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Proc. nº 484/93
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O Tribunal de Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Janeiro de 1993, julgou procedente o pedido de extradição para o Reino Unido do cidadão alemão A., também conhecido por B., mas que afirma chamar-se C. e ser de nacionalidade irlandesa.
O extraditando recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando vícios de forma no processo de extradição, falta de fundamento material para a mesma, por não ser ele a pessoa a extraditar, e falta de fundamento jurídico, por ser organicamente inconstitucional o Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, ao abrigo do qual foi decidida a extradição, e serem também materialmente inconstitucionais os artigos 37º e 51º deste diploma.
2. O S.T.J., por acórdão de 5 de Maio de
1993, confirmou a decisão da Relação, e daí o presente recurso, interposto pelo extraditando para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da constitucionalidade do Decreto-Lei nº 43/91, e em especial do seu artigo 51º.
3. Nas suas alegações, o recorrente sustenta que o Decreto-Lei nº 43/91 é organicamente inconstitucional, uma vez que foi emitido pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa que já havia caducado.
Alega ainda que o artigo 37º do diploma, na medida em que não prevê um regime de recursos das medidas de coacção aplicáveis ao extraditado, viola o disposto nos artigos 32º, nº 1, e 20º da Constituição; que a exigência e restrição imposta pelo artigo 51º do mesmo decreto-lei afronta a garantia do direito ao recurso consignada no artigo 5º, nº
4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; que, face à não ratificação por Portugal da Convenção Europeia de Extradição, a sua extradição é inexequível; e, finalmente, que o auto de declarações de fls. 98 é nulo e viola os artigos 6º, nº 1 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e ainda o artigo 61º, alínea c), do Código de Processo Penal, atento o teor dos artigos 3º, nº 2, e 5º, do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, este também inconstitucional.
O Ministério Público apresentou alegações no sentido de que o objecto do recurso se restringe à apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 51º, nº 3, do Decreto-Lei nº
43/91, e de que deve ser-lhe negado provimento por a norma em causa não ser inconstitucional.
Foram dispensados os vistos. Cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. O presente recurso foi interposto
(conforme o recorrente indicou no respectivo requerimento, a fls. 618) apenas para a apreciação da constitucionalidade (orgânica) do Decreto-Lei nº 43/91, e da constitucionalidade (material) do seu artigo 51º. Sobre estas matérias, pois, se deve limitar a incidir a apreciação do Tribunal.
Efectivamente, e conforme o Tribunal vem decidindo a partir do Acórdão nº 235/90 (Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 1991), o requerimento de interposição do recurso é «o acto idóneo para a fixação do objecto deste e, se a parte nele especificou as normas a fiscalizar, não pode já, nas subsequentes alegações, ampliar a outras normas aquele objecto».
Isto é, o âmbito do recurso de constitucionalidade é, desde logo, delimitado pelo próprio recorrente no requerimento da respectiva interposição, quando aí indica as normas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional: é este o sentido útil da parte final do artigo 75º-A, nº 1, da Lei º 28/82, de 15 de Novembro, na actual redacção.
Portanto, ainda que, durante o processo, também tivessem sido suscitadas outras questões de inconstitucionalidade, elas não poderão ser aqui apreciadas.
5. Mas cabe acrescentar que a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 51º do Decreto-Lei nº 43/91 (trata-se, mais precisamente, da inconstitucionalidade da norma do nº 3 desse artigo, que só admite recurso da decisão final do processo judicial de extradição), apesar de expressamente referida pelo recorrente naquele requerimento de interposição, também não pode ser apreciada.
É verdade que, no decorrer do processo, o extraditando questionou esta norma. Só que, embora ela tivesse sido considerada constitucional pelo tribunal a quo, como já havia sido considerada constitucional pela Relação, não foi aplicada pela decisão recorrida, como não foi aplicada vez alguma no processo, pela simples razão de que o extraditando somente recorreu da decisão final.
Ora, só cabe recurso de constitucionalidade nos termos do artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei nº 28/82, relativamente a normas efectivamente aplicadas pela decisão recorrida. Por este motivo, a apreciação de tal questão é inadmissível, até porque seria sempre inútil, em nada podendo alterar a situação processual do recorrente nem a decisão recorrida.
6. O presente recurso tem, pois, por objecto apenas a apreciação da constitucionalidade do Decreto-Lei nº 43/91, no que diz respeito ao invocado uso de uma autorização legislativa já caducada.
A este respeito, o recorrente afirma o seguinte:
A Lei 17/90 de 20 de Julho concedeu autorização ao Governo para legislar sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal.
Esta Lei foi aprovada em 7 de Junho de 1990 pela Assembleia da República e referendada em 3 de Julho de 1990 pelo Sr. Primeiro-Ministro.
O Dec.-Lei 43/91 de 22 de Janeiro foi aprovado no uso da mencionada autorização legislativa; e foi aprovado muito depois dos 90 dias concedidos pela Lei 17/90, porquanto de 7 de Junho de 1990 até 18 de Outubro decorreram cerca de
130 dias.
Mesmo que se considerassem os 90 (noventa) dias a contar da publicação da Lei de autorização legislativa, verifica-se que o mesmo foi igualmente ultrapassado, porquanto a lei é publicada a 20 de Julho de 1990 e o Dec.Lei 43/91 foi publicado seis (6) meses depois, isto é, em 22 de Janeiro de
1991.
E mesmo a considerar-se que a Lei 17/90 foi referendada pelo Primeiro-Ministro em 3 de Julho de 1990 estaria também largamente ultrapassado o prazo de 90 dias porquanto o Dec.Lei 43/91 foi referendado em 16 de Dezembro de
1990, isto é, mais de 190 dias após a data da Lei 17/90.
O Dec.Lei 43/91 de 22 de Janeiro é assim organicamente inconstitucional por ter sido emitido pelo Governo no uso de autorização legislativa caduca.
A isto opõe o Ministério Público o seguinte:
Os momentos relevantes para se saber se a duração da autorização legislativa é respeitada são outros, ou combinados de outro modo. O que importa, para este efeito, é a data da publicação da lei de autorização, por um lado, e a data da aprovação em Conselho de Ministros, por outro. [...].
E, louvando-se na posição perfilhada a este respeito pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 150/92, Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992, conclui:
Para que se considere respeitado o prazo da autorização legislativa, basta que ocorra dentro desse prazo a aprovação pelo Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa autorização.
Pelo exposto, uma vez que o Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, foi aprovado em Conselho de Ministros em 18 de Outubro de 1990, e editado no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº 17/90, de 20 de Julho, deve considerar-se emitido dentro do prazo de 90 dias fixado nessa lei.
7. Através do Decreto-Lei nº 43/91, o Governo legislou sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal, e designadamente sobre o regime da extradição. Trata-se de matéria de direitos, liberdades e garantias e, por isso, sujeita a autorização legislativa da Assembleia da República - artigos 168º, nº 1, alínea b), e 201º, nº 1, alínea b), da Constituição.
E, efectivamente, a Assembleia da República havia concedido ao Governo a respectiva autorização legislativa, nos termos da Lei nº 17/90.
Como deverá, porém, contar-se o prazo da autorização legislativa? E qual foi o momento da sua utilização?
Se a questão não se afigura duvidosa quanto ao momento em que começa a contar-se o prazo da autorização legislativa
(esse momento é o da entrada em vigor da lei que concede tal autorização), já o mesmo não se pode dizer quanto ao momento do processo de formação do acto legislativo em que a autorização se considera utilizada - e portanto quanto ao momento que deve ter-se por relevante para saber se a autorização foi ou não tempestivamente usada pelo Governo.
Esta questão era já objecto de ampla discussão doutrinal no âmbito da redacção original da Constituição, face ao preceituado no seu artigo 122º, nº 4, defendendo alguns autores ser a publicação do diploma o momento a considerar, mas havendo vários outros que defendiam posições divergentes.
Após a primeira revisão constitucional, com a nova redacção aí introduzida àquele artigo 122º, e designadamente ao seu nº 2, passou a entender-se não ser de exigir que a publicação do diploma autorizado ocorresse durante o prazo da autorização legislativa (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, pág. 205).
Afastada esta alternativa, continua, porém, a não haver unanimidade doutrinal quanto às demais, podendo ser apresentados e discutidos argumentos no sentido de que o momento a ter em conta
é, alternativamente, ou o da aprovação em Conselho de Ministros, ou o do envio do diploma ao Presidente da República para promulgação, ou o da recepção do diploma nos serviços da Presidência da República, ou o da promulgação, ou até o da referenda ministerial.
Todavia, o Tribunal Constitucional já debateu longamente esta matéria no Acórdão nº 150/92 (Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992). E a conclusão a que aí se chegou, reafirmada depois por várias vezes (Acórdãos nº 121/93, 386/93 e 387/93, Diário da República, II Série, de 8 de Abril, 2 de Outubro e 6 de Outubro de 1993, respectivamente), foi no sentido de que o momento a ter em conta é o da aprovação do diploma em Conselho de Ministros. Conforme aí se notou:
Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo da autorização legislativa «existe» para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como «existe» qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas.
No mesmo sentido, aliás, se havia pronunciado parte da doutrina (citada naquele acórdão), e designadamente António Vitorino (As autorizações legislativas na Constituição Portuguesa, dact., Lisboa, págs. 252 e 257 a 259).
8. Importa agora ter em conta a autorização legislativa em causa. Ela foi concedida pela Lei nº 17/90, nos seguintes termos:
Artigo 1º
1 - Fica o Governo autorizado a aprovar um diploma relativo à cooperação judiciária internacional em matéria penal.
...
Artigo 3º
A autorização legislativa concedida pelo artigo 1º da presente lei caduca se não for utilizada no prazo de 90 dias.
Esta lei foi aprovada pela Assembleia da República em 7 de Junho de 1990 e publicada em 20 de Julho do mesmo ano.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 43/91 foi aprovado em Conselho de Ministros em 18 de Outubro de 1990 e publicado em 22 de Janeiro de 1991.
Ora, considerando que o prazo de 90 dias só começou a correr com a entrada em vigor da lei de autorização (publicada em
20 de Julho), é manifesto que tal prazo ainda não se havia esgotado em 18 de Outubro, data em que o Governo utilizou a autorização, aprovando o diploma referido em Conselho de Ministros - sendo irrelevantes, para este efeito, as datas da promulgação, da referenda e da publicação do decreto-lei.
O Decreto-Lei 43/91 não padece, pois, do apontado vício de inconstitucionalidade orgânica.
III - DECISÃO
9. Assim, e face ao exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 10 de Novembro de 1993
Luís Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa