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Procº nº 91/92.
2ª Secção. Relator: - Consº BRAVO SERRA.
I
1. A. reclamou para o Presidente da Relação de Lisboa dos despachos proferidos pela Juiz do 14º Juízo do Tribunal Cível da comarca de Lisboa em 28 de Junho de 1991 e através dos quais foi considerado que dois recursos de agravo por ele interpostos, e cuja admissão foi determinada em obediência ao decidido pelo mesmo Presidente noutros autos de reclamação para o efeito instaurados, subiriam ao tribunal superior com o primeiro recurso que a ele tivesse de subir imediatamente.
Na petição respectiva, o então reclamante aduziu que, a não ser deferida a reclamação face aos argumentos que apresentava, então desde logo invocava 'a inconstitucionalidade das normas dos arts. 734º nº 2, 731º nº
1' [cfr. correcção efectuada no requerimento entrado na Relação de Lisboa em
29-NOV-91] '735º e 740º, todos do Código de Processo Civil, por ofenderem os preceitos e princípios contidos nos arts. 13º, 16º e 20º, todos da Constituição da República Portuguesa'.
2. O indicado Presidente, por despacho de 8 de Novembro de 1991, indeferiu a reclamação, para o que invocou:
'........................................
Mas, de acordo com as regras gerais aplicáveis (não há, 'in casu', regras especiais que se lhes sobreponham), a subida de tais agravos não pode deixar de ser diferida, com o primeiro que haja de subir imediatamente (artº 735 do CPC).
Não é aplicável, no contexto em a- preço, o nº 2 do art 734 do CPC, já que esta norma tem por âmbito, apenas, a absoluta inutilidade dos próprios recursos, e não apenas a eventual inutilização ou reformulação de actos processuais (v.g. Ac do STJ de 21.7.87 - BMJ 369,489).
O reclamante, prevendo o indeferimento da presente reclamação, acrescenta que, nesta hipótese, «suscita a inconstitucionalidade» dos arts 733,
735 nº 1 e 740 do CPC, por alegada ofensa dos arts. 13, 16 e 20 da Constituição.
Não apresenta, porém, a mínima justificação para tanto.
Daí que nada, a este respeito, reste acrescentar, a não ser que se não encontra qualquer inconstitucionalidade na normatividade processual aqui aplicável, mormente art 735 do CPC.
Um pouco à margem do núcleo da reclamação, o reclamante evidencia que pretende efeito suspensivo para tais agra- vos. Mas, como é sabido, a problemática do efeito do recurso só é controvertível em sede das respectivas alegações: arts 688 («a contrario sensu») e 687 nº 4 do CPC.
........................................'
3. Notificado da decisão de que acima se encontra transcrita parte, o agora recorrente veio solicitar a respectiva aclaração, o que foi indeferido por despacho de 20 de Janeiro de 1992.
4. Do despacho de 8 de Novembro de 1991 recorreu o A., ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para este Tribunal, referindo no requerimento interpositor que na decisão recorrida não foi 'devidamente apreciada e julgada a questão de inconstitucionalidade que fora suscitada no processo em relação às normas dos arts. 734º nº 2, 735º nº 1 e
740º, todos do Código de Processo Civil'.
5. Na alegação que produziu, o ora recorrente concluiu por se dever dar provimento ao recurso, já que a 'norma contida no nº 2 do art.
734º do C.P.C. viola directamente os preceitos, princípios e direitos fundamentais contidos nos arts. 13º nºs 1 e 2, 16º nºs 1 e 2 e 20º nº1 da C.R.P.', devendo, pois, ser considerada inconstitucional 'por conter o advérbio
'absolutamente', uma vez que impede a aplicação' dos referidos preceitos, princípios e direitos.
II
1. Do relato acima verificado facilmente se verifica que, em face da alegação apresentada, o recorrente veio a restringir (ou, se se quiser, a concretizar que) o objecto do recurso (era) tão só (a) à norma constante do nº 2 do artº 734º do Código de Processo Civil, sendo que esta asserção se torna nítida quando, a dado passo, em tal peça processual, o mesmo recorrente vem dizer que '[f]oi, então, no requerimento de apresentação da reclamação que o R. apresentou ou suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma contida no nº 2 do art. 734º do C.P.C., apesar de, por mero lapso, ali ter feito a menção de que suscitava a inconstitucionalidade da norma do art. 733º do C.P.C.', acrescentando que '[e]ste lapso é manifesto, como o é também a referência, embora compreensível, 'a contrario', às normas do art. 735º nº1
(subida diferida) e 740º (efeito suspensivo), ambos do C.P.C.'.
Acresce ainda que não é sobre toda a norma contida no nº
2 do aludido artº 734º que a questão de inconstitucionalidade vem levantada pelo recorrente, mas sim tão só o arco em que faz depender da absoluta inutilidade da retenção a subida imediata dos agravos interpostos das decisões ou despachos não indicados no nº 1 daquele artigo.
2. É o seguinte o teor desse mesmo artigo (na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho):
'Artigo 734º
(Agravos que sobem imediatamente)
1. Sobem imediatamente os agravos interpostos:
a) Da decisão que ponha termo ao processo;
b) Do despacho pelo qual o juiz se declare impedido ou indefira o impedimento oposto por alguma das partes;
c) Do despacho que julgue o tribunal absolutamente incompetente;
d) Dos despachos proferidos depois da decisão final.
2. Sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.'
Para além desta regra quanto ao regime de subida imediata dos agravos, prescrevem os artigos 738º, 739º e 1185º, nº 2, todos também do Código de Processo Civil, outras situações em que aquela espécie de impugnação das decisões judiciais tem, identicamente, subida imediata.
3. Tem a jurisprudência entendido que a absoluta inutilidade dos agravos retidos deve corresponder a situações em que da sua retenção resulte a inexistência, no processo, de qualquer eficácia, na hipótese do seu provimento, ou seja, em situações em que, ainda que a decisão do tribunal superior seja favorável ao agravante, não possa este aproveitar-se dessa decisão, aqui se incluindo os casos em que a retenção produza um resultado oposto ao efeito jurídico que o recorrente quis alcançar com a interposição do agravo , não se abarcando, consequentemente e por outro lado, os casos em que o provimento do recurso possa conduzir a inutilização ou reformulação de actos processuais entretanto praticados (cfr., entre muitos, os acórdãos, da Relação de Lisboa de 10-JUL-78, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1978, 1313, da Relação de Coimbra de 5-MAI-81, publicado naquela Colectânea, 1981, 300, da Relação do Porto de 4-DEZ-84, publicado também na dita Colectânea, 1984, 5º Tomo, 79, e do Supremo Tribunal de Justiça de 21-JUL-87, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 369, 489).
Ora, o que o recorrente questiona é que se exija, quanto aos agravos não reportados no nº 1 do artº 734º, a sua absoluta inutilidade como condição para a respectiva subida imediata, defendendo que tal exigência é incompatível com os artigos 13º, 16º e 20º, nº 1, da Constituição, não pondo, pois, em causa que para essa condição se exija que o agravo se torne, sem a subida imediata, inútil.
4. Diga-se desde já que se não vê em como o segmento da norma em apreço possa, por qualquer meio, violar directamente o artigo 16º da Constituição, o qual define o âmbito e modo de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais.
Em verdade, o que há, neste ponto, que averiguar, é se algum direito fundamental é atingido pelo arco normativo em apreço, sendo certo que, na integração e interpretação desse direito, se estas se tornarem necessárias, se tem de fazer apelo ao consagrado no nº 2 do citado artigo 16º.
5. Isto posto, incumbirá analisar se o mencionado segmento é conflituante com o princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da Lei Fundamental.
Aquele princípio exige a dação de tratamento igual
àquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias
(cfr., na jurisprudência deste Tribunal, por todos, o Acórdão nº 188/90, publicado na 2ª Série do Diário da República de 12-SET-90).
Não se pondo em causa que a norma em crise, necessariamente, confere o mesmo tratamento a todos os agravantes de despachos ou decisões não incluídos no nº 1 do artº 734 - e, bem assim, nos artigos 738º,
739º e 1185º, nº 2 - , o que interessa dilucidar é se a exigência da absoluta inutilidade do agravo, comparativamente com as situações decorrentes dos preceitos atrás referidos, posta aqueles agravantes numa situação desigual injustificada, irrazoável ou arbitrária.
5.1. A esta questão entende o Tribunal ser de dar uma resposta negativa.
É evidente que o legislador ordinário dispõe de liberdade para, no que tange ao regime de subida dos agravos, poder não subordinar uma subida imediata a quaisquer condições ou ao conteúdo das decisões impugnadas - assim subindo logo ao tribunal superior os agravos mal sejam interpostos e recebidos; mas, no domínio dessa mesma liberdade, igualmente poderá subordinar a subida imediata tendo em conta o conteúdo dos despachos ou decisões agravadas - desta arte subindo logo os agravos referentes a determinados despachos ou decisões, e subindo diferidamente os agravos que digam respeito a outros despachos ou outras decisões.
Na realidade, um dos valores que a administração da justiça deve prosseguir, a isso não podendo ser indiferente o Diploma Básico, é o da sua celeridade, pois que uma justiça demasiadamente arrastada não pode, verdadeiramente, ser considerada «justa».
Daí que seja razoável que ao legislador seja consentido
- sem coarctar a possibilidade que o acedente à justiça tenha de fazer impugnar perante um tribunal superior, face ao elenco de tribunais visualizado na Constituição, decisões tomadas por tribunais de inferior hierarquia - efectuar distinções quanto ao regime de subida dos agravos, se, efectivamente, de uma indiscriminada «abertura» tocante a esse regime viesse a resultar um «arrastar» processual com a inerente demora na resolução dos feitos judiciais.
Mas, se isto é assim, haverá também de concluir-se que as razões que aconselham a que se não proceda àquela indiscriminada «abertura»
(com a consequente demora na resolução das questões de fundo sujeitas ao veredicto dos tribunais) tornam-se muito menos procedentes quando em causa estejam situações exigentes de uma célere resposta quanto à matéria dos agravos.
Por isso - ou seja, face à diferenciação que tem de reconhecer-se existir entre essas situações e aqueloutras que já não são tão exigentes de uma rápida decisão quanto ao agravo interposto - é que no nº 1 do artº 734º do C.P.C. se elencam casos em que o regime de subida é imediato e em que, sequentemente, o «desvalor» consistente no «arrastamento» processual já não
possui um peso tão acentuado que conduza a que os agravos respeitantes àquelas primeiras situações devam ter subida diferida.
Existe, pois, nessa diferenciação, um fundamento material suficiente, baseado num valor a que a Constituição não pode ser alheia
- qual seja o da celeridade na administração da justiça - que, razoável e justificadamente ( e, por isso, não se colocando como arbitrário), suporta uma opção legislativa consistente em, de harmonia com o conteúdo dos despachos e decisões judiciais e perante o seu reflexo nos diversos items processuais, condicionar a subida dos agravos a momentos imediato ou diferido.
5.2. Neste contexto, e porque em nome do exercício da falada liberdade legislativa não poderá o legislador, por via de preceitos reguladores do regime de subida dos agravos, arbitrariamente e na prática, coarctar a possibilidade de se exercer com eficácia aquela espécie de recurso - no que ora releva, em matéria não criminal - (cfr., sobre o tema dos recursos e a chamada garantia do duplo grau de jurisdição, Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1992, 95 e segs., maxime, 101 a 104), seria injustificado que, concernentemente a certas decisões cujo agravo implicasse a não subida imediata, o resultado favorável ao recorrente advindo do decidido pelo tribunal não viesse de todo ou, se quiser, em absoluto, a ter qualquer repercussão no processo. Tudo se passaria, assim, como se de nada tivesse valido a impugnação.
Uma opção legislativa tomada desse jeito certamente postaria o agravante dessas decisões em situação desigual relativamente ao agravante de decisões que demandam a subida imediata do agravo e, então sim, desenhar-se-ia uma ostensiva situação de desigualdade.
5.3. Contudo, se, não obstante a subida diferida do agravo e, consequentemente, a mais tardia prolação da decisão a tomar pelo tribunal superior, o agravante, na hipótese de obter ganho de causa, ainda pode tirar os cabidos benefícios desse ganho, mesmo que isso vá implicar a inutilização ou reformulação de actos processuais anteriormente praticados, então não se pode dizer que uma opção legislativa determinadora da subida diferida do agravo de uma dada espécie de despachos ou decisões seja arbitrária, e isto sopesando o valor que deve ser conferido à celeridade na administração da justiça que deve ser prosseguido pelo legislador.
Não se nega que o diferimento na subida de um agravo não vá, de certo modo, 'contrariar' a posição do agravante que, seguramente em muitos casos, desejaria que a impugnação que levou a cabo fosse objecto de uma mais rápida apreciação pelo tribunal superior, mas que tinha reflexo numa demora na decisão final da causa.
Simplesmente, a exigência da absoluta inutilidade do agravo como condição da sua imediata subida fora das hipóteses em que, expressamente, a lei adjectiva civil determina um tal tipo de subida, face aos valores em jogo e que acima se deixaram expostos, não torna tal exigência injustificada, irrazoável e arbitrária.
De onde a conclusão segundo a qual o segmento normativo em apreciação não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
6. O recorrente perspectiva ainda aquele segmento como violador do nº 1 do artigo 20 da Lei Básica.
Dispõe este normativo que '[a] todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
Refira-se, quanto ao ponto de que nos ocupamos, desde logo, que, como tem sido sublinhado pela jurisprudência deste Tribunal, o direito de acesso aos tribunais, consignado na transcrita norma, é um direito à solução dos conflitos por banda de um órgão independente e imparcial face ao qual as partes se devem postar em condições de total igualdade no que concerne à apresentação das respectivas perspectivas, não decorrendo desse direito
(nomeadamente, no que ora releva, se em causa estiver a litigância civil obrigacional) o asseguramento às partes da garantia de recurso das decisões que lhes sejam desfavoráveis (cfr., por todos, o Acórdão nº 210/92, publicado na 2ª Série do Diário da República de 12-SET-92).
Ora, torna-se desde logo evidente que, ao se curar do regime consagrado no artº 734º, movemo-nos já no domínio dos recursos, pelo que, ainda que outro entendimento porventura viesse a ser dado ao mencionado artigo
20º, nº 1 (de jeito a opinar-se que numa sua dimensão transcorria, mesmo em processo civil respeitante ao reconhecimento ou realização coactiva de um direito obrigacional, a garantia de existência de um segundo grau de jurisdição), sempre se haveria de conceder não ser, no caso, de qualquer forma, convocável tal disposição constitucional (a menos que, obviamente, e seguindo-se previamente uma postura acolhedora daquela opinião - que não é a seguida pelo Tribunal - se concluísse que o preceito em análise tornava na prática inviável o recurso de agravo formalmente consignado).
A estatuição constitucional de que agora nos ocupamos pressupõe, também, no domínio da jurisdição como função do Estado, a valência da ideia de igualdade consubstanciada em todos terem o direito de aceder aos tribunais em condições de igualdade e, se revertermos à jurisdição civil, a desfrutarem de iguais condições com vista à obtenção dos seus direitos ou interesses.
Daí que essa igualdade inculque que as partes no processo tenham ao seu dispor os mesmos meios, não sendo legítimos tratamentos injustificados de favor de uma parte em detrimento de outra. É, enfim, imposto por aquela norma constitucional ao ordenamento jurídico infraconstitucional a consagração de toda uma arquitectura normativa processual de onde resulte para as partes uma «igualdade de armas».
6.1. Logo por aqui se concluirá, atentas as considerações acima feitas, que com a exigência da absoluta inutilidade dos agravos como condição da sua subida imediata, nenhuma das partes no processo, designadamente o agravado, fica em posição de superioridade face ao agravante de decisões ou despachos que não implicam aquela subida.
É que, como resulta das aludidas considerações, não obstante a subida diferida, na hipótese de provimento do agravo, vêm a surgir os efeitos pretendidos pela revogação do despacho ou da decisão agravados, mesmo que isso acarrete a anulação ou reformulação de actos praticados no desenvolvimento dos despacho ou decisão revogados.
Ora, como só se permite a subida imediata nos casos em que, de todo, não seja possível ao agravado alcançar aquela eficácia, então, se mesmo sem essa subida, ainda pode o agravado atingir os efeitos desejados, não está ele, pela subida diferida, despojado dos meios processuais capazes de fazer valer processualmente a sua pretensão, por isso não se podendo falar numa posição carecida de «igualdade de armas».
Vale isto por dizer que a exigência de que curamos - a da absoluta inutilidade dos agravos como condição de subida imediata - , constante da norma em apreciação, não conflitua com o nº 1 do artigo 20º da Constituição.
III
Termos em que se nega provimento ao recurso, confirmando-se, na parte impugnada, a decisão sob censura.
Lisboa, 16 de Março de 1993
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa