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Procº nº 504/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Contra A. e a companhia de seguros B., deduziu o assistente C., nos autos de processo comum com intervenção de juiz singular instaurados no Tribunal de comarca de Celorico de Basto e em que era arguido aquele A., pedido de indemnização civil no montante de Esc. 16.445.666$00.
Por sentença lavrada em 9-JUL-90, foram a B. e o A. condenados a pagar ao assistente, respectivamente, Esc. 7.056.736$00 e Esc.
3.035.930$00.
2. Não se conformando com o decidido, interpôs o Réu recurso para o Tribunal da Relação do Porto, solicitando, de entre o mais, que os danos patrimoniais sofridos pelo lesado assistente deveriam ser computados em Esc. 5.095.666$00, enquanto que os danos não patrimoniais deveriam ser fixados em Esc. 2.000.000$00.
Por acórdão de 13 de Março de 1991, a Relação do Porto negou provimento ao recurso, decisão da qual o Réu, na parte restrita 'à matéria civil' (sic), recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o recurso interposto sido admitido por acórdão de 26-JUN-91, proferido após despacho de não admissão de recurso e do qual houve, por banda do mesmo Réu, reclamação para a conferência.
3. Encontrando-se os autos já no Supremo Tribunal de Justiça, um dos Juízes Conselheiros da Secção, no termo que lhe foi aberto para aposição do seu 'visto', proferiu despacho onde expressou a sua opinião no sentido de se afigurar que o recurso seria de rejeitar, por inadmissível face ao disposto nos artigos 400º, nº 1, c) e 2, e 432º do Código de Processo Penal.
Perante esta circunstância, foram os autos levados à conferência, a qual, em 13 de Fevereiro de 1992, proferiu acórdão no qual se decidiu rejeitar o recurso, por inadmissível.
Para alcançar essa decisão, referiu-se em tal aresto:
'Cotejando os dois preceitos [ os artigos 432º e 427º, ambos do Código de Processo Penal] vê-se que a regra é a seguinte:
1) dos tribunais singulares só se recorre para a Relação
2) dos Tribunais Colectivos ou do Júri, apenas se recorre para o S.T.J - reportamo-nos como é evidente às decisões desses Tribunais.
O regime-regra é o da interposição para as Relações dos recursos de decisões dos tribunais de primeira instância.
Assim, os recursos só são interpostos directamente para o STJ nos casos taxativamente enumerados na Lei.
Isto posto, será que o previsto no nº 2 do art 400 é um dos casos especialmente previstos?
Dispõe o falado nº 2:
'Sem prejuízo do disposto nos arts. 427 e 432, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível, desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal recorrido'.
Do texto transcrito o que se surpreende em primeiro lugar é que os dispositivos dos arts. 427 e 432 são mantidos sem prejuízo, sem que fiquem prejudicados de qualquer sorte.
Não se pretende neste nº 2 abrir qualquer excepção - é o próprio texto da lei que o diz: 'Sem prejuízo'.
Será então que fica sem campo de aplicação o preceituado neste nº 2?
De modo nenhum.
Tratando-se de decisão do Juiz singular - como é o caso - desde que esta seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal recorrido - e se pretenda recorrer só da parte civil - o recurso será dirigido para a respectiva Relação, em sintonia e harmonia com o art 427 C.P.P.
Se porventura num outro caso a Relação, dentro da mesma sintomatologia, funcionar como Tribunal de 1ª instancia - v.g. em processos de viação de magistrados - o recurso será dirigido para o STJ em consonância com o art. 432 do C.P.P.
O que não pode existir são dois graus de recurso.
Face ao que se alinhou, tratando-se de sentença de um Juiz Singular não é permitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, salvo se a lei previr especialmente o caso, o que não se dá na hipótese que nos ocupa'.
4. Notificado deste acórdão, o recorrente A. veio arguir a respectiva nulidade, já que, no caso, se imporia 'dar cumprimento ao disposto no artigo 704º do Código de Processo Civil' a fim de lhe possibilitar a tomada de 'posição sobre a questão prévia', matéria relevante tanto quanto era seguro que, a persistir o entendimento perfilhado no aresto sobre o nº 2 do artº 400º do Código de Processo Penal, não poderia deixar de considerar-se tal norma como inconstitucional no ponto em que restringiria 'indevidamente os legítimos direitos e interesses dos cidadãos, ofendendo o direito de igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição e o princípio do contraditório assegurado plenamente pelo seu artigo 32º', sendo certo que, sem o conhecimento de tal questão prévia, ele, recorrente, corria 'o sério risco de não poder invocar' a inconstitucionalidade da norma em apreço.
O Supremo Tribunal de Justiça, em 21 de Maio de 1992, tirou, sobre o formulado requerimento arguidor de nulidade, acórdão no qual se decidiu improceder o ponto de vista do recorrente, referindo-se aí:
'Trata-se de agir do próprio Tribunal e não das partes.
Se fosse, por exemplo, o Mº Pº a levantar a chamada questão prévia, certamente, para garantir o contraditório, seria ouvido o recorrente. Este sistema tem sido adoptado até quando apenas se trata do visto do art. 416 do Cod. Proc. Penal e no mesmo é levantada qualquer questão e isto para não se lesarem os princípios consagrados no art. 32 nº 1 e 5 da C.R.P.
O mesmo não se passa a nível do Tribunal, certo que com o seu posicionamento está equidistante das partes.
O recorrente já motivara o seu recurso, o que se refere face ao art.
704 do Cod. Proc. Civil, trazido à colação pelo recorrente, certo que as alegações aí referidas são as actuais motivações.
Não obstante se dirá que o articulado do processo civil trazido a terreiro pelo recorrente é despiciendo, certo que para os fins do art. 4º do Cod. Proc. Penal inexiste caso omisso, na medida em que é o próprio nº 2 do art.
400 do Cod. Proc. Penal que, expressis, contempla a hipótese.
Quanto ao ineditismo do acórdão, admite-se que seja inédito pelo facto deste Supremo, quiçá, não ter tido que se debruçar sobre a hipótese, no domínio do novo Cod. Proc. Penal.
Doutra banda, não se vê como nem porquê o nº 2 do art. 400 do Cod Proc. Penal ofenda o princípio da igualdade consignado no art. 13 da Constituição da Republica Portuguesa.
É que o princípio da igualdade não proíbe o estabelecimento de distinções e proíbe sim distinções arbitrárias.
Constituindo o Cod. Proc. Penal um todo de normas unitárias face ao direito adjectivo penal, é evidente que se pode albergar no seu seio dispositivo diverso do civil.
É que o princípio da igualdade do art. 13º, como que se desdobra em três vertentes: 1) proibição do arbítrio 2) proibição de discriminação 3) obrigatoriedade de diferenciação (...).
Do que se alinhou resulta que a 'lembrança' aposta no visto dum Exm.º Conselheiro Adjunto não tinha que ser notificada às partes, por ser e traduzir um pensamento de um membro Adjunto, sufragado, aliás, em conferencia, e tão pouco o Tribunal ter aplicado normativo inconstitucional como não é o nº 2 do art. 400 do Cod. Proc. Penal'
5. É deste acórdão que o A. recorre para o Tribunal Constitucional, recurso que fundou na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
6. Produzidas as alegações, conclui o recorrente a por si formulada do seguinte modo:
'- ao não permitir o recurso para o S.T.J. da condenação em indemnização civil o artigo 400, nº 2 do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 13 da Constituição;
- o Venerando Supremo Tribunal de Justiça ao não conhecer da nulidade suscitada e necessária apreciação da legalidade Constitucional do citado artigo
400, nº 2 violou o disposto no artigo 13º da Constituição;'
Por seu turno, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu a sua alegação, na qual propugna pela improcedência do recurso, referindo que '[a] subordinação do regime dos recursos no processo de adesão à disciplina geral dos recursos em processo penal - com a consequente limitação ao duplo grau de jurisdição, decorrente dos artigos 400º, nº 2, 427º e 432º do Código de Processo Penal - não se revela como desrazoável ou arbitrário, não violando, consequentemente o princípio da igualdade, proclamado pelo artigo 13º da Constituição'.
II
1. No vigente diploma adjectivo criminal consagrou-se, por intermédio do seu artº 71º, a regra da obrigatoriedade de dedução em processo criminal do pedido de indemnização civil baseado na prática de actos ilícitos que revistam a natureza de crime, regra que só pode ser afastada nos casos reportados no artº 72º, sendo que se admite mesmo a dedução desse pedido no processo crime (cfr. artº 73º) dirigido contra pessoas que, não sendo responsáveis criminalmente, o sejam já no campo meramente civil.
Por outro lado, estatui-se no nº 1 do artº 403º do mesmo corpo de leis que é admissível a limitação do recurso de uma decisão a uma sua parte, e isto se for possível separar a parte impugnada da parte que o não for, de molde a aquela primeira ser objecto de uma apreciação distinta da segunda, tornando-se esta última autónoma, embora tal autonomia, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, não prejudique o dever de retirar da procedência do recurso da parte impugnada 'as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida'.
Perante a consagração, no citado artº 71º, do denominado «princípio de adesão» , compreende-se que na alínea a) do nº 2 do aludido artº 403º se dê como exemplo de autonomia de parte da decisão, com a consequente recorribilidade dela, a 'matéria penal, relativamente àquela que se referir a matéria civil', compreendendo-se igualmente que no artº 401º, nº 1, alínea c), se confira legitimidade para recorrer às partes civis 'da parte das decisões contra si proferidas', que no artº 402, nº 2, alínea c), se estabeleça que, salvo no caso de recurso fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais, e no artº 404º se comande que, em caso de recurso interposto por uma das partes civis, a parte contrária possa interpor recurso subordinado..
2. Preceitua o nº 2 do artº 400º - norma sobre a qual incide o presente recurso de constitucionalidade:
'2. Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.'
Por sua banda, rezam assim aquelas ressalvadas disposições:
'Artigo 427º.
(Recurso para a relação)
Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de primeira instância interpõe-se para a relação'.
'Artigo 432º.
(Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça)
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em primeira instância;
b) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores;
e) Noutros casos especialmente previstos na lei.'
Da concatenação dos transcritos textos legais e de acordo com a leitura que deles fez, in casu, o Supremo Tribunal de Justiça, resulta que, caso alguém com legitimidade para recorrer se não conforme com a parte decisória de um acórdão proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, mas unicamente na parte relativa a matéria civil, só poderá impugná-la se essa parte decisória lhe for desfavorável em mais de Esc.
250.000$00 (metade da alçada daqueles tribunais - cfr. artº 20º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro), impugnação que terá lugar directamente perante o Supremo Tribunal de Justiça; se, por outro lado, alguém com legitimidade para recorrer se não conformar com a parte restrita à matéria civil constante de uma decisão proferida em processo criminal por um tribunal de 1ª instância que não seja tribunal do júri ou tribunal colectivo, igualmente só poderá impugná-la, e perante o tribunal da relação, se essa parte lhe for desfavorável em mais do que a quantia acima indicada.
3. No domínio civil, o respectivo diploma adjectivo estabelece que só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (nº 1 do artº 678º do Código de Processo Civil), o que significa que, em princípio, desde que a sucumbência do recorrente seja superior a Esc.
1.000.000$00, poderá ele recorrer ordinariamente das decisões proferidas pelo tribunal de 1ª instância para a Relação e, se continuar vencido na decisão proferida por esta, poderá recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
4. É esta diferenciação de regimes que, na óptica do recorrente, torna a disposição ínsita no artº 400º, nº 2, conjugadamente com o preceituado nos artigos 427º e 432º, todos do Código de Processo Penal, feridente do princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da Constituição, por isso que, ainda no seu entendimento, embora as leis de processo civil e de processo penal tenham ritualismos não coincidentes, isso não poderá influenciar
'os recursos em si, ou interferir na sua substância, nos seus graus e na sua admissibilidade'.
Será assim, como pretende o recorrente?
4.1. A consagração do sistema de adesão, em regra obrigatório, da acção cível à acção penal, não significa que, pela unidade da causa, se confundam as pretensões que fundamentam uma e outra ou que ambas deixem de ter autonomia (cfr. sobre a questão, Figueiredo Dias, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, estudo publicado no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966, 88 e segs., Direito Processual Penal, 1º Vol., 540 e segs., e Jornadas de Direito Processual Penal, 15).
Simplesmente, a ritologia processual a que obedecerão ambas as pretensões é regulada pela lei adjectiva criminal, pelo que será esta a matriz a que deverão obedecer os trâmites destinados a fazer reconhecer em juízo, ou a tornar coercivelmente realizada, a pretensão cível, sendo certo que em tal lei adjectiva é unitário o recurso ordinário, aí não se consagrando as figuras da apelação e revista.
Por isso, será de harmonia com as regras próprias daquela lei adjectiva que os recursos tocantes à pretensão cível hão de obedecer, não se podendo, pois, dizer que - no que concerne a matéria cível objecto de pretensão processual deduzida em tribunal civil perante as regras da lei adjectiva civil e matéria da mesma natureza, fundada na prática de um acto ilícito de natureza penal, que terá, em princípio, de ser objecto de reconhecimento em juízo através do processo penal - haja uma identidade de situações reclamante de tratamento semelhante.
4.2. O princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, como sabido é, exige a dação de tratamento igual àquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias (cfr., na jurisprudência deste Tribunal, por todos, o Acórdão nº 188/90, publicado na 2ª Série do Diário da República de 12-SET-90).
Sendo assim, há que saber se existe arbitrariedade, irrazoabilidade ou não há fundamento bastante para a diferenciação no que respeita ao regime de recursos respeitante à matéria cível quando ela for objecto de pretensão deduzida em acção regulada no Código de Processo Civil, ou for objecto de pretensão fundada na prática de um acto ilícito de natureza penal, caso em que, em princípio, terá de ser deduzida no processo criminal.
A resposta a uma tal questão não pode, na perspectiva do Tribunal, deixar de ser negativa.
Efectivamente, viu-se já que da circunstância de se consagrar o sistema de adesão - e essa consagração, advinda da norma do artº 71º do Código de Processo Penal, não foi questionada pelo recorrente do ponto de vista da sua conformidade constitucional - resulta que a pretensão de pedido de indemnização derivado da responsabilidade civil conexionada com a prática de um acto ilícito de natureza criminal tem de ser efectivada jurisdicionalmente por intermédio da corte de leis adjectivas penais, às regras destas se subordinando.
Além dessa circunstância, milita a de não se pôr aqui em causa - pois que essa questão não foi suscitada pelo ora recorrente - o regime de recurso unitário que se encontra prescrito no Código de Processo Penal, regime esse no qual se não estabelece a dicotomia de recursos de apelação e revista.
Acresce a tudo isto que seria, como bem assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, verdadeiramente incongruente que, estabelecendo-se no Código de Processo Penal, como regra (ver a excepção consagrada no artº 446, nº
1, desse diploma), a existência de um só grau de recurso, só se admitisse ele no que concerne à matéria penal, «abrindo», porém, à matéria cível a possibilidade de, se o valor da sucumbência o permitisse, haver dois graus, o que, então, até poderia representar um tratamento desfavorável no que respeita a uma diminuição de controlo jurisdicional da relação jurídico-punitiva. A ideia de congruência extraível do estado de direito democrático, bem justifica, por isso, que a possibilidade de impugnação da decisão judicial tomada em 1ª instância quanto à matéria civil relativa ao pedido de indemnização formulado em processo penal, obedeça aos mesmos graus de controlo que a matéria criminal.
Estas razões apontam, pois, para que o regime constante da norma do nº 2 do artº 400º do Código de Processo Penal, em cotejo com os artigos 427º e 432º, ainda do mesmo diploma, da forma como foi aplicada na decisão recorrida, não se apresente desprovido de razoabilidade e justificação, logo não sendo arbitrário e, sequentemente, consagrador de uma diferenciação de tratamento vedado pelo princípio da igualdade sediado no artigo 13º da Constituição.
III
Termos em que se nega provimento ao recurso, confirmando-se, assim, na parte impugnada, a decisão recorrida.
Lisboa, 1 de Março de 1994
Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca (dispensado o visto) Luís Nunes de Almeida