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Acórdão 192/94ACÓRDÃO Nº 192/94
PROCESSO Nº 799/93
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. propôs acção com processo sumário contra a B., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 1.093.700$00 (acrescida de juros vencidos e vincendos), fundada em que, sendo proprietária das instalações fabris, sitas em ------------------ e pretendendo ampliá-las, solicitou à ré a mudança de um poste de alta tensão, mas esta só aceitou fazê-lo, sendo-lhe pago metade do custo total da mudança, que se cifrou em 2.187.400$00.
A acção foi, porém, julgada improcedente, por sentença de 23 de Setembro de 1992, essencialmente porque o poste, cuja mudança foi pedida à ré, se acha implantado em prédio que, na altura daquela implantação, era 'terreno rústico de mato inculto e semeadura sem quaisquer edificações', sucedendo que, só posteriormente, aí 'foram edificadas construções para cuja ampliação foi pedida a mudança de linha'. Ora - ponderou-se na sentença -, quando o artigo 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de 29 de Novembro de 1960, se refere a edifícios existentes, aponta no sentido de que hão-de eles existir à data da instalação da linha, que é o que não aconteceu no caso dos autos.
2. Inconformada com a sentença, interpôs a autora recurso para a Relação, mas esta, por acórdão de 21 de Setembro de 1993, confirmou a decisão recorrida, justamente por ter entendido que aquele artigo
43º 'prevê o afastamento ou substituição dos apoios das linhas para realização de obras de ampliação de edifícios pré-existentes à instalação das linhas' e, no caso, 'a pretendida ampliação' respeita a 'edifício construído depois da instalação da linha'.
3. É deste acórdão da Relação (de 21 de Setembro de
1993) que vem o presente recurso, interposto pela recorrente ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade dos artigos 37º e 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de 10 de Setembro de 1960.
Respondendo ao convite que neste Tribunal lhe fora feito, veio a recorrente dizer que a interpretação que tem por inconstitucional
(feita pelo acórdão recorrido e que pretende que este Tribunal aprecie), se traduz em que, aí, se entendeu 'que há que distinguir no que diz respeito à ampliação de edifícios, por um lado, a relativa aos pré-existentes à instalação das linhas, a que se aplicaria o artigo 43º, e, por outro lado, a relativa aos construídos depois da instalação das linhas, a que se aplicaria o artigo 44º'. E dizer, bem assim, que 'a interpretação feita no acórdão recorrido, em termos de constitucionalidade, não foi levada a efeito na 1ª instância, pelo que só agora tem a recorrente a oportunidade de suscitar essa questão'.
4. O relator, por entender que a questão da inconstitucionalidade apenas fora suscitada pela recorrente no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, sem que houvesse motivo (ou lhe faltasse oportunidade processual) para o fazer antes, fez exposição nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, nela se pronunciando pelo não conhecimento do recurso, e mandou ouvir as partes.
A B. veio manifestar a sua concordância com aquela exposição, mas a recorrente, depois de dizer que 'suscitou a questão de constitucionalidade da interpretação dada ao artigo 37º nas alegações para o tribunal da Relação de Lisboa', concluiu que 'não faltam os pressupostos da suscitação atempada da questão de constitucionalidade'; que 'não é aplicável ao presente caso a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional'; e que 'deverá prosseguir o recurso perante o Tribunal Constitucional para o mesmo conhecer a constitucionalidade suscitada'.
5. Com dispensa de vistos, há que decidir a questão prévia do conhecimento do recurso.
II. Fundamentos:
6. O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que é o que foi interposto no caso, embora a recorrente venha, agora, dizer que tal normativo não é aqui aplicável - pressupõe, entre o mais, que o recorrente suscite, durante o processo (ou seja, em regra, até à prolação da decisão recorrida), a inconstitucionalidade de determinada norma (ou normas) e que, não obstante, aquela decisão a (ou as) aplique.
Ora, como deflui dos autos, a recorrente não suscitou perante a Relação, em termos processualmente adequados, a inconstitucionalidade dos artigos 37º e 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de 10 de Setembro de 1960, que pretende que este Tribunal aprecie.
Na verdade, a recorrente, fazendo, embora, apelo aos artigos 18º e 62º da Constituição [referiu, a propósito: 'O Mº Juiz poderia, isso sim, ter subido na pirâmide normativa, até à ordem de valores constitucionalmente consagrada, na qual o direito de propriedade privada (artigo
62º da Constituição) assume primordial importância, vinculando directamente, dado o seu carácter de direito fundamental e o regime específico dos mesmos
(artigo 18º da Constituição), entidades públicas e privadas'], limitou-se a dizer que 'a interpretação efectuada pelo Tribunal da 1ª Instância quanto a existentes ou não existentes construções é que exorbita o texto legal'
(sublinhado acrescentado), para, a final, concluir que 'a decisão recorrida viola os artigos 18º e 62º da Constituição e artigos 37º e 43º do Decreto-Lei nº
43.335' (sublinhado acrescentado).
Significa isto, pois, que a recorrente suscitou a inconstitucionalidade da decisão recorrida, e não a dos citados artigos 37º e
43º.
Ora, constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal que as decisões judiciais , consideradas em si mesmas, não podem ser objecto de recurso de constitucionalidade. Este só pode visar as normas jurídicas que tais decisões tenham desaplicado, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que hajam aplicado, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que as partes lhe dirigiram.
7. No entanto, pode argumentar-se que o facto de a recorrente não ter suscitado a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado não deve, no caso, constituir obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso.
É que - dir-se-á - a Relação considerou que a recorrente lhe colocou também uma questão de constitucionalidade e, por isso, decidiu-a.
O acórdão recorrido, na verdade, depois de dizer que ao caso não era aplicável o artigo 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de 10 de Setembro de 1960, sim o artigo 44º do mesmo diploma legal - e que, portanto, 'em termos de aplicação das normas de direito ordinário vigente', a sentença da 1ª instância não merecia qualquer censura - afirmou que, uma vez que 'o estabelecimento de linhas eléctricas em terrenos pertencentes a particulares dá origem a indemnização nos termos do artigo 37º do Decreto-Lei nº 43.335 [...] não é evidente a violação dos nºs 1 e 2 [supõe-se que do artigo 62º] da Constituição'. E, mais adiante, acrescentou:
[...] não há violação de qualquer preceito constitucional, designadamente, as normas dos artigos 62º, 18º e 13º da Lei Fundamental.
Ora, a exigência de que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada, durante o processo, perante o tribunal recorrido, encontra a sua razão de ser no facto de os recursos (recurso de constitucionalidade incluído) se não destinarem ao julgamento de questões novas, mas antes à reapreciação das questões que a sentença recorrida julgou.
Por isso, o que importa (para se poder conhecer do recurso) é - dir-se-á - que o tribunal recorrido tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que, em última e definitiva instância, se traz à apreciação do Tribunal Constitucional.
Sendo assim, se o tribunal recorrido - não obstante a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada por um modo processualmente adequado - se deu conta, como no caso aconteceu, de que, ao cabo e ao resto, lhe era colocada uma questão desse tipo - e, como tal, a decidiu -, já não há razão (acrescentar-se-á) para que o Tribunal Constitucional deixe de conhecer do recurso. Num tal caso, com efeito, ele não está a decidir uma questão nova, mas a reapreciar uma questão de constitucionalidade que a decisão recorrida resolveu.
8. Seja, porém, qual for a valia desta argumentação, o Tribunal não pode conhecer do objecto do presente recurso.
Na verdade, ainda que, pelas razões apontadas, se deva ter por dispensado, no caso, o cumprimento do ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade, as normas, que a recorrente quer submeter ao juízo deste Tribunal (a saber: os artigos 37º e 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de
10 de Setembro de 1960), não foram aplicadas pelo acórdão recorrido.
Escreveu-se, nele, com efeito:
A indemnização, dada a natureza de encargo é apreciada em dois momentos. Num primeiro momento, há direito à indemnização pelos prejuízos causados pela instalação das linhas eléctricas. Não é esta a questão a discutir, pois a instalação ocorreu antes da compra pelo recorrente do terreno (sublinhado acrescentado).
Por conseguinte, para o acórdão recorrido, o caso, que a Relação teve que julgar, não convocava o artigo 37º, que dispõe que 'os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas'. E, por isso, tal norma não foi por ele aplicada.
Aliás, naquilo em que a recorrente sempre insistiu foi em que 'a situação de facto objecto do [...] recurso [para a Relação] cai na alçada do [...] corpo do artigo 43º' - que, disse, 'concede aos proprietários o direito de exigirem do concessionário, sem que lhe devam dar qualquer indemnização, o afastamento ou substituição dos apoios das linhas, quando for necessário para a realização de obras de ampliação em edifícios existentes, desde que delas não resulte alteração do fim a que os mesmos se destinam' (cf. conclusões 3 e 2 das alegações para a Relação).
A Relação, no entanto, (como, de resto, se disse já), entendeu que o caso também não cabia no artigo 43º, mas antes no artigo 44º do citado Decreto-Lei nº 43.335. Este normativo foi, por isso, o que ela aplicou.
Escreveu-se, com efeito, no acórdão recorrido:
É claro que ao tempo da instalação da linha de alta tensão, no terreno não existia qualquer edifício, designadamente as instalações fabris pertencentes à ora recorrente que, aliás, só posteriormente adquiriu o terreno. Assim acontecendo, não podem restar quaisquer dúvidas de que à situação não é aplicável, como pretende a recorrente, a norma do artigo 43º do Decreto-Lei nº
43.335, de 10.9.60, que prevê o afastamento ou substituição dos apoios das linhas para realização de obras de ampliação de edifícios pré-existentes às instalações das linhas. Se a pretendida ampliação do edifício, construído depois da instalação da linha, ou nas mais condições ali descritas, nos termos e na restante previsão aí descrita, é aplicável a norma do artigo 44º que prevê a indemnização pelo requerente à concessionária da rede eléctrica de metade dos custo das indispensáveis modificações a efectuar nas linhas.
E, mais adiante, acrescentou-se:
Os artigos 43º e 44º do diploma legal em exame prevêm e tratam, de forma diferente, duas situações. No primeiro normativo, prevê-se o direito de afastamento do dano causado pela linha de alta tensão que obstaculize a ampliação em edifícios existentes ao tempo da implantação da linha. Compreende-se tal situação pois a responsabilidade pela escolha da localização dos apoios das linhas foi totalmente da concessionária que ou não teve em conta ou não aceitou o possível e futuro afastamento das linhas quando necessário. Na hipótese em que a construção é posterior à instalação das linhas, aqui o risco, a escolha da localização da construção, também há-de recair sobre o proprietário, na medida em que melhor haveria de prever a localização da construção, tendo em conta a sua possível expansão ou ampliação.
As referências que, no acórdão recorrido, se fazem aos artigos 37º e 43º (recte, à questão da sua conformidade com a Constituição) não passam, pois, de simples obiter dicta: tais normas não eram, com efeito, convocadas pelo julgamento do caso; aplicável - e aplicado - era (e foi) só, como se disse, o artigo 44º.
Deste modo, uma vez que o acórdão recorrido não aplicou os artigos 37º e 43º do Decreto-Lei nº 43.335, de 10 de Setembro de 1960, e que estas são as normas que, no recurso, se pretende que este Tribunal aprecie sub specie constitutionis, não pode conhecer-se do seu objecto, por falta de verificação do pressuposto que exige que a decisão recorrida tenha aplicado a norma ou normas, cuja inconstitucionalidade se suscitou durante o processo.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do recurso e condenar a recorrente nas custas, fixando-se, para tanto, em quatro unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 1 de Março de 1994
Messias Bento José de Sousa e Brito Bravo Serra Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida (vencido, em parte, na medida em que entendi que a questão de inconstitucionalidade do art. 43º é indissociável da aplicação ao caso do art. 44º: esta última dependeu da interpretação que se fez do referido art. 43º, interpretação que, por excluir os casos como os dos autos, é questionada pelo recorrente; em boa verdade, pois, a apreciação da constitucionalidade do art. 43º não constitui obiter dictum do Tribunal a quo, mas pressuposto da aplicação do artigo 44º, pelo que, por este motivo, não de devia deixar de conhecer do recurso, caso se entendesse que a questão havia sido suscitada como de inconstitucionalidade de uma norma, o que se afigura mais que duvidoso).