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Processo nº 378/91
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Fundo de Fomento de Habitação - FFH - requereu, no tribunal judicial da comarca de Loures, a expropriação litigiosa por utilidade pública urgente do prédio rústico sito na -----------------, freguesia de
--------------, concelho de -------------, descrito sob o nº -----------, a fls.
---- do Livro ---- da Conservatória do Registo Predial de ---- e inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ---------------------, sob o artigo ----º da Secção ---, pertencente a A., com sede em Lisboa.
No dia 26 de Julho de 1976 procedeu-se a vistoria ad perpetuam rei memoriam, lavrando-se o respectivo auto a 4 de Agosto imediato.
A 13 desse mês ocorreu o auto de posse administrativa por parte da entidade expropriante, tendo a pertinente declaração de utilidade pública urgente de expropriação, datada de 7 de Julho anterior, sido publicada no Diário da República, II Série, de 3 de Setembro seguinte.
O grupo de arbitragem, nomeado pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 8 de Setembro de 1977, atribuiu por unanimidade à expropriada o valor indemnizatório de 655.000$00, quantia que veio a ser depositada à ordem do juiz da comarca em 7 de Maio de 1980.
Por despacho de 12 de Julho deste mesmo ano, o juiz da comarca adjudicou ao expropriante FFH a propriedade da identificada parcela de terreno, nos termos do artigo 70º, nº 4 (por evidente lapso, refere-se o nº
2), do Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro ('Código das Expropriações' vigente a essa data).
Inconformada, recorreu a expropriada, em 5 de Junho de 1981, do acórdão arbitral para o tribunal comarcão, discordando, por um lado, do valor da indemnização, que não considerou ser o justo, e, por outro lado, deduzindo nulidades e irregularidades do processado, o que originaria a tramitação deste incidente em separado.
O recurso da arbitragem foi recebido de acordo com o disposto nos artigos 73º, nº 1, e 74º do Decreto-Lei nº 845/76 e o relativo aos vícios imputados veio a ser admitido como de agravo, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (cfr. os artigos 60º e 71º do mesmo diploma legal), sendo o primeiro por despacho de 29 de Junho e o segundo por despacho de 21 de Julho, ambos de 1981.
Os autos principais seguiram a tramitação legal, não obstante os incidentes surgidos, ora irrelevantes, encontrando-se ainda na fase de avaliação quando transitou o acórdão da Relação de Lisboa, de 8 de Junho de 1982, que concedeu parcial provimento ao recurso correndo por apenso e
'anulou o processado a partir da nomeação dos árbitros, para efeitos de se proceder a nova arbitragem com observância das formalidades na lei'.
Decorreu a fase de arbitragem a partir de então, perante o tribunal, atento o disposto no artigo 49º, nº 2, do Código de 1976
(cfr. despacho de 27 de Julho de 1982), após o que, novamente por unanimidade, os árbitros fixaram a indemnização a atribuir em 2.554.000$00 (acórdão de 13 de Dezembro de 1982).
Concluídas as diligências de prova, alegaram expropriante e expropriada, após o que, nos termos do artigo 83º daquele texto de lei, o Senhor Juiz fixou a indemnização a pagar pelo primeiro no montante de
2.591.114$00, por decisão de 31 de Dezembro de 1986.
Ainda inconformada, recorreu a expropriada, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, nos termos do nº 4 daquele artigo 83º.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 2 de Maio de
1991, anulou o processado posterior à nomeação dos peritos (fls. 265) e ordenou que o juiz a quo proferisse novo despacho determinando nova avaliação, nos termos do artigo 77º e seguintes do Código das Expropriações (refere-se ao aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76), da parcela expropriada, 'na qual seja tido em conta o preceituado nos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'.
2.- É desta decisão que recorre para o Tribunal Constitucional o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado - IGAPHE - para quem foi transmitida a capacidade de prosseguir as expropriações de que era beneficiário o FFH (cfr. o artigo 34º do Decreto-Lei nº 88/87, de 26 de Fevereiro), o que fez ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por entender que a Relação recusou aplicar, por inconstitucionais, as normas dos artigos 6º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro.
Admitido o recurso, ambas as partes alegaram mas a recorrida A., fê-lo a destempo, razão por que se ordenou o desentranhamento dos autos das respectivas alegações.
Quanto ao IGAPHE, formulou as seguintes conclusões, que se passam a transcrever:
a) a Lei Fundamental remete para a discricionariedade legislativa o modo e a medida da concretização do imperativo constitucional da justa indemnização;
b) na verdade, a Constituição não se pronuncia sobre o critério concreto para se alcançar o desiderato da justa indemnização, deixando-o para o legislador ordinário;
c) o legislador expropriativo de 70, na sequência da classificação dicotómica 'terrenos para construção - terrenos para outros fins' (artigo 6º do Decreto-Lei nº 576/70), criou o mecanismo justo da avaliação do prejuízo sofrido pelo expropriado;
d) a consideração dos elementos que os nºs.
1 a 5 do artigo 7º (cfr. redacção do Decreto-Lei nº 56/75, de 13 de Fevereiro) e
1 a 4 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro, mandam atender, assegura a justa indemnização;
e) o princípio da igualdade (cfr. artigo
13º da CR) postula que situações desiguais têm de ser tratadas desigualmente;
f) obviamente, terrenos com diferentes aptidões, como a realidade impõe e a lei expropriativa em causa reconhece, têm de ser valorados de acordo com critérios diferentes;
g) o 'jus aedificandi' não faz parte do conceito de direito de propriedade privada, constante do nº 1 do artigo 62º da CR;
h) o princípio da justa indemnização tem também de ser enfocado da perspectiva da realização do fim público, a que é colimada a expropriação;
i) a ponderação do interesse público com o interesse privado do expropriado levou o legislador de 70, com a clarificação dos terrenos para efeitos expropriativos nas duas aludidas categorias e respectivos critérios de avaliação, a cortar cerce todo e qualquer elemento especulativo;
j) a própria expropriada (cf. fls. 425 e segs.) admite que os critérios de valorização fixados pela lei ordinária aplicável ao caso 'sub judice' são adequados a surpreender a justa indemnização;
l) as normas dos artigos 6º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 576/70 não colidem com os princípios constitucionais da justa indemnização e da igualdade vertidos, respectivamente, nos artigos 62º, nº 2, e
13º, nº 1, da Constituição;
m) decidindo de forma diversa, o douto acórdão recorrido violou, entre outros, os artigos 6º, 7º e 9º, todos do Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro, e 62º, nº 2, e 13º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
3.- Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- A questão prévia da recorribilidade da decisão.
1.1.- Pode questionar-se se, no concreto caso, se congregam os pressupostos exigíveis para este tipo de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
A sua correcta equacionação passa por uma necessária, se bem que breve, abordagem da decisão recorrida, na perspectiva jurídico-constitucional.
1.1.1.- À Relação deparou-se, por banda da expropriada então recorrente, um fio argumentativo nas respectivas alegações que tinha por premissa a necessidade de se assegurar a 'justa indemnização', tida como 'princípio fundamental, universal e imprescindível em qualquer Estado de Direito', e que, no caso vertente e em seu entender, fora violado, seja porque não se atendeu à natureza da parcela expropriada, com características de terreno para construção, seja porque não se considerou a parte sobrante como apta para ser utilizada para estaleiros e armazenamento a céu aberto. Na tese da entidade expropriada, não foi encontrado o valor real, efectivo e possível do terreno, tendo presente o seu normal aproveitamento económico e financeiro.
No acórdão recorrido, a Relação fixou, numa primeira fase, o quadro legal observável à data da declaração da utilidade pública urgente da expropriação, em termos substantivos, o que, de resto, não é agora sindicável, quadro esse constituído pelas normas do Decreto-Lei nº
576/70, de 24 de Novembro, já citado, do Decreto-Lei nº 56/75, de 13 de Fevereiro, que alterou parcialmente aquele, e do Decreto-Lei nº 71/76, de 27 de Janeiro, ao rever profundamente a legislação sobre expropriações por utilidade pública.
Sem embargo, considerou de aplicar ao caso sub judicio a normação adjectiva do Código de 1976.
Assim ponderando, num segundo momento e tendo em consideração distinguir o Decreto-Lei nº 576/70 terrenos para construção e terrenos para outros fins, para efeitos expropriativos (artigo 6º), a Relação foi sensível a repensar 'apesar do demasiadamente longo caminho que levam os autos', a 'justa indemnização' à luz dos citados artigos 62º, nº 2, e 13º, nº
1, da Constituição da República (CR), e do tratamento conceitual que a jurisprudência do Tribunal Constitucional lhe vem concedendo, citando a esse propósito, nomeadamente, os Acórdãos nºs. 341/86, 442/87, 3/88, 109/88 e 131/88, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1987, 17 de Fevereiro de 1988, 14 de Março de 1988, 1 de Setembro de 1988 e na I Série, de
29 de Junho de 1988, respectivamente.
1.1.2.- Foi neste enfoque que se recusou a aplicação das normas dos artigos 6º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 576/70, aliás revogados pelo artigo 64º do Decreto-Lei nº 794/76, de 5 de Novembro (Lei dos Solos), afirmando-se, a esta luz, impor a realização de uma nova avaliação mas, agora, de acordo com os critérios dos artigos 77º e seguintes do 'Código das Expropriações' de 1976.
Debruçando-se sobre cada uma daquelas normas, o acórdão considera-os como violadores dos citados comandos constitucionais e dos princípios neles compreendidos.
Depara-se-lhe, com efeito, da leitura do relatório pericial, uma avaliação 'espartilhada' pelo enquadramento legal que o Decreto-Lei nº 576/70 impunha.
É o caso, observa-se no aresto, da aplicação ao caso dos autos do artigo 7º (na redacção dada pelo artigo 14º do Decreto-Lei nº
56/75), por força do qual os peritos excluiram estar-se em presença de situação
'em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa', quando, na verdade, o terreno foi, de imediato, utilizado pelo expropriante na construção de 'habitação social'.
O mesmo se diga do critério restritivo do artigo
9º, que levou a perícia a concluir que teria de atender 'exclusivamente' ao
'destino do terreno como prédio rústico' e 'ao seu estado no momento da expropriação', sem que tal preceito os autorizasse - nas palavras do acórdão
- a pensar em termos de justa indemnização, da efectiva proximidade da concretização do 'jus aedificandi' e do respeito pelos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
E ainda o mesmo se refira do artigo 6º quando, para efeitos expropriativos, classifica os terrenos 'em terrenos para construção e terrenos para outros fins'.
Desde logo - pondera-se - 'porque a realidade da vida não consente essa dicotomia: os 'terrenos para outros fins' têm, cada vez mais, a potencialidade imediata de transformação em terreno para construção, tendo essa potencialidade, necessariamente, de ser considerada 'como um dos factores de fixação valorativa' a ter em conta para se obter a justa indemnização a que a Constituição obriga. Ora, do exposto resulta que, sendo inconstitucional o artigo 30º, nº 1, do Código das Expropriações [de 1976], também o são as disposições legais que acabam de ser mencionadas. Com efeito, os seus critérios restritivos acabam por traduzir-se em obstáculos, porventura intransponíveis, para que se alcance o objectivo constitucional da justa indemnização, da igualdade e da proporcionalidade, de tratamento igual para todos os cidadãos'.
O acórdão recorrido negou, pois, e claramente, a aplicação das três apontadas normas do diploma de 1970 ao caso vertente e, consequentemente, anulou o processado ulterior à nomeação dos peritos.
1.2.- Não restarão, assim, dúvidas quanto à atitude do tribunal a quo no respeitante à recusa de aplicação das normas em causa por inconstitucionalidade: o seu afastamento decidiu-se de modo inequívoco como, aliás, as passagens transcritas sobejamente revelam.
Por sua vez, verifica-se o pressuposto ínsito na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pois que sindicam-se normas e não uma decisão judicial - não obstante um certo grau de equivocidade por banda do recorrente mais patente nas alegações do que no requerimento de interposição de recurso - e essa decisão não só se insere na fase jurisdicional em que se transformou o procedimento administrativo, por força das vicissitudes sofridas, como a sua inserção de cariz interlocutório não lhe retira definitividade (cfr. o artigo 46º, nº 1, do 'Código das Expropriações' de
1976, aplicável no caso vertente, e a doutrina emanada do assento de 24 de Julho de 1979, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 289, págs. 135 e segs.).
Não houve, é certo, recurso do Ministério Público, que foi devidamente notificado, com desrespeito do determinado pelos artigos
280º, nº 3, da CR, e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, mas a atitude da entidade expropriante abriu recurso para o Tribunal Constitucional.
E sendo este recurso de natureza instrumental, mensurável em função da utilidade para a questão de fundo, a via utilizada nem se assume como expediente dilatório nem se reduz, numa primeira leitura, a mero interesse académico, dado que a sua eventual procedência orientará a fixação da indemnização para diferente moldura legal, em nome de uma parametrização constitucional expressamente convocada.
2.- A delimitação do objecto do recurso
2.1.- Decorre do exposto tratar-se de recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por iniciativa da entidade expropriante que, desse modo, reagiu ao acórdão da Relação de Lisboa, o qual recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas dos artigos 6º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro.
Está só em causa, porém, uma das possíveis projecções desse complexo normativo, na medida em que se estabelecem limites à fixação da indemnização expropriativa, por violação das disposições conjugados dos artigos 13º e 62º, nº 2, da CR.
A esta luz, na verdade, é que se compreende a decisão recorrida - e o interesse actual do controlo de constitucionalidade.
2.2.- Preceituam as normas em análise:
'Artigo 6º - Para efeito de expropriação, os terrenos classificam-se em terrenos para construção e terrenos para outros fins'
'Artigo 7º - 1. Considera-se terrenos para construção aquele que, podendo ser utilizado para esse fim no estado actual e em face dos regulamentos em vigor, pertença a aglomerado urbano e seja marginado por via pública urbana pavimentada servida por rede de abastecimento domiciliário de água e de drenagem de esgoto e que disponha ainda das restantes infra-estruturas urbanísticas correspondentes às que sirvam o aglomerado, ou, quando este apresente zonas diferenciadas, às que sirvam a zona em que as construções irão integrar-se.
2.- Na qualificação como terreno para construção, nos termos do nº 1, não serão tidos em atenção quaisquer projectos, planos ou estudos oficiais que indiquem ou possam indicar outra qualificação.
3.- A profundidade do terreno para construção, em relação ao alinhamento da vis pública, será fixada até ao limite da edificabilidade que para o local seria eventualmente permitida, não podendo todavia, a mesma exceder, em qualquer caso, 50 m.
4.- Para efeito do nº 1, considera-se como «via pública urbana pavimentada» aquela que, pertencendo a aglomerado urbano, adequado ao seu tráfego e apresenta incorporação de materiais endurecedores no seu piso, estranhos à sua própria contextura física superficial e que para o efeito tenham sido transportados para o local.
5.- A qualificação de um prédio, nos termos da lei civil ou fiscal, como urbano não o classifica necessariamente como terreno para construção' (redacção dada pelo artigo 14º do Decreto-Lei nº 56/75, de 13 de Fevereiro).
'Artigo 9º - 1. O valor dos terrenos não considerados para construção será calculado em função do rendimento possível dos mesmos, atendendo exclusivamente ao seu destino como prédios rústicos e ao seu estado no momento da expropriação, devendo tomar-se em conta, porém, a natureza do terreno e do subsolo, a configuração do imóvel e as suas condições de acesso, o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas, susceptíveis de influir no seu valor, desde que respeitem àquele destino.
2.- O valor dos terrenos não considerados para construção que, pelas suas condições, sejam insusceptíveis de rendimento como prédios rústicos não poderá exceder o valor correspondente dos terrenos de mais baixo rendimento da mesma zona ou região.
3.- O disposto nos números anteriores abrange os prédios situados nos concelhos em que vigorar o regime do cadastro geométrico da propriedade rústica.
4.- No caso de expropriação não sistemática, destinada a obras de urbanização ou abertura de grandes vias de comunicação, ao valor real do prédio serão adicionados 20 por cento de mais-valia quando das obras a realizar resulte a transformação das faixas adjacentes ou de outros prédios da mesma área em terrenos para construção, de acordo com o respectivo plano ou projecto'.
2.3.- Teve-se oportunidade de aludir à instrumentalidade deste tipo de recurso, que o justifica na medida em que contenha utilidade para decidir de fundo.
Ou seja, importa proceder a uma operação de triagem de modo a que tão só as normas com efectiva influência directa nesse conhecimento de mérito sejam objecto de reponderação pelo Tribunal Constitucional. Não raro, a pretexto de valoração jurídico-constitucional, se referem normas que a economia instrumental do recurso não deve admitir: é o caso dos obiter dicta, das especulações de sabor académico ou, tão só, de mero arrastamento, como quando está em causa parte de uma norma e se invoca a sua globalidade.
No caso sub judicio, o juízo de desaplicação por inconstitucionalidade reporta-se a um complexo normativo indiferenciado, a exigir contornos delimitados uma vez que a ratio decidendi apoia-se apenas em parte da normação implicada.
Assim é que, considerada isoladamente, no seu enunciado linguístico, a norma do artigo 6º do Decreto-Lei nº 576/70 que classifica, para efeito de expropriação (e definição dos valores a ter em conta) os terrenos em terrenos para construção e terrenos para outros fins, será, em princípio e na área em que nos movimentamos, anódina.
Se, porém, atendermos que a inovação dicotómica introduzida por este artigo 6º, inserto em diploma que adoptou medidas destinadas a resolver os problemas da disponibilidade dos solos para fins urbanísticos, encabeça, na sistemática deste, o capítulo destinado à determinação do valor dos terrenos expropriados, provoca a conceituação de terreno para construção contida no artigo 7º e gera os critérios limitativos do artigo 9º, então é mister concluir não ser a norma do artigo 6º, neste quadro complexo, uma norma 'inofensiva', compreendendo-se o seu afastamento global pelo acórdão recorrido.
As três disposições legais estão, entre si, numa relação de eficácia normativa e causal.
A delimitação do objecto do recurso passa, consequentemente, por todas elas.
III
1.- O Tribunal Constitucional tem, no tocante à conceituação da justa indemnização, mormente na sequência de expropriações por utilidade pública, adoptado uma linha decisória avessa a critérios restritivos de avaliação que não só impeçam a adequada restauração da lesão patrimonial sofrida como proporcionem desigualdade de tratamento, se a onerosidade imposta não se mostrar razoavelmente justificada.
O pagamento da justa indemnização configura-se como expressão particular de um princípio geral, contido no do Estado de direito democrático, mediante a qual se visam ressarcir os efeitos dos actos lesivos de direitos ou causadores de danos (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista Coimbra, 1993, pág. 336; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra,
1988, pág. 436; F. Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, págs. 532 e segs., entre os autores mais representativos).
Trata-se de uma jurisprudência suficientemente significativa e enraizada esta, que vem reflectindo a preocupação do Tribunal em cuidar que o expropriado se veja ressarcido dos prejuízos sofridos pelo acto de expropriar - independentemente de se comprometer com uma medida reparatória que passe pelo valor de mercado.
O que significa a posição crítica do Tribunal relativamente a critérios legais limitativos da fixação do quantum indemnizatur, com ressalva de contados casos impostos pela ponderação de factores de outra natureza ditados por interesses públicos.
Os acórdãos citados no acórdão recorrido ilustram a descrita orientação mas outros, mais recentes, podem confortá-la. É o caso, por exemplo, dos Acórdãos nºs. 52/90, publicado na I Série do Diário da República, de 30 de Março de 1990 - onde se afirma que a indemnização, para ser justa, deve corresponder a um valor adequado que respeite o princípio da equivalência de valores, de modo a não se tornar irrisória ou meramente simbólica, nem, por outro lado, especulativa ou ficcionada - e, entre tantos outros, 37/91,
390/91, 108/92, 316/92, 147/93 e 210/93, publicados na II Série do mesmo jornal oficial, de 26 de Junho de 1991, 2 de Abril de 1992, 15 de Julho de 1992, 18 de Fevereiro, 8 de Abril e 28 de Maio de 1993, respectivamente.
2.- Não se vislumbra motivo válido para alterar esta jurisprudência.
De resto, a norma do artigo 9º, embora limitada ao seu nº 1, já foi objecto de apreciação por este Tribunal.
Com efeito, escreveu-se no Acórdão nº 184/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, que o artigo 9º, nº 1, à semelhança do preceituado pelo artigo 30º, nº 1, do Código de
1976 - declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 131/88, já referido - impede que, na determinação do valor de terrenos não considerados para construção, se atenda a factores que não os rústicos, assim afastando a possibilidade de se tomarem em consideração outros factores susceptíveis de induzir um acréscimo de valor dos prédios, entre os quais se destaca o da 'potencial aptidão da edificabilidade' dos terrenos expropriados.
Sendo certo não tutelar a Lei Fundamental o direito a edificar como direito que se inclua, necessariamente em todos os casos, no direito de propriedade, nem por isso a diminuição da utilitas rei imposta pela Administração não deixará de, verificados certos pressupostos, configurar o direito a indemnização. Mais ainda, retomando um trecho do Acórdão nº 131/88, o jus aedificandi deverá ser considerado como 'um dos factores de fixação valorativa, ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa'.
Segundo o Acórdão nº 184/92, a norma do nº 1 do artigo 9º, ao não permitir, na determinação do valor dos bens expropriados, atender-se à aptidão para neles se construir, contém um critério demasiado restritivo, já que nem sempre permite que a expropriação por utilidade pública se faça 'mediante o pagamento de justa indemnização', como impõe o artigo 62º, nº 1, da CR.
O subjacente princípio de justiça desdobra-se nos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Ora, ao não se permitir que se atenda à potencialidade edificativa dos terrenos expropriados, não se cria apenas uma desproporcionada onerosidade como ainda se ocasiona uma situação de desigualdade sem fundamento material bastante: num Estado de Direito tem de haver igualdade de tratamento, designadamente perante os encargos públicos, por isso que a desigualdade que a expropriação implica, tenha de ser compensada com o pagamento de uma indemnização que assegure uma 'adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelo expropriado', só assim se restabelecendo o equilíbrio que a igualdade postula.
No caso sub judice, já o vimos, a Relação foi particularmente sensível ao concreto circunstancialismo fáctico: a potencialidade edificativa do terreno ficou, desde logo, demonstrada pelo destino que lhe foi dado no domínio da construção (mesmo tratando-se de habitação social).
A tese do Acórdão nº 184/92 tem inteiro cabimento nestes autos.
Nota-se que desde cedo - à luz, ainda, da Constituição Política de 1933 - a norma do artigo 9º foi posta em crise, por se ver nela a precipitação de critérios tendencialmente confiscatórios que a inconstitucionalizariam perante aquele texto - cfr., v.g., Mário Raposo, O Valor dos Prédios Rústicos em Expropriação por Utilidade Pública (Artº 9º do Decreto-Lei nº 576/70), separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa,
1973, e lugares aí citados.
Por sua vez, o actual Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, afastou o critério de classificação introduzido pelo artigo 6º do diploma de 1970, por nela se ver a não consagração legal da potencial aptidão de edificabilidade dos terrenos expropriados e localizados fora dos aglomerados urbanos ou em zona diferenciada de aglomerado urbano (na terminologia de 1976), desse modo violando os princípios constitucionais da justa indemnização e da igualdade dos cidadãos perante a lei (artigos 62º, nº 1, e 13º, nº 1, da CR), como reconhece explicitamente o próprio preâmbulo do diploma (cfr., também, Alves Correia, na sua introdução ao Código das Expropriações e outra legislação sobre expropriações por utilidade pública, ed. Aequitas-Editorial Notícias, 1992, pág. 20).
3.- Não tem, assim, razão o recorrente, ao defender a tese sintetizada nas conclusões das suas alegações do recurso.
O facto de a Constituição não se comprometer com o conceito de justa indemnização, o que, desse modo, obrigou a Doutrina e a Jurisprudência a defini-lo, densificando-o, não obsta a que, na concretização do princípio de Estado de direito democrático, essa justa medida, que não pode estar sujeita ou condicionada por factores especulativos, por vezes artificialmente criados, não deixa de representar e traduzir - necessariamente - uma adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelo expropriado, para seguir de perto outro acórdão na mesma linha de orientação, o nº 381/89, publicado na II Série do citado jornal oficial, de 8 de Setembro de
1989.
Não interessa, nestes autos, cuidar de saber se ao conceito se liga, indissoluvelmente ou não, o ressarcimento do valor de mercado do bem expropriado, mas o que a indemnização, para ser justa, há-de implicar é a cobertura da totalidade ou integralidade dos prejuízos suportados pelo expropriado em consequência da expropriação.
A esta luz, e movendo-se no enquadramento fáctico que os autos lhe ofereciam, a Relação considerou - contrariamente ao expropriante - que o mecanismo legal de avaliação do prejuízo sofrido, com o qual tinha de lidar, viola os preceitos constitucionais quer do artigo 62º, nº 2
- na medida em que impõe só poder a expropriação por utilidade pública ser efectuada mediante o pagamento da justa indemnização - quer do artigo 13º, nº
1, ao estabelecer o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
É certo que, no tocante ao jus aedificandi, a Lei Fundamental não o tutela expressamente como um direito que se inclua no direito de propriedade, necessariamente em todos os casos.
Como, no entanto, se observou nos já citados Acórdãos nºs. 341/86 e 131/88, e se retoma no Acórdão nº 184/92, também supra mencionado, com a imposição, pela Administração, de vínculos aos particulares que lhes diminuam a utilitas rei sobre certos bens, deverá o direito a edificar, em princípio, constituir factor de fixação valorativa, 'ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa', no modo de dizer do Acórdão nº 131/88.
É o caso - pese embora o expropriante não o entender assim.
Uma vez que o pagamento da justa indemnização é uma expressão particular do princípio do Estado de direito democrático, de outro modo não se cumprindo o programa da norma do artigo 62º, nº 2, da CR, e que os critérios de fixação valorativa impostos pelas normas sindicadas proporcionam distorções susceptíveis de tratamento jurídico desigual para destinatários - expropriados - em situação idêntica, violando a norma do artigo 13º, nº 1, da CR, na medida em que se não restabelece por essa via o equilíbrio que a igualdade postula, conclui-se pela inconstitucionalidade material daquele complexo normativo, enquanto limitador do quantum indemnizatur.
IV
Em face do exposto, e pelos invocados fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Março de 1994
Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa