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Processo nº 396/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A., empresário de ----------------, interpôs recurso contencioso para anulação do despacho do Director de Serviços de Tráfego, Armazenagem e Benefícios Fiscais, proferido por delegação ministerial, que lhe indeferiu o pedido de isenção de direitos e de sobretaxa devidos pela importação de uma central produtora de betão asfáltico. Invocou vício de forma (ausência de fundamentação) e vício de violação de lei. Todavia, o Tribunal Tributário de 2ª Instância, por acórdão de 28 de Fevereiro de 1989, negou provimento ao recurso.
Inconformado, apelou para a 2ª Secção (Contencioso Tributário) do Supremo Tribunal Administrativo, mas também sem sucesso, já que esta considerou improcedentes os fundamentos invocados, confirmando o acórdão recorrido. Designadamente, considerou que o despacho em causa, apesar de não ter concedido a isenção prevista no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 133/83, de 18 de Março, não estava viciado de ilegalidade, uma vez que esta norma é organicamente inconstitucional na parte em que excede o âmbito da autorização legislativa concedida pelo artigo 22º, alínea l), da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro.
Daí o presente recurso, interposto apenas pelo Ministério Público, e obrigatório, nos termos do estabelecido no artigo 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e artigos 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, e 72º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (actual redacção). Nas alegações apresentadas, pede, porém, a confirmação do acórdão recorrido.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 133/83, enquanto permite isentar de direitos e de sobretaxa a importação de bens de equipamento directamente produtivos para empresas não pertencentes aos sectores das pescas, indústrias extractivas e indústrias transformadoras.
O diploma referido dispõe sobre isenções de direitos e sobretaxas de importação, prevendo no artigo 1º a publicação de listas de mercadorias que beneficiam de tal isenção, quando importadas por industriais e destinadas à sua actividade. E no artigo 2º, nº 1, acrescenta o seguinte:
Enquanto não forem publicadas as listas a que se refere o artigo anterior, pode o Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, a requerimento dos interessados, isentar de direitos e da sobretaxa a importação de bens de equipamento directamente produtivos.
Segundo consta do seu preâmbulo, aquele diploma foi aprovado pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa concedida pelo artigo 22º, alíneas i) e l) da Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro (que aprova o Orçamento Geral do Estado para 1992). Tal artigo, nesta parte, dispõe o seguinte:
Artigo 22º (Regime aduaneiro)
No âmbito aduaneiro, fica o Governo autorizado a:
... i) Proceder à revisão do regime de isenção ou redução de direitos relativos à importação de matérias-primas ou de outras mercadorias destinadas a transformação ou incorporação pela indústria nacional, ou à eventual reformulação daquele regime, com vista a alargar o âmbito da sua aplicação a mercadorias consumidas no acto de produção de outras, nomeadamente isentando a importação de componentes sempre que os produtos que se destinam a incorporar sejam já objecto de isenção ou redução de direitos;
... l) Isentar de direitos aduaneiros a importação avulsa de bens de equipamento para as empresas dos sectores das pescas, das indústrias extractivas e das indústrias transformadoras, por forma a tornar competitivos os produtos acabados daqueles sectores.
3. Está-se aqui perante uma autorização legislativa concedida por uma lei que aprova o Orçamento do Estado, a qual não fixou a respectiva duração. Deve, pois, entender-se que tal autorização era válida durante o período de tempo correspondente ao Orçamento do Estado por ela aprovado, ou seja, todo o ano de 1982. Assim se dispõe expressamente, agora, no nº 5 aditado ao artigo
168º da Constituição na revisão de 1989, mas já assim vinha anteriormente entendendo o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos n..ºs 131/85, Diário da República, II série, de 14 de Dezembro de 1985, 72/87, Diário da República, II série, de 2 de Maio de 1987, e 241/88, Diário da República, II série, de 26 de Janeiro de 1989). E ela foi utilizada dentro desse prazo, pois o Governo aprovou o Decreto-Lei nº 133/83 em 30 de Dezembro de 1982, embora a promulgação só tivesse ocorrido em 1 de Fevereiro do ano seguinte (sobre a data relevante para o efeito, cfr. Acórdão nº 150/92, Diário da República, II série, de 28 de Julho de 1992).
4. No presente caso, o requerente, cuja actividade económica não se enquadrava no sector das pescas, nem no das indústrias extractivas ou transformadoras, havia pedido a isenção ao abrigo da formulação legal do Decreto-Lei nº 133/83, mais ampla que a da Lei nº 40/81. Mas a isenção não lhe foi concedida. Ora, segundo o Supremo Tribunal Administrativo, ao indeferir o pedido, o despacho impugnado não violou a norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 133/83, por esta ser organicamente inconstitucional, na parte em que excede a autorização legislativa - isto é, na parte em que alarga a possibilidade de tal isenção a todos os sectores industriais (desde que os bens de equipamento a importar sejam directamente produtivos), quando a lei de autorização legislativa só lhe permitia fazê-lo em relação aos sectores das pescas, indústrias extractivas e indústrias transformadoras.
5. E com razão, pode desde já adiantar-se.
Na verdade, e como refere o S.T.A., a norma em causa refere-se a isenções fiscais. Ora, o estabelecimento de isenções fiscais, quer estas sejam vistas formalmente, como regras que delimitam negativamente o âmbito real ou pessoal das imposições fiscais (v. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, pág. 20, nota), quer sejam vistas substancialmente, como benefícios fiscais (Nuno Sá Gomes, 'Teoria geral dos benefícios fiscais', Ciência e Técnica Fiscal, nº 359, DGCI, Lisboa, 1990, pág. 106), não deixa de se incluir no âmbito da matéria da reserva de competência da Assembleia da República - artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, por referência ao disposto no artigo 106º, nº 2, da Lei Fundamental. E desta matéria fazem parte as regras relativas à incidência e aos benefícios fiscais, conforme consta expressamente daquele preceito constitucional e é entendido pacificamente pela doutrina (v., sobre este ponto, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 274/86, Diário da República, I série, de 29 de Outubro de 1986).
Autorização legislativa houve, é certo: foi a constante do artigo
22º, alínea l) da referida Lei nº 40/81 (apenas esta se refere a bens de equipamento; a alínea i) refere-se antes a matérias-primas ou mercadorias destinadas à transformação, nomeadamente componentes). Só que o Governo usou tal autorização em excesso, ao estender a possibilidade de isenção de direitos e de sobretaxa de importação a bens de equipamento destinados a sectores que não são os indicados na norma de autorização: esta referia apenas os sectores das pescas, indústrias extractivas e indústrias transformadoras.
E, se bem que as autorizações legislativas constantes da Lei do Orçamento tenham algumas especificidades em relação às demais (pois, como conclui Cardoso da Costa, em 'Sobre as autorizações legislativas da Lei do Orçamento', Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. J. J. Teixeira Ribeiro, III, Coimbra, 1983, pág. 415, 'muito mais do que uma simples autorização, o que a Lei do Orçamento incorpora é a definição (parlamentar) de um quadro global, e que se pretende coerente, da política financeira, e mesmo económico-financeira, a adoptar em determinado ano'), elas não deixam de ter em comum o núcleo essencial constituído pela exigência de definição do seu objecto e o sentido e extensão da autorização.
Na medida em que excedeu o âmbito da autorização de que dispunha, o Governo legislou sem autorização e portanto a norma em causa é, nessa parte, organicamente inconstitucional.
III - DECISÃO
Assim, e pelo exposto:
a) julga-se inconstitucional a norma constante do artigo 2º, nº
1, do Decreto-Lei nº 133/83, de 18 de Março, na parte em que, excedendo a autorização legislativa constante do artigo 22º, alínea l), da Lei nº 40/81, de
30 de Dezembro, permite isentar de direitos e de sobretaxa a importação de bens de equipamento directamente produtivos para empresas não pertencentes aos sectores das pescas, indústrias extractivas e indústrias transformadoras;
b) e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Maio de 1993
Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa