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Processo Nº 635/93
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
A., mandatário da lista do Partido Socialista para a Câmara Municipal de Vila do Porto, reclamou, em 21 de Outubro de 1993, da lista do Partido Social Democrata, alegando que o candidato deste Partido às eleições de 12 de Dezembro próximo, que figura no segundo lugar da lista (B.), é inelegível para aquele órgão autárquico, por ser sócio gerente da sociedade comercial por quotas C., e esta ter celebrado com a referida Câmara Municipal, em 6 de Outubro de 1993, um contrato de fornecimento de materiais para a obra de construção da rede de esgotos domésticos e pluviais da estrada municipal de
------------------ - contrato que foi outorgado por aquele candidato na aludida qualidade de sócio gerente e que ainda se encontra em execução.
Por despacho de 23 de Outubro de 1993, o juiz da comarca de Vila do Porto (ao abrigo do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro) julgou inelegível o referido B. e, em consequência - face ao disposto no artigo 21º, nº 1, do mesmo Decreto-Lei nº
701-B/76 -, rejeitou a sua candidatura à eleição para a dita Câmara Municipal.
2. Em 26 de Outubro de 1993, veio D., mandatário do Partido Social Democrata - PPD/PSD no concelho de Vila do Porto, ao abrigo do disposto no artigo 22º, nº 1, do dito Decreto-Lei nº 701-B/76, reclamar do mencionado despacho, de 23 de Outubro de 1993, que rejeitou a candidatura do referido B. - despacho que, segundo alegou, lhe foi notificado em 25 de Outubro.
O juiz, por despacho de 2 de Novembro de 1993, desatendeu a reclamação e manteve a rejeição da aludida candidatura.
3. Em 5 de Novembro de 1993, pelas 14,30 horas, o referido mandatário do Partido Social Democrata, D., apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 701-B/76, no Tribunal Judicial de Vila do Porto, requerimento, dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional, a interpor recurso daquela decisão, de 2 de Novembro de 1993, que rejeitou a candidatura de B. à eleição para a Câmara Municipal de Vila do Porto.
Depois de dizer que as listas definitivas de candidatos
à eleição, de 12 de Dezembro próximo, para a Câmara Municipal de Vila do Porto foram afixadas às 15,30 horas do dia 3 de Novembro, o recorrente - que juntou sete documentos - alegou, entre o mais, o seguinte:
(a). O contrato de fornecimento de material, celebrado entre a firma C., de que o candidato B. é sócio-gerente, e a Câmara Municipal de Vila do Porto - que se vence em 5 de Novembro - 'não se protrai no tempo' e respeita 'a um fornecimento ocasional, dentro dos usos do comércio';
(b). O fornecimento do material está 'já definitivamente cumprido, assim como o pagamento do mesmo, por parte da Câmara Municipal'.
O recorrente termina pedindo que, no provimento do recurso, se admita 'a candidatura do nº 2 da lista do PPD/PSD à Câmara Municipal de Vila do Porto, B.'.
O mandatário do Partido Socialista, referido A., notificado, em 5 de Novembro, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 701-B/76, veio, em 9 de Novembro, responder.
4. Cumpre, então, decidir se o candidato B. é ou não elegível para a Câmara Municipal de Vila do Porto.
II. Fundamentos:
5. O recurso vem da decisão de rejeição definitiva de uma candidatura - que é uma decisão final, já que foi proferida sobre uma reclamação de despacho que havia rejeitado essa mesma candidatura (cf., por
último, o Acórdão nº 697/93) -, e foi interposto em tempo por quem tem legitimidade para recorrer (cf. artigos 25º, nº 2 e 26º).
Há, pois, que passar ao conhecimento do seu objecto, pois que a tanto não obsta o facto de ter sido apresentada já depois de expirado o prazo de dois dias, fixado para o efeito no nº 3 do artigo 27º (e, assim, extemporaneamente: cf., por último, o Acórdão nº 623/89) a resposta do mandatário da lista, que havia impugnado a candidatura ora em causa.
6. Os factos:
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os seguintes:
(a). O candidato do PPD/PSD à eleição para a Câmara Municipal de Vila do Porto, B., é sócio-gerente da sociedade comercial por quotas C.;
(b). Esta empresa celebrou, em 6 de Outubro de 1993, com a Câmara Municipal de Vila do Porto, um contrato de fornecimento de materiais para a obra de construção da rede de esgotos domésticos e pluviais da estrada municipal de
------------------------, nele intervindo o referido candidato em representação da sociedade (cf. certidão de fls. 312 a 317 dos autos).
(c). A firma em causa tinha que entregar os materiais, objecto do contrato, até
6 de Novembro de 1993, o que realmente fez, como resulta do documento de fls.312 a 317 citado, conjugado com o de fls. 322.
(d). Em 4 de Novembro de 1993, a Câmara Municipal liquidou à referida firma tudo quanto lhe devia em consequência desse contrato, do que foi dada quitação (cf. fotocópias do cheque de fls. 323 e do recibo de fls. 325 e da guia de fls. 324).
7. O direito e sua aplicação aos factos:
A norma que o caso convoca é a do artigo 4º, alínea f), que dispõe como segue: Artigo 4º (Inelegibilidades) Não podem ser eleitos para os órgãos do poder local: a) a e) [...] f). Os membros dos corpos sociais e os gerentes de sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com a autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada.
Este Tribunal, no seu Acórdão nº 231/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º volume, páginas 839 e seguintes), julgou elegível um candidato à eleição para a câmara municipal, que era sócio-gerente de uma empresa que fornecia cimento a essa câmara, tendo sido, mesmo, durante esse ano, a única fornecedora. Nesse acórdão, depois de se ponderar que se não verificava, no caso, a hipótese da existência de um contrato não integralmente cumprido, que ligasse a firma à autarquia, acrescentou-se:
Contrato de execução continuada é um só contrato que se protrai no tempo, sem termo final fixado ou com termo que foi assinalado. O facto de se dizer que é fornecedora revela apenas uma simples situação de facto e uma certa habitualidade, mas não demonstra a existência de um vínculo obrigacional que se prolongue no tempo. Poderá haver contratos sucessivos, mas nunca um contrato tipificável como continuado. Esta realidade, ligada à circunstância de estarmos perante matéria de compressão de direitos fundamentais, conduz à conclusão de que a enumeração é taxativa, e não enunciativa, devendo a alínea f) interpretar-se nos seus precisos termos. Por se tratar de norma excepcional, não é de admitir o recurso à analogia. [...] Como quer que seja, na eventualidade de o conjunto probatório constante nos autos se vir a revelar desajustado da realidade concretamente existente, haveria de se aplicar a cominação prevista no artigo 70º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, por força da qual o mandato que eventualmente o candidato venha a conquistar seria perdido.
O Acórdão nº 253/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 6º, páginas 129 e seguintes) incidiu sobre o caso de um candidato a uma assembleia de freguesia, que tinha celebrado alguns contratos de empreitada com a câmara municipal do respectivo concelho. Decidiu-se aí que tal candidato era elegível, porque, figurando em quarto lugar na respectiva lista,
'nunca iria participar qualquer que fosse o resultado das eleições, e nem mesmo reflexamente, em qualquer órgão de poder local do concelho [...], que com ele celebrou diversos contratos de empreitada'.
Antes de atingir esta conclusão, ponderou o Tribunal o seguinte:
Tal norma [a da alínea f) do artigo 4º aqui sub iudicio] visa proteger a justiça da actuação e a imparcialidade dos órgãos do poder autárquico no plano da gestão autárquica, e por essa sua finalidade só poderá referir-se, dentro da lógica que internamente a comanda, aos candidatos que, por virtude das eleições a que pretendem concorrer, possam vir a fazer parte dos órgãos da autarquia com a qual tenham contrato pendente. Assim, se o contrato tiver sido celebrado com um concelho, o candidato só é atingido pela inelegibilidade em causa se pretender eleitoralmente concorrer à câmara municipal ou à assembleia municipal de tal município ou ainda, e como cabeça de lista, à assembleia de qualquer uma das freguesias do mesmo concelho, já que neste último caso, será automaticamente presidente da junta de freguesia
[...] e terá, em consequência, assento, por direito próprio, na assembleia municipal do respectivo concelho [...].
No Acórdão nº 259/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 6º, páginas 159 e seguintes), o Tribunal - depois de haver concluído que a norma do artigo 4º, nº 1, alínea f), do Decreto-Lei nº
701-B/76, de 29 de Setembro, não é inconstitucional (assim contrariando o que havia sido decidido no acórdão nº 4/84, DR, II, de 30/4/984) - frisou-se:
Ora, a ratio do preceito da citada alínea f) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 701-B/76 encontra-se justamente, como se viu, na preocupação de assegurar um exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos electivos autárquicos.
E, mais adiante, acrescentou-se:
Em todo o caso, não parece de admitir que a mera existência de uma dívida proveniente de um fornecimento ocasional, dentro dos usos do comércio, pudesse, só por si, servir de suporte razoável para a declaração de uma inelegibilidade: o conceito de 'contrato não integralmente cumprido' não pode assumir uma tal extensão, para efeitos da referida alínea f).
Quanto à capacidade eleitoral passiva, a regra é a de que 'todos os cidadãos têm direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos' (cf. artigo 50º, nº 1, da Constituição). 'No acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos (cf. artigo 50º, nº 3).
Ora, com a inelegibilidade consagrada na alínea f) do nº
1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 701-B/76, visa o legislador garantir a isenção e a independência com que os titulares dos órgãos autárquicos devem exercer os seus cargos (e, assim, gerir os negócios públicos). De facto - como se escreveu no citado acórdão nº 4/84 - , 'os membros dos corpos sociais, assim como os proprietários de empresas que tenham contratos não integralmente cumpridos ou de execução continuada com a autarquia não oferecem, em princípio, as garantias impostas pelas regras de disciplina e perfectibilidade que devem ser apanágio dos órgãos de gestão autárquica'.
Como está em causa o 'exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos autárquicos', o que, em direitas contas, então interessa é que, para os órgãos de determinada autarquia local, não seja eleito quem, ao iniciar o exercício do cargo, seja membro dos corpos sociais ou proprietário de uma empresa que tenha contratos pendentes com essa autarquia. E isso, tanto no caso de a subsistência do contrato, nesse momento, se dever ao facto de se tratar de negócio cuja execução se protrai no tempo, como naquele em que, sendo um contrato de outro tipo, as obrigações que dele decorrem ainda se acharem nessa altura por cumprir, ao menos em parte.
Fora dessa situação, não se vê, na verdade, que haja motivos para suspeitar que, ao gerir os negócios da autarquia, o autarca se determine por interesses da 'sua' empresa, que decorram de direitos ou obrigações com origem em contratos celebrados entre a autarquia e essa empresa.
Por isso, se, no momento em que tem que se decidir da elegibilidade de determinado candidato (que é sócio-gerente de uma empresa, que celebrou com a câmara, a que ele concorre, um contrato de fornecimento de materiais), tal contrato já se acha integralmente cumprido, a conclusão só pode ser a de que esse candidato não está ferido de inelegibilidade. A inelegibilidade, num tal caso, não é, de facto, necessária para garantir a isenção e a independência do exercício do cargo.
Pois bem: no caso, o candidato B. é sócio-gerente de uma empresa que celebrou com a Câmara Municipal de Vila do Porto, a que ele concorre, um contrato de fornecimento de materiais. Esse contrato acha-se, no entanto, integralmente cumprido [cf. supra, II, 6., alíneas c) e d)].
É certo que o dito contrato de fornecimento só se esgotou em 4 de Novembro de 1993, (portanto, depois da data em que as candidaturas foram apresentadas, e depois também daquele em que o juiz proferiu o despacho que, desatendendo a reclamação, rejeitou a candidatura - 2 de Novembro de 1993), pois que, até então, havia direitos e obrigações, dele decorrentes, por cumprir.
Simplesmente, sendo, como é, legalmente admissível proceder à substituição de candidatos inelegíveis por outros que o não sejam
[cf. artigo 21º, nº 2, do Decreto-Lei nº 701-B/76 e Acórdãos deste Tribunal nºs
264/85 (DR, II, de 21/3/86) e 565/89 (DR, II, de 5/4/90), o que importa é que, neste momento, o candidato que aqui está em causa não está ferido de inelegibilidade.
O candidato B. é, pois, elegível.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e julga-se elegível o candidato B., apresentado pelo PPD/PSD às eleições para a Câmara Municipal de Vila do Porto.
Lisboa, 16 de Novembro de 1993
Messias Bento Antero Alves Monteiro Dinis António Vitorino Alberto Tavares da Costa Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria da Assunção Esteves Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa