiro, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125º, págs.
20 e segs., e Paulo Otero, in O Direito, ano 124, I-II, 1992, págs. 270 e segs., anotando, respectivamente, os acórdãos daquele Supremo de 28 de Março de
1990 e de 20 de Fevereiro de 1991, publicados nessas revistas.
III
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais as normas das alíneas c) e d) do artigo 1º do Decreto-Lei nº 75-C/86, de 23 de Abril, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada, quanto ao julgamento de inconstitucionalidade nele feito.
Lisboa, 30 de Março de 1993
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa