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Proc. nº 374/95 ACÓRDÃO Nº 790/96
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 20 de Junho de 1994, deu entrada no Supremo Tribunal de Justiça um requerimento transmitido por telecópia e subscrito pelo recorrente M... contendo alegações no recurso interposto a fls. 416/419 naquele Supremo Tribunal.
Segundo se referia nessas alegações, o Conselheiro relator não admitira um recurso tempestivamente interposto para o tribunal pleno por não se mostrarem pagas as custas contadas nos termos do art. 122º, nº 4, do Código das Custas Judiciais.
De uma outra decisão de 10 de Abril de 1991 tinha sido interposto um segundo recurso para tribunal pleno, mas o mesmo ter-se-ia tornado inútil uma vez que, em 6 de Outubro de 1993, o recorrente viera pagar essas custas, embora fora do prazo legal. Na opinião do alegante, teriam cessado as razões para não admitir o primeiro recurso para o tribunal pleno. Para a hipótese de se adoptar diferente entendimento, o recorrente suscitou, desde logo, a questão da inconstitucionalidade material do art. 117º, nº 1, do Código das Custas Judiciais, na parte em que essa disposição não concede uma segunda oportunidade ao responsável por custas. Ainda no entendimento do recorrente, 'só depois de suprida a divergência de exegese da norma contida no art. 117º, nº 1 do C.C.J. é que será possível verificar se a instância se encontra ou não extinta por impossibilidade de o interessado poder praticar qualquer acto no processo, incluindo o de proceder ao pagamento voluntário das custas de que é devedor contadas nos termos do art. 122º, nº 4 do C.C.J. e/ou de interpor reclamação nos termos previstos no art. 700º, nº 3 do C.P.C.' (a fls. 4). Ainda na mesma peça invocou um acórdão-fundamento que estaria em oposição com a decisão recorrida. E afirmou, por fim, que, a não se entender existir oposição, 'a eventual interpretação restritiva que venha a ser dada à norma legal contida no art. 763º nº 1 do C.P.C. revela-se materialmente inconstitucional por violar os direitos fundamentais contidos nos art. 20º, nº 1 e 207º da C.R.P., e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, nomeadamente o direito de recurso' (a fls. 5). Terminou estas alegações pedindo, em alternativa, ou a declaração da inutilidade superveniente do recurso interposto a fls. 416/419 por se mostrarem pagas as custas em dívida, com a correlativa admissão do recurso para tribunal pleno, ou então, e em caso de diverso entendimento, se reconhecesse 'existir a oposição que serve de fundamento ao presente recurso'.
Acha-se junta aos autos certidão, a fls. 10, de onde resulta o seguinte quadro das vicissitudes do processo principal:
- o ora recorrente fora parte recorrente num recurso de revista, em autos vindos da Relação de Lisboa, sendo recorrida a sociedade Sousa Tavares, Lda, com sede no Funchal;
- que, de harmonia com o nº 4 do art. 765º do Código de Processo Civil, haviam sido extraídas fotocópias do acórdão de fls. 400 e do requerimento de interposição do recurso de fls. 416/419;
- que fora admitido um recurso para tribunal pleno, através do requerimento de fls. 416/419, sem efeito suspensivo (despacho de 3 de Junho de 1994).
Na sequência da promoção do representante do Ministério Público, foi ordenado ao recorrente que juntasse certidões dos autos principais. Após vários pedidos de prazo, veio o recorrente a cumprir o ordenado.
Através da certidão que se acha a fls. 31 e segs. dos presentes autos é possível reconstruir o iter processual confusamente referido nas alegações atrás aludidas.
Assim:
- Em 17 de Outubro de 1990, o ora recorrente pretendeu interpor recurso para tribunal pleno do acórdão que julgara a revista, indicando seis arestos anteriores em oposição com aquele;
- Através do despacho de fls. 393, proferido em 10 de Janeiro de 1991, não foi admitido esse recurso, por não ter pago o recorrente no prazo legal as custas que haviam sido contadas (arts. 117º, nº 1, e 122º do Código das Custas Judiciais);
- Em 25 de Janeiro de 1991, através do requerimento de fls. 394 e vº dos autos principais, o recorrente deu conta de que a secretaria se havia recusado a passar as guias para pagamento das custas, pedindo que fosse ordenada a passagem dessas guias, para depois se admitir o recurso; no caso de assim se não entender, reclamou para a conferência, suscitando a inconstitucionalidade do nº
1 do art. 117º do Código de Custas Judiciais;
- A fls. 395, acha-se o despacho do relator, de 5 de Fevereiro de 1991, a considerar que, por falta de reclamação tempestiva para a conferência, havia transitado em julgado o despacho de fls. 393; afirma-se nesse despacho que, de todo o modo, o recurso para tribunal pleno não seria viável 'por não se poder invocar como acórdão fundamento decisão que não declare ter transitado e sido proferido no domínio da mesma legislação (art. 763º do C. Proc. Civil)'.
- Deste despacho apresentou o recorrente reclamação para a conferência em 19 de Fevereiro de 1991, mas a mesma foi indeferida por despacho do relator de 26 de Fevereiro de 1991;
- Desse novo despacho reclamou o recorrente para a conferência arguindo a nulidade do despacho reclamado, por ilegitimidade do relator.
2. Face às alegações apresentadas em 20 de Junho de 1994, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de não se verificar oposição de julgados (a fls. 47 a 49).
Através de acórdão proferido em 21 de Junho de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não existir oposição entre o acórdão de 10 de Abril de 1991, proferido no processo nº 2430, e o acórdão-fundamento de 7 de Junho de 1983. Nesse acórdão considerou-se que, quanto às 'restantes questões aludidas nas Alegações do Recorrente, elas estão prejudicadas quanto ao respectivo conhecimento, em face do objecto de recurso e da fase em que se encontra o processo neste momento' (a fls. 60 vº). O Supremo concluiu que os acórdãos alegadamente em oposição acolhiam a mesma interpretação da norma do art. 700º, nº 3, do Código de Processo Civil:
' Para já, não se vê onde possa estar a divergência de julgados quanto à interpretação do art. 700º, nº 3, CPC, pois ambos os Acórdãos se limitam à observância estrita da mesma disposição.
Assim o Acórdão fundamento decidiu que, tendo sido proferido Despacho a julgar deserto um recurso por falta de alegações, se trata de um Despacho jurisdicional e não de mero expediente, e, assim, notificado o mesmo à parte, esta não pode dele reclamar mas só lhe restará um caminho, ou seja, requerer nos termos do art. 700º, nº 3, do CPC, que sobre esse Despacho recaia Acórdão, indo os autos à Conferência para ali serem produzidas alegações.
No Acórdão recorrido decidiu-se que, por falta de reclamação tempestiva para a Conferência do Despacho do Relator, se verifica o seu trânsito, ficando a instância extinta.
Supomos que não serão necessárias mais considerações para se chegar à conclusão de que ambos os Acórdãos consagram afinal a mesma orientação, ou seja, a de que, tendo sido proferido um Despacho pelo Relator com o qual a parte não concorde, deverá esta requerer que sobre o mesmo recaia um Acórdão, para o que o Relator deverá levar o processo à Conferência; e que, se a parte o não fizer, o Despacho transita em julgado e já não poderá dele interpor-se o recurso ordinário, como é
óbvio'. (a fls. 61 vº-62)
E, mais à frente, afirmou-se no acórdão que se vem citando:
'6.4.2. Não há, assim, entre os dois Acórdãos qualquer oposição, muito menos de carácter expresso.
6.4.3. Mas como o refere o Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, as situações de facto também não são semelhantes.
Num caso (o do Acórdão-fundamento) houve falta de alegações por erro na indicação do processo a que se destinavam.
No outro (o do acórdão recorrido), houve falta de pagamento de custas.
Não obstante, em ambas as causas, houve falta de reclamação oportuna para a Conferência do Despacho do Relator, em manifesta inobservância do disposto no art. 700º, nº 3, C.P.C.' (a fls. 62)
3. Deste acórdão interpôs o recorrente recurso para o Tribunal Constitucional a fls. 65, o qual foi admitido por despacho de fls. 66.
4. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Em resposta a um convite formulado pelo relator, veio o recorrente indicar que o recurso fora interposto ao abrigo 'do art. 70º, nºs. 1, al. b), e
2, al. b),' [sic] da Lei do Tribunal Constitucional, tendo por objecto a ilegalidade e a inconstitucionalidade das normas contidas nos arts. 117º, nº 1 e
122º, nº 4 do C.C.J., na interpretação restritiva dada pelo STJ no acórdão segundo a qual o recurso é julgado deserto por falta de pagamento no prazo legal das custas contadas, com violação das normas de valor reforçado contida nos arts. 8º, 9º e 10º do Código Civil, e ainda das normas dos arts. 2º, 13º, 20º,
205º, nº 2, e 207º da Constituição; e ainda a inconstitucionalidade e a ilegalidade da norma do art. 763º, nº 1, do Código de Processo Civil, 'na interpretação restritiva dada pelo S.T.J. no douto Acórdão de fls. dos autos, segundo a qual só é admissível recurso para o Tribunal Pleno com invocação de um
único acórdão-fundamento e desde que as situações de facto sejam idênticas, por violar as normas de valor reforçado contidas nos arts. 8º, 9º e 10º do C. Civil quando prescrevem que o julgador deve procurar obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito que tenha em conta o pensamento e objectivo do legislador com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, o que não se verificou in casu, e por violar os direitos fundamentais contidos nos arts. 2º,
13º, 20º, nº 1, 205º, nº 2 e 207º da C.R.P. e 10º da D.U.D.H., nomeadamente o direito de recurso, que incorpora no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, cuja questão foi suscitada na reclamação de
15.06.95 a fls.... e nas alegações de recurso apresentada a fls.... dos autos, pelo que requer a V. Exªs. se diguem admiti-lo nos termos legais' (a fls. 68).
Através das alegações de fls. 71 a 76. o recorrente sustentou sucessivamente a inconstitucionalidade e ilegalidade das normas contidas nos arts. 117º, nº 1, e 122º, nº 4, do Código de Custas Judiciais e do nº 1 do art.
763º do Código de Processo Civil, repetindo a argumentação já anteriormente expendidas.
A sociedade recorrida não contra-alegou.
5. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar preliminarmente se pode conhecer-se do objecto do recurso.
II
6. Do que acaba de referir-se no presente relatório, pode desde logo decidir-se que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento das questões de inconstitucionalidade ou de ilegalidade das normas contidas nos arts. 117º, nº 1, e 122º, nº 4, do Código de Custas Judiciais, por falta de um pressuposto processual previsto no art. 70º, nº 1, alíneas b) e f), da Lei do Tribunal Constitucional.
De facto, tais normas - cuja inconstitucionalidade foi suscitada em sucessivos requerimentos e nas alegações do segundo recurso para tribunal pleno
- não foram aplicadas pelo acórdão recorrido. Não foi interposto recurso de constitucionalidade da decisão que não admitiu o primeiro recurso para o tribunal pleno e foi nessa decisão (despacho do relator de fls. 393) que foram aplicadas as normas do Código de Custas Judiciais, pela primeira vez. Tão-pouco foram impugnadas por recurso de constitucionalidade subsequentes decisões que consideraram ter transitado em julgado o despacho de rejeição do primeiro recurso para tribunal pleno.
Deve notar-se que, no acórdão recorrido, houve o cuidado de se afirmar, em passo atrás transcrito, que estavam prejudicadas, em face do objecto do segundo recurso para tribunal pleno e da fase em que se encontrava o processo,
'as restantes questões aludidas nas Alegações do Recorrente'.
7. Relativamente à norma do art. 763º, nº 1, do Código de Processo Civil, é indubitável que a mesma foi aplicada pelo acórdão recorrido, tendo sido suscitada a questão da sua inconstitucionalidade nas alegações do recorrente.
Importará, por isso, verificar se a norma foi aplicada nos autos com o sentido inconstitucional que lhe imputa o recorrente.
8. Dispõe o nº 1 do art. 763º do Código de Processo Civil:
' Se, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas, pode recorrer-se para o tribunal pleno do acórdão proferido em último lugar'.
Nas alegações para o tribunal pleno, o recorrente invocou que o acórdão-fundamento julgara que do despacho do relator que tinha considerado deserto o recurso por falta de alegações apenas era possível requerer que sobre esse despacho recaísse acórdão, nos termos do nº 3 do art. 700º do Código de Processo Civil. Em sua opinião existiria oposição relevante entre esse acórdão e o acórdão recorrido 'quanto à mesma questão fundamental de direito, isto é, quanto à interpretação da norma contida no art. 700º, nº 3 do C.P.C. aplicada em ambos os Acórdãos, sendo irrelevante a diferença existente entre os elementos acessórios da relação (...)'. E, prevenindo entendimento diverso, afirmou-se que
'a eventual interpretação restritiva que venha a ser dada á norma legal contida no art. 763º, nº 1 do C.P.C. revela-se materialmente inconstitucional por violar os direitos fundamentais contidos nos art. 20º, nº 1 e 207º da C.R.P. e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, nomeadamente o direito de recurso'
(a fls. 8 e 9).
No requerimento de interposição do recurso considerou-se inconstitucional a interpretação da norma acolhida no acórdão recorrido 'segundo a qual só é admissível recurso para o Tribunal Pleno com invocação de um único acórdão-fundamento e desde que as situações de facto sejam idênticas...' (a fls.
65).
A mesma tese é repetida nas alegações a fls. 81 a 83 dos autos, com maior desenvolvimento teórico ou doutrinal.
9. É manifesto que o acórdão recorrido não aplicou o nº 1 do art. 763º com o sentido alegadamente inconstitucional que lhe imputa o recorrente.
De facto, e como se viu das transcrições atrás feitas, o recorrente só indicou um acórdão como acórdão-fundamento de oposição com o acórdão recorrido
(acórdão de 7 de Junho de 1983).
O Supremo Tribunal de Justiça considerou que se verificavam os requisitos legais de natureza processual para conhecer do recurso, mas veio a julgar que a mesma questão fundamental de direito fora resolvida do mesmo modo nos acórdãos alegadamente em oposição, acolhendo-se a mesma interpretação do nº
3 do art. 700º do Código de Processo Civil, embora as situações de facto fossem diversas nos dois acórdãos. Nessa medida, julgou findo o recurso.
Ora, não tendo o Supremo Tribunal de Justiça aplicado o nº 1 do art.
763º com o sentido alegadamente inconstitucional e ilegal que lhe aponta o recorrente, não pode o Tribunal Constitucional, por falta desse pressuposto, conhecer do objecto do recurso quanto a essa norma. Deve notar-se que o Supremo aludiu à circunstância de não serem idênticas as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos, mas considerou tal irrelevante, uma vez que decidiu não haver soluções opostas sobre a mesma questão de direito em ambos os acórdãos.
III
10. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do recurso quanto a todas as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Junho de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Luis Nunes de Almeida