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Processo nº. 584/92
2ª Secção Rel. Cons. Mário de Brito
1. O tribunal colectivo do círculo de Portimão, por acórdão de 2 de Março de 1992, condenou A., natural da República de Cabo Verde, pelo crime previsto e punível pelo artigo 24º., nº. 1, referido ao artigo 23º., nº. 1, e à tabela I-A, do Decreto-Lei nº. 430/83, de 13 de Dezembro, nas penas de dois anos de prisão e 100 000$00 de multa; e, nos termos do artigo 34º., nº.
1, do mesmo diploma, ordenou a sua expulsão do País, por cinco anos.
Em recurso interposto pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, este, por acórdão de 15 de Julho de 1992, confirmou a decisão recorrida.
É desse acórdão que vem o presente recurso, interposto pelo representante do Ministério Público junto da Secção Criminal do Supremo, ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 280º., nº. 1, alínea b), da Constituição e 70º., nº. 1, alínea b), 72º., nºs. 1, alínea a), e 2, e
75º.-A da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro, 'na parte em que nele se decidiu ser de aplicação automática a cominação da pena acessória de expulsão do País, prevista no artigo 34º., nº. 2, do Decreto-Lei nº. 430/83, de 13 de Dezembro, preceito que aplicado dessa forma viola o artigo 30º., nº. 4, da Constituição da República, tornando-o materialmente inconstitucional'.
Neste Tribunal, o magistrado do Ministério Público concluiu, porém, a sua alegação no sentido de que:
1º. O artigo 30º., nº. 4, da Constituição só proíbe que se ligue automaticamente a perda de direitos civis, profissionais e políticos à condenação em certa pena e já não à condenação por certo crime.
2º. Assim, não viola aquele preceito constitucional a norma do nº. 2 do artigo
34º. do Decreto-Lei nº. 430/83, de 13 de Dezembro, na parte em que dispõe que, se a condenação pelo crime previsto no artigo 24º., nº. 1, do mesmo diploma for imposta a um estrangeiro, será ordenada na sentença a sua expulsão do País por período não inferior a 5 anos.
Cumpre decidir.
2. O recurso de que se trata é o previsto nos artigos 280º., nº. 1, alínea b), da Constituição e 70º., nº. 1, alínea b), da Lei nº. 28/82, isto é, o recurso das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', o qual só pode ser interposto 'pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade' (citados artigos 280º., nº. 4, e 72º., nº. 2).
Ora, o Ministério Público é 'parte' no processo penal
(Código de Processo Penal, artigos 48º. e 53º.) e suscitou na alegação que produziu no Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do nº. 2 do artigo 434º. do mesmo Código - ou seja, 'durante o processo' - a questão da inconstitucionalidade do nº. 2 do artigo 34º. do Decreto-Lei Nº. 430/83, ao dizer que no acórdão do tribunal colectivo se ordenou 'automaticamente' a expulsão do País do arguido A., 'o que viola frontalmente o referido artigo
30º., nº. 4, da Constituição'.
E, se é certo que o acórdão recorrido não apreciou a questão de inconstitucionalidade dessa norma, a verdade também é que a aplicou. E aplicou-a precisamente como consequência necessária da prática do crime cometido pelo arguido: 'neste caso' - concluiu-se no acórdão - 'impõe-se, como foi feito na decisão recorrida, que se aplique essa expulsão, já que o arguido
é estrangeiro'.
Vejamos então a questão de inconstitucionalidade.
3. Como se diz no respectivo sumário, constante do Diário da República, o Decreto-Lei nº.430/83, de 13 de Dezembro, 'altera o regime em vigor, tipifica novos ilícitos penais e contravencionais e define novas penas ou modifica as actuais em matéria de consumo e tráfico ilícito de drogas'. O artigo 23º. prevê e pune o 'tráfico e actividades ilícitas' e o artigo 24º. o 'tráfico de quantidades diminutas'.
O artigo 34º. desse diploma enuncia as 'penas acessórias' aplicáveis em caso de condenação por qualquer dos crimes previstos nos artigos 23º., 24º., 25º, 26º.,28º., 29º. e 30º. No nº. 1 diz-se que o tribunal 'pode ordenar' a interdição temporária de saída para o estrangeiro
[alínea a), 1ª. Parte], a inibição temporária da faculdade de conduzir veículos automóveis e de pilotar aeronaves ou embarcações [alínea a), 2ª parte] ou a interdição do exercício de profissão ou actividade [alínea b)]. O nº. 2 dispõe textualmente:
Se a condenação pelos crimes previstos no nº. 1 do presente artigo for imposta a um estrangeiro, será ordenada na sentença a sua expulsão do País, por período não inferior a 5 anos.
Esta norma foi interpretada na decisão recorrida, em conformidade aliás com outras decisões do mesmo Tribunal nela citadas, no sentido de que a mesma impõe, como 'efeito necessário' da condenação pelos crimes nela referidos imposta a um estrangeiro, a sua expulsão do País.
E é com este sentido que o recorrente a considera inconstitucional, por violação do nº. 4 do artigo 30º. da Constituição.
Lê-se no preceito constitucional:
Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Ora, o direito à fixação em qualquer parte do território nacional é um direito civil (cfr. os artigos 82º. e segs. do Código Civil), aliás consagrado constitucionalmente (artigo 44º., nº. 1, da Constituição), mesmo para os estrangeiros autorizados a residir em Portugal e nos termos de tal autorização (artigo 15º.), como é o caso dos autos.
Logo, toda a norma que imponha como 'efeito necessário' de uma pena imposta a um estrangeiro a expulsão do País - como é o caso do nº. 2 do artigo 34º. do Decreto-Lei nº. 430/83 - é inconstitucional, por violação do preceito transcrito.
É nesta orientação a jurisprudência do Tribunal, como se pode ver, a propósito da interdição de conduzir veículos automóveis como efeito necessário da prática de determinadas crimes ou da condenação em determinadas penas, imposta pelo artigo 46º., nº. 2, alíneas a), b), c), d) e e), do Código da Estrada, do Acórdão nº. 224/90, de 26 de Junho (no Diário da República, I Série, de 8 de Agosto de 1990), bem como dos aí citados e de outros proferidos posteriormente: assim, os Acórdãos nºs. 249/92, de 1 de Julho (no Diário, II série, de 27 de Outubro de 1992), 298/92, 304/92 e 305/92, todos de
29 de Setembro (proferidos, respectivamente, nos processos nºs. 238/91, 125/91 e 446/91).
Nem se diga, com o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, que 'o nº. 4 do artigo 30º. da Constituição veda a aplicação automática de perda de direitos na sequência de condenação em certa espécie de pena (por exemplo 'pena maior'), mas já não torna ilegítima a ligação desses efeitos à condenação por determinados crimes'.
Como escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, 1993, nota V ao artigo 30º., 'embora o nº. 4 se refira apenas à proibição de efeitos necessários das penas, a proibição estende-se também por identidade de razão aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes, pois não se vê razão para distinguir'.
E é esse também o entendimento do Tribunal. Como se acentuou no Acórdão nº. 284/89, de 9 de Março (no Diário da República, II série, de 12 de Junho de 1989) e se repetiu no citado Acórdão nº. 224/90, 'com tal preceito constitucional [o nº. 4 do artigo 30º.] pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos [...]'.
4º. Pelo exposto:
a) julga-se inconstitucional a norma do nº. 2 do artigo 34º. do Decreto-Lei nº. 430/83, de 13 de Dezembro, interpretada no sentido de que a condenação de um estrangeiro pelo crime previsto no artigo
24º., nº. 1, tem como efeito necessário a sua expulsão do País;
b) em consequência, concede-se provimento ao recurso e ordena-se que os autos sejam remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça para reforma do acórdão recorrido em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.
Lisboa, 25 de Maio de 1993
Mário de Brito Bravo Serra José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento Luís Nunes de Almeida