Imprimir acórdão
Procº nº 47/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Pelo Tribunal Cível da comarca de Lisboa instaurou A. acção especial de despejo contra B., solicitando, de entre o mais, que fosse decretado o despejo imediato do 2º andar esquerdo do prédio urbano, de sua propriedade, com o número ---- a ---- de polícia, sito no
------------------------, em -------------, invocando, para tanto, em síntese:
- que em 4 de Outubro de 1965 fora celebrado entre C., usufrutuária daquele prédio, e D., pai do aludido B., entretanto falecido e ao qual este sucedeu, um contrato de arrendamento tendo por objecto tal fracção;
- que a C. faleceu em 11 de Fevereiro de 1986, tendo uma filha desta, de nome E., informado todos os inquilinos do dito prédio do decesso daquela, comunicando-lhes que, a partir de então, todos os assuntos relativos ao imóvel, nomeadamente o pagamento de rendas, deveriam ser tratados com a proprietária dele, a demandante A.;
- que em 3 de Março de 1986 todos os inquilinos, aqui se incluindo o B., embora sendo representado por sua mãe, se dirigiram à A., a qual lhes deu uma vez mais conhecimento do falecimento da C., ficando aquela, por via desse falecimento, a ser plena proprietária do prédio, motivo pelo qual tudo o que se reportasse ao mesmo deveria passar a ser tratado por ela;
- que o B., porém, não lhe comunicou, nos cento e oitenta dias seguintes a ter tido conhecimento do falecimento da C., a sua vontade em manter a relação contratual de arrendamento, pelo que, por força do disposto na alínea c) do nº 1 e do nº 2 do artº 1051º do Código Civil, se operou a caducidade do contrato existente;
- que, não obstante ter a A. desenvolvido esforços para que o B. lhe entregasse o mencionado andar, o mesmo não o fez, continuando a ocupá-lo.
Contestou o então réu dizendo, de entre o mais:
- que nunca a A. ou outrem lhe comunicou a morte da C. e sua qualidade de usufrutuária do prédio, motivo pelo qual sobre ele não impendia a obrigação de comunicar à A., por notificação judicial e no prazo de cento e oitenta dias contados desde 3 de Março de 1986, que pretendia manter a sua posição contratual de inquilino;
- que a A. agiu perante ele por forma a o mesmo ficar convicto que ela o reconheceu como seu inquilino;
- que só depois de decorridos cento e oitenta dias depois da mencionada data é que a A. veio a recusar a renda que pelo contestante lhe foi oferecida, o que o levou a encetar diligências, junto das cabidas repartição de finanças e conservatória do registo predial, a fim de saber qual a titularidade do prédio, facto do qual só veio a ficar ciente em 13 de Outubro de
1986, motivo por que promoveu a notificação judicial avulsa da A. com a finalidade de lhe dar a conhecer a sua vontade em manter-se como inquilino, notificação essa que veio a ocorrer em 19 de Novembro de 1986, ou seja, dentro do prazo de cento e oitenta dias desde que foi sabedor da extinção do usufruto.
1.1. A esta acção veio a ser apensa uma outra, da mesma espécie, com idêntica causa de pedir, mas referente à loja nº ------ do dito prédio, pendente pelo mesmo Tribunal, e na qual eram, Autora, a A. e, Réus, F. e mulher, G..
1.2. Por sentença de 15 de Maio de 1989 foram declarados extintos os contratos de arrendamento em causa, sendo os B. e F. e mulher condenados a imediatamente despejarem o locado.
2. Não se conformando com tal decisão, dela recorreram para a Relação de Lisboa o citados condenados, que, nas alegações, invocaram que a norma constante do nº 2 do artº 1051º do Código Civil era inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da não discriminação constantes dos artigos 13º e 18º da Constituição, pois que impunha ao locatário a obrigação de notificar judicialmente o locador a fim de lhe transmitir a vontade de manter a sua posição contratual, enquanto que a este último não era imposta, de harmonia com a alínea c) do nº 1 do mesmo artigo, tal obrigação, quando se tratava de comunicar ao locatário os «factos constitutivos da caducidade» (sic).
2.1. Por acórdão de 31 de Outubro de 1991, a Relação de Lisboa veio negar provimento ao recurso, dado que os então apelantes não teriam, nos cento e oitenta dias subsequentes a terem tido conhecimento da morte da usufrutuária do prédio, notificado judicialmente a apelada, dando-lhes conhecimento da sua vontade em se manterem no locado como arrendatários.
E, no tocante à suscitada questão de inconstitucionalidade, expressou-se aquele aresto nos seguintes termos:
«Os apelantes alegam ainda que o nº 2 do artº 1051º do Cód. Civil aplicado pela sentença é inconstitucional, por violação dos princípios de igualdade e não discriminação constantes dos artº.s 13º e 18º da C.R.P.
Sinceramente, não se compreende esta alegação, pois, por um lado, todos os inquilinos em situação idêntica à dos apelantes - necessidade de notificarem judicialmente o senhorio de que pretendem manter a sua posição contratual, no prazo de 180 dias após o conhecimento do facto caducante previsto na alª c) do nº 1 do artº 1051º do Cód. Civil - são tratados de forma igual e sem discriminação.
Porém, os apelantes deslocam esta questão para o confronto da situação dos arrendatários com a dos senhorios. Isto não é correcto, pois não é esse confronto que está em causa, sabido, como é, que a nossa lei, por razões de natureza sócio-económica, estabelece um regime bem diferenciado para uns e outros, desde longa data.
E aqui o que se pode dizer é que o mais prejudicado tem sido o senhorio, que só em limitados casos pode fazer cessar a relação locatícia e exercer plenamente o seu direito de propriedade.
E se isto é assim, em geral, ainda menos razão têm os recorrentes no que concerne ao nº 2 do artº 1.051º do Código Civil.
De facto, trata-se de um preceito que faz excepção à regra, enunciada na alª c) do nº 1 do mesmo artº - o contrato caduca com a cessação do direito ou o termo dos poderes de administração com base nos quais o contrato foi celebrado.
Esta excepção não existia na redacção original do artº em apreço, tendo sido introduzida pelo Decreto-Lei nº 67/75, de 19-2 - v. os nº.s 2 e 3 daquele artº com esta redacção. E manteve-se com as alterações, não significativas, feitas pelo Decreto-Lei nº 328/81, de 4-12 e pela Lei nº 46/85, de 20-9.
Mas, desapareceu com a revogação do nº 2 do citado artº 1.051º operada pelo nº 2 do artº 5º do Decreto-Lei nº 321-B/90, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano.
À data da morte da senhoria usufrutuária, ocorrida em 11-2-1986 - ...
- vigorava, pois, a dita excepção.
Ora, quem fica desfavorecido com esta excepção é o senhorio, que não o inquilino, pois que se vê impossibilitado de reaver o que é seu, pelo simples facto de o arrendatário, depois de conhecer o facto determinante da caducidade, o fazer notificar judicialmente após aquele conhecimento, sujeitando-o, assim, a um contrato de que não foi parte.
Trata-se, é certo, de uma formalidade 'ad substanciam', que a lei estabeleceu por uma questão de certeza e segurança jurídica, com salvaguarda das posições do senhorio e do inquilino, em matéria tão delicada como esta.
Porém, tal formalidade é de extrema simplicidade e permite que ambas as partes fiquem documentadas sobre a sua concretização - v. o artº 261º do C.P.C..
Muito mais onerosa e aleatória é a posição do senhorio, na medida em que, se quiser obter a entrega do arrendado, terá de propor acção de despejo na maior parte dos casos - v. os artº.s 967º e 970º do C.P.C..
Por outro lado, o facto de a lei não impor ao senhorio a obrigação de dar a conhecer ao inquilino a verificação do facto caducante, só beneficia este, na medida em que o prazo de 180 dias para o mesmo exercer o direito de manter a sua posição contratual não se conta desde aquela verificação, mas sim desde a data em que ele teve conhecimento desta.
Aliás, a tese dos apelantes é algo estranha, pois, apesar de considerarem inconstitucional o nº 2 do artº 1.051º do Cód. Civil, o certo é que, fundando-se nesta norma, alegaram ter exercido em tempo o direito que a mesma lhes confere. Só que tal não se provou, como vimos.
Tal alegação é, pois, insanavelmente contraditória.
Ainda se dirá que o preceito em análise não afecta o direito do inquilino à habitação, consagrado no artº 65º da Constituição.
Por um lado, este preceito constitucional constitui uma norma programática, dirigida ao Estado e às autarquias locais- v. os seus nº.s 2 a 4 - que tem por finalidade assegurar a todos os cidadãos uma habitação condigna. Ela não se dirige, pois, como é óbvio, aos senhorios dos arrendamentos habitacionais, pelo que não será à custa destes que há-de ser garantido o direito à habitação dos cidadãos.
De resto, o nº 2 do artº 1.051º do Cód. Civil reporta-se genericamente ao arrendamento urbano, e este pode ter como fim, além da habitação, a actividade comercial ou industrial, o exercício de profissão liberal ou outra aplicação lícita do prédio - v. o artº 1.086º, nº 1 do Cód. Civil. Logo, aquele normativo não tem como objectivo garantir o direito à habitação do inquilino, mas sim a subsistência do contrato de arrendamento urbano, seja qual for a sua finalidade.
De qualquer forma, o arrendatário habitacional está devidamente defendido no que concerne à manutenção da sua posição contratual. Ponto é que ele esteja atento ao exercício do seu direito - potestativo - nos termos do nº 2 do artº 1.051º do Cód. Civil. De nada lhe valendo, aliás, a ignorância ou má interpretação da lei - artº 6º do mesmo Código.
..............................................
Temos, pois, que o nº 2 do artº 1.051º do Cód. Civil não é inconstitucional, pois não viola os artº.s 13º, 18º e 65º, ou qualquer outro, da Constituição.»
3. Do acórdão proferido na Relação de Lisboa recorreram para este Tribunal os B. e F. e mulher, os quais, na alegação que produziram, vieram defender a procedência do recurso, referindo que se devia declarar
«inconstitucional para os arrendamentos habitacionais a expressão usada no nº.2 do artº. 1051º. do Código Civil (enquanto vigorou), por notificação judicial'»
(sic), já que a exigência de tal notificação era «ofensiva dos princípios da igualdade e da não discriminação constantes dos artºs. 13º. e 18º. da Constituição», pois que se tratava de uma «formalidade arbitrária sem qualquer justificação», que, aliás, já não existe no novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, formalidade essa que não era de ter como «solução adequada, isto é, assente em critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes».
Por sua banda, a recorrida A. concluiu a sua alegação propugnando pela improcedência do recurso, uma vez que se não «vê em que possa o regime do artigo 1051 n. 2 do Código Civil, ofender os princípios constitucionais dos artigos 13 e 18 da Constituição», por isso que «se o legislador efectuou alguma discriminação naquele preceito legal, foi em favor do inquilino habitacional, fazendo com que no conflito de interesses, os deste se possam sobrepor aos do proprietário, afastando os efeitos da caducidade ope legis, bastando para tanto ao inquilino emitir uma declaração de vontade que consubstancia a prática de um acto constitutivo do seu direito, impondo apenas o legislador que essa declaração de vontade revista uma forma ad substanciam, consignada na notificação judicial avulsa».
II
1. De harmonia com o regime jurídico constante do artº
1051º, alínea c), do Código Civil, o contrato de locação caduca quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais ele foi celebrado [ao tempo dos factos dos autos - que é o que agora releva - tratava-se da disposição legal ínsita na alínea c) do nº 1 do artº 1051º].
O usufruto, conforme resulta da noção constante do artº
1439º do mesmo corpo de leis, é um direito de gozo temporário e pleno de uma coisa ou de um direito, sem alteração da sua forma ou substância, inserindo-se no seu âmbito, se outra coisa não resultar do respectivo título constitutivo, os poderes de uso, fruição e administração da coisa, com respeito do seu destino económico e do modo como o faria um bom pai de família (artº 1446º), direito esse que, quando constituído em favor de uma pessoa singular, não pode ter duração superior à vida dela (artº 1443º), sendo, pois, uma das formas da sua extinção a morte do usufrutuário, caso tal constituição seja vitalícia [artº
1476º, nº 1, alínea a)].
Perante estas linhas de força do ordenamento jurídico, resulta claro que, recaindo o direito de gozo denominado usufruto sobre o direito de propriedade de um imóvel urbano, poderá o titular daquele primeiro direito, enquanto ele se mantiver e na hipótese de coisa diferente não se extrair do seu título constitutivo (cfr., sobre o conteúdo variável do usufruto, Mota Pinto na Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXI, 172 e segs), dar esse imóvel de arrendamento, pois que um tal acto se insere, de pleno, nos poderes de fruição e administração do direito usufruído.
Daí que, findo o prazo pelo qual foi constituído o usufruto (in casu a morte da usufrutuária, assente que o usufruto do prédio em causa foi constituído vitaliciamente em relação a ela), este se tenha por extinto, sequentemente caducando as relações jurídicas que eventualmente foram estabelecidas sobre a coisa ou direito usufruídos no uso dos poderes de fruição e administração detidos pelo usufrutuário, sendo a coisa restituída ao proprietário (artº 1483º)(cfr., sobre a figura da caducidade, Galvão Telles, Contratos Civis, 46) .
Por isso se compreende a norma ínsita na alínea a) do nº
1 do artº 1051º do Código Civil, na redacção então vigente.
Note-se, por outro lado, que, em parte alguma (mesmo no que concerne às disposições sobre o contrato de locação), o ordenamento jurídico então em vigor impunha ao titular da coisa ou do direito que tinham sido usufruídos por outrem (ou ao usufrutuário, na hipótese de o usufruto não ser vitalício) a obrigação de comunicar a extinção do usufruto a quem, por força dos poderes de uso, fruição e administração decorrentes desse usufruto e titulados pelo usufrutuário, com este estabeleceu qualquer relação jurídica relativa aos citados coisa ou direito.
2. A disposição legal que agora se encontra questionada, ou seja, a constante do nº 2 do artº 1051º do Código Civil, na redacção resultante da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, tem o seguinte teor:
«2 - No arrendamento urbano, o contrato não caduca pela verificação dos factos previstos na alínea c) do número anterior se o inquilino, no prazo de 180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual».
Esta norma visa, pois, estabelecer, relativamente aos arrendamentos urbanos, uma excepção à regra segundo a qual os contratos de locação caducam com a cessação do direito ou dos poderes legais de administração com apoio nos quais o contrato foi celebrado, por isso que vai impedir que aquela cessação desencadeie os seus efeitos, assim se mantendo o contrato, com as naturais desvantagens para o proprietário de raiz (e agora pleno, por força da extinção do usufruto) que vê a coisa - prédio urbano - de que é titular
'onerada' por um contrato de arrendamento em que nem sequer foi parte celebrante, consequentemente não tendo, para essa celebração, manifestado qualquer vontade.
Porém, dizia a lei vigente, para que essa excepção pudesse operar, era imposto ao inquilino habitacional um ónus, qual fosse o de, por intermédio de notificação judicial, dar ao senhorio (o proprietário de raiz, no caso de o arrendamento ser celebrado pelo usufrutuário e de cessar o direito de usufruto) conhecimento de que pretendia manter a posição de locatário decorrente do contrato que celebrara (no mesmo caso) com o usufrutuário (cfr., sobre a notificação judicial e a forma de, in casu, a exercer, J.G. Sá Carneiro in Breves Reflexões sobre a nova legislação locativa, na Revista dos Tribunais,
93º ano, 439, nota 15; cfr., ainda, em posição divergente à de Sá Carneiro, o Ac. da Relação de Lisboa de 3-ABR-79, na Colectânea de Jurisprudência, 2º ano,
612); [hoje a excepção a que nos reportamos já não tem a mesma consagração legal após a entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, visto que, muito embora o contrato de arrendamento caduque por força da alínea c) do artº 1051º do Código Civil, ao arrendatário é conferido o «direito a um novo arrendamento» - cfr. artº 66º, nº
2 -, o qual, para operar, implica que o inquilino comunique, por declaração escrita, a enviar ao senhorio no prazo de «30 dias subsequentes à caducidade do contrato anterior» - cfr. artº 94º, nº 1, - , sendo que, todavia, tal direito se vai regular pelo regime dos «contratos de duração limitada» previsto nos artigos
98º a 100º do mesmo diploma].
3. Na óptica dos recorrentes, como se extrai da alegação por si apresentada, a exigência do ónus imposto ao inquilino pela norma sub specie, ónus esse consistente em a comunicação ao senhorio da sua vontade em manter o contrato de arrendamento anteriormente celebrado por outrem na qualidade de locador (na hipótese o usufrutuário) ter de ser feita por intermédio de notificação judicial, representa algo que é ofensivo dos princípios da igualdade e da não discriminação, já que se trata de uma formalidade arbitrária sem qualquer justificação, citando, para tanto, os artigos 13º e 18º do Diploma Fundamental.
4. O Estado de direito democrático consagrado na nossa Constituição é, de entre o mais, estruturado pelo princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, postulante do não privilégio, benefício, prejuízo, privação de qualquer direito ou isenção de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social.
Inculca um tal princípio que seja conferido um tratamento igual a situações de facto iguais e, reversamente, que sejam objecto de tratamento diferenciado situações de facto desiguais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª Edição, I Vol.,
151 e segs., e Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1982, 380 e sgs).
Mas, se o princípio de que curamos assim deve ser entendido, não decorre do mesmo que, face à sua dimensão material vinculante em primeira linha do legislador ordinário, este esteja, de todo em todo, impedido de, atenta a sua liberdade de conformação, estabelecer regulação de situações cujas circunstâncias e factores que as rodeiem justifiquem diferenciações de tratamento.
Mister é que não seja violado o limite objectivo da discricionariedade legislativa imposto pelo princípio da igualdade e, deste modo, que as diferenciações de tratamento se não postem como discriminatórias, infundadas, irrazoáveis, ou seja, para usar um só conceito, arbitrárias (cfr., sobre o ponto, a inúmera jurisprudência deste Tribunal, citando-se, a título exemplificativo, os Acórdãos números 76/85, 39/88 e ,mais recentemente, 187/90, no Diário da República, respectivamente, 2ª Série, de 8-JUN-85, 1ª Série, de
3-MAR-88 e 2ª Série, de 12-SET- -90).
No último dos citados acórdãos é, aliás, precisado que a teoria da proibição do arbítrio «não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes» expressando e limitando «a competência de controlo judicial», pois que se trata de «um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa», aditando-se que
«a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade».
5. Do exposto acima no tocante às invocações feitas pelos recorrentes fácil é verificar que os mesmos, na censura que agora fazem do acórdão lavrado na Relação de Lisboa, não assumem uma postura totalmente idêntica àquela que assumiram aquando do recurso para aquele Tribunal.
Na verdade, na impugnação da sentença produzida em primeira instância, os recorrentes apunham o acento tónico da desconformidade constitucional da norma em questão na circunstância de haver um tratamento desigual para locadores e locatários, nos casos de caducidade do contrato de locação por cessão do direito ou dos poderes legais com base nos quais esse contrato foi celebrado, já que para os primeiros não era imposta nenhuma formalidade tendo em vista a comunicação aos locatários dos «factos constitutivos da caducidade», enquanto que para os últimos era imposta a adopção da formalidade da notificação judicial.
Na impugnação do aresto da 2ª Instância, os recorrentes já não se posicionam exactamente da mesma sorte. De facto, desta feita, continuando a citar os artigos 13º e 18º da Constituição, terçam armas pelo argumento de que a exigência da notificação judicial é algo de arbitrário e injustificado.
Não parece, deste modo, que a linha de impugnação agora seguida pelos recorrentes seja efectivamente a de , no confronto das posições então estabelecidas por lei para o senhorio e para o inquilino habitacional, no que concerne às comunicações que um e outro teriam de fazer nos casos da alínea c) do nº 1 do artº 1051º do Código Civil, houvesse um tratamento diferenciado passível de censura perante o princípio constitucional da igualdade.
5.1. Perante este panorama, deverá desde já dizer-se que a questão, posta como parece ter sido pelos recorrentes na altura do recurso interposto para a Relação de Lisboa, não deveria merecer atendimento.
E isto desde logo pela simples razão segundo a qual, como já se viu, para os casos de caducidade dos contratos de locação previstos na alínea c) do nº 1 do artº 1051º do Código Civil, não existe qualquer imposição, dirigida ao senhorio, em comunicar ao locatário a extinção ou cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais foram celebrados tais contratos.
Não existindo essa imposição, não se põe o problema de saber se a formalidade que é exigível ao inquilino para a comunicação ao senhorio da sua vontade em manter o contrato de locação, confrontadamente com aquela que seria exigida ao senhorio para transmitir ao primeiro que o contrato anteriormente celebrado caducara, representa para o locatário um tratamento arbitrário, discriminatório e desproporcionado e, logo, desigual.
6. Postas assim as coisas, o que interessa analisar é se a norma em causa, ao fazer a exigência que dela consta, não fazendo qualquer outra ao senhorio, está a dar um tratamento arbitrário ao inquilino, impondo-lhe uma actuação que seja perspectivável como injustificada e desproporcionada, visto até o direito social previsto no artigo 65º, nº 1, da Lei Básica.
6.1. Este preceito vem, no seu nº 1, reconhecer a todos os cidadãos o direito a terem, «para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
Aqui, pois, nas palavras do Acórdão deste Tribunal nº
130/92 (Diário da República, 2ª Série, de 24-JUL-92), se consagra «o direito a uma morada decente...; uma morada que seja adequada ao número de membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade».
Tem sido reconhecido que este direito - e independentemente agora de se entrar na questão de saber se se trata de um verdadeiro direito subjectivo ou de uma mera pretensão jurídica (cfr., sobre esta questão, Gome Canotilho, Direito Constitucional, 5ª edição, 680 a 682, e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
1897, 205) - tem fundamentalmente como destinatário passivo o Estado, entidade à qual se dirigem as incumbências e imposições constantes dos números 2, 3 e 4 do artº 65º, e não, em princípio e primeira linha, os titulares dos direitos de propriedade ou de gozo das habitações.
Por isso, dir-se-á afoitamente, é explicável que, uma vez cessado o direito com base no qual o usufrutuário, no exercício dos poderes de uso, fruição e administração do prédio urbano usufruído, transmitiu temporariamente o respectivo gozo para outrem por intermédio de um contrato de locação, cesse também para o inquilino o gozo de que desfrutava, pois que, com aquela cessação, 'convalidaram-se' no proprietário de raiz todos os poderes inerentes ao direito de propriedade de que é titular, sendo certo que ele não interveio na transferência temporária do gozo antecedentemente feita e que constituía uma 'oneração' obrigacional sobre esse prédio, a tal transferência sendo, pois, estranho.
Há, aqui, uma razão válida, justamente fundada no direito de propriedade do prédio urbano, que justifica a caducidade do contrato de arrendamento, em consequência não se podendo dizer que a norma que prevê essa caducidade seja feridente da Constituição.
6.2. Mas, se isto é assim, também é certo que o direito consagrado no artigo 65º da Lei Fundamental, bem como aqueles que defluem dos artigos 67º e 69º (cfr., neste particular, o que a propósito é referido no Acórdão nº 130/92, já aludido), constituem credencial bastante para a consagração de uma excepção à caducidade dos arrendamentos de que nos ocupamos, tal como aquela que se continha no nº 2 do artº 1051º do Código Civil.
Todavia, se aquelas disposições constitucionais podem ser entendidas como conferindo credencial para a consagração da excepção em causa, isso não implica, desde logo, que imponham essa consagração.
Ficará, consequentemente, dependente da vontade do legislador, no uso da liberdade de conformação que lhe deve ser reconhecida, o estabelecimento de excepções ao princípio da caducidade dos contratos de locação por cessação do direito ou pela finalização dos poderes legais de administração por via dos quais aqueles contratos foram celebrados, já que para esse estabelecimento encontra ele na Constituição credencial válida e bastante.
7. Neste contexto, ainda se analisará, por último, um ponto.
Consiste ele em se saber se, uma vez consagrando o legislador ordinário a favor do inquilino habitacional a excepção a que alude o nº 2 (então vigente) do artº 1051º do Código Civil, não seria demasiadamente gravosa e desproporcionada a exigência que lhe era feita por essa mesma norma para que ele, daquela excepção, viesse a usufruir, podendo eventualmente, se resposta afirmativa em tal sentido fosse dada, tornar praticamente inviável gozar do benefício que lhe era concedido pela dita excepção.
7.1. Cumpre anotar que a exigência da notificação judicial (que, nas palavras do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10-JAN-85, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 9º ano, 142, não deve ser vista como uma proposta de contrato, mas sim como um puro negócio unilateral) constitui, bem vistas as coisas, uma forma de defesa do próprio inquilino.
Na realidade, através da especial força demonstrativa que tem a notificação judicial, muito dificilmente, efectuada ela, poderia o senhorio alegar que o inquilino lhe não deu conhecimento, após ter tido conhecimento dos factos que constituem a previsão constante da alª c) do (então) nº 1 do artº 1051º do Código Civil, da sua vontade em manter a sua posição na relação jurídica decorrente do contrato de arrendamento que, entretanto, por força daqueles factos, caducara.
7.2. Torna-se evidente que a imposição da notificação judicial demanda do locatário o desenvolvimento de uma actividade menos simples do que aquela que seria desenvolvida se a comunicação ao senhorio se efectuasse, v.g., por intermédio de comunicação verbal ou através de mero escrito particular.
Simplesmente, a actividade de maior complexidade inerente ao formalismo da notificação judicial não se pode considerar como algo de extraordinariamente gravoso e dificilmente alcançável pelos cidadãos médios e, como se viu, constitui aquela forma de comunicação um meio seguro de assegurar a transmissão ao senhorio do conteúdo da vontade do locatário em manter a posição que detinha no contrato de arrendamento que, por via da situação prevista na alínea d) do artº 1051º do Código Civil, caducaria ope legis, não sendo, por isso, a formalidade em causa arbitrária, injustificada e desproporcionada relativamente aos fins prosseguidos no preceito global em que se inseria.
De onde a consideração segundo a qual a formalidade da notificação judicial constante da norma do nº 2 do artº 1051º do Código Civil
(na redacção da Lei nº 46/85) não ofende os preceitos ou princípios que defluem da Constituição.
III
Perante o exposto, nega-se provimento ao recurso, em consequência se confirmando o acórdão recorrido quanto à suscitada questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de Junho de 1993
Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa