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Processo n.º 774/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. propôs, no 2º juízo cível da Comarca de Vila do Conde, ação contra B., pedindo que se declarasse que este último era seu pai e que, em conformidade, fosse alterado o seu assento de nascimento.
Alegava que em 1982 intentara no Tribunal Judicial de Póvoa do Varzim ação com o mesmo pedido e contra o mesmo réu; e que, tendo sido este então absolvido do pedido por se verificar a exceção de caducidade prevista nos nºs 1 e 4 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação à altura vigente, lhe assistia agora a ela, autora, o direito de interpor nova ação, uma vez que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 23/2006, havia entretanto declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do prazo de dois anos para a interposição da ação de investigação da paternidade (previsto, precisamente, no mencionado nº 1 do artigo 1817.º do CC).
Contestou o réu, invocando a exceção do caso julgado.
Por despacho saneador, julgou-se procedente a exceção, pelo que se absolveu o réu da instância.
2. Inconformada, apelou A. para o Tribunal da Relação do Porto.
O Tribunal da Relação, que entendeu inexistir caso julgado, revogou a decisão recorrida e ordenou o prosseguimento dos autos.
Interpôs então o réu, B., recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão datado de 9 de setembro de 2010, lhe veio a dar razão.
Entendeu na verdade o Supremo que “ (…) a circunstância de o Tribunal Constitucional ter proferido, em Plenário, o Acórdão nº 23/06, de 10 de janeiro de 2006, no qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, nº1, 36.º, nº1, e 18.º, nº2, da Constituição, em nada afeta a decisão judicial já transitada em julgado que declarou a caducidade de tal direito da Autora, na ação anterior referida no presente Acórdão.
Com efeito, é a própria Constituição da República que, no nº 3 do seu artigo 282.º, ressalva os casos julgados, de modo a assegurar a intangibilidade de tais decisões pelos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das suas normas, com força obrigatória geral.
Não tem assim viabilidade a asserção da Recorrente, contida na conclusão 6ª das suas contra-alegações, no sentido de que as disposições dos artigos 493.º, 494.º e 497.º do CPC, se devem ter também por inconstitucionais, na medida em que proponham aplicar-se às ações de investigação da paternidade ou da maternidade.
Não é possível declarar-se inconstitucional o que é previsto e tutelado pela própria Constituição, como é bom de ver. (.)”
3. Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional a autora, A..
Dizia, no respetivo requerimento, que o recurso era interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, e que já havia sustentando, nas alegações oferecidas na apelação e no recurso de revista, “que as normas do C.P. Civil relativas ao caso julgado não podem ser interpretadas no sentido da sua aplicação a ações de investigação de paternidade, sob pena de contenderem com o disposto nos arts. 16.º, nº1, 36.º, nº1, e 18.º, nº 2, da CRP.”.
A requerente foi então convidada, pela relatora no Tribunal Constitucional, a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso, de modo a que se cumprissem os requisitos exigidos pela parte final do nº 1 do artigo 75.º-A da Lei nº 28/82, de 15 de novembro.
Na sequência da resposta a este convite, e de decisão sumária proferida pela relatora, decidiu o Tribunal, no Acórdão nº 418/2011, proferido em conferência, admitir o recurso de constitucionalidade quanto à norma constante da alínea i) do nº 1 do artigo 494.º do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido segundo o qual a exceção dilatória do caso julgado abrange, também, as ações não oficiosas de investigação da paternidade, ordenando-se, em relação ao recurso, de objeto assim circunscrito, a produção das correspondentes alegações.
4. Nestas, a recorrente concluiu do seguinte modo:
1 ª) Não se põe em causa que o n.º 3 do art. 282º da C. R. P. veda em termos gerais a extensão dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade aos casos julgados.
2ª) Todavia, a questão que levantamos, quer nas alegações para a Relação, quer nas alegações para o S. T. J., quer neste recurso, é a de saber se as ações de investigação não oficiosa de paternidade/maternidade geram a ocorrência de caso julgado,
3ª) Ou, dito de outro modo, se a interpretação da lei processual civil no que concerne ao caso julgado, nomeadamente do art. 494º, n.º 1, alínea i) do C. P. Civil, no sentido de que se aplica a tais ações, viola ou não as normas constitucionais.
4ª) É nossa convicção que efetivamente viola.
5ª) Assim concluímos, porque a referida norma processual consubstancia prescrição da lei ordinária pré-existente à entrada em vigor da atual Constituição, pelo que tem que ter-se em conta o disposto no primitivo art. 293º (hoje nº 2 do art.º 290.º) da Lei Fundamental que estatui que 'O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição e seus princípios'.
6ª) Ora, é evidente que o art.º 494.º, nº 1, alínea i) do C. P. Civil, na medida que pretenda sobrepor-se, fazendo-os precludir de forma inaceitável, aos direitos à identidade pessoal e de estabelecer família, contraria normas e princípios fundamentais da Constituição, nomeadamente os consignados nos seus arts. 12.º, 1.6º, 18.º, 25.º, nº 1 e 36.º, nºs 1 e 4.
7ª) Isto, porque não pode admitir-se que a preocupação de ordem meramente funcional de evitar reproduzir ou contrariar uma decisão anterior possa alguma vez sobrepor-se à garantia dos direitos fundamentais, e particularmente desta ordem, sob pena de uma drástica e inaceitável inversão de valores.
8ª) Por conseguinte, qualquer interpretação do citado artigo do C. P. Civil no sentido de que se aplica a processos em que se discutem direitos como os que, no caso, se pretende exercer tem que ter-se como inconstitucional e abrangida pela revogação constitucionalmente prevista.
9ª) Em boa verdade, a existência de contradição com as normas constitucionais que aqui se sustenta é análoga à que ocorre relativamente ao nº 1 do art. 1817.º e que levou à declaração de inconstitucionalidade desta norma,
10ª) Porque em ambos os casos estamos perante normas meramente adjetivas alicerçadas em considerações de ordem prática, abusivamente preclusivas do exercício dos mesmos direitos fundamentais.
11 ª) Tem, por isso, que considerar-se inconstitucional, e por isso revogada, a norma do art. 494.º, nº 1, alínea i) do C. P. Civil quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade aos processos em que se discutam ou se pretendam exercer direitos fundamentais como os que no caso sub judice estão em apreciação.
Sem conceder
12ª) O facto de o legislador estatuir no art.º 1813.º do C. C. que, no caso de ação oficiosa de investigação, a sua improcedência não impede a instauração de nova ação – o que não acontece com outros tipos de ações intentadas pelo Ministério Público – revela bem que se reconhecia que, no caso, estamos perante o exercício de um direito fundamental que justifica excecionar-se ao regime do caso julgado.
13ª) Consideração esta que, à luz da atual Constituição e das garantias aos direitos fundamentais que estabelece, ganha um peso muito mais substancial.
14ª) Sendo frouxa e inconsistente, como resulta das considerações que supra se alinharam, a justificação dada por alguns autores para o disposto no art. 1813.º, que se consubstancia numa alegada maior falibilidade do Ministério Público.
15ª) É evidente que o facto de se estabelecer que não ocorre caso julgado nas ações oficiosas e o mesmo não acontecer com as não oficiosas, constitui uma violação do princípio da igualdade consignado no art.º 13.º da Constituição.
16ª) Violação que assume especial gravidade atento o melindre e a relevância dos direitos que estão em causa,
17ª) Pelo que, também por este fundamento, se impõe a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos arts. 494.º,n.ºl, alínea i) do C. P. Civil com o sentido que repudiamos.
18ª) Não obstante a A. desta ação ter arguido a inconstitucionalidade desta norma na interpretação supra referida, e a sua implícita revogação parcial ocorrida com a entrada em vigor da atual Constituição, o S. T. J. limitou-se a negar provimento ao seu recurso alegando que a declaração de inconstitucionalidade do nº 1 do art. 1817.º não pode produzir efeitos relativamente à presente ação, por ocorrer caso julgado, louvando-se no disposto no artigo 282.º, nº3, da CRP.
19ª) Abstendo-se, assim, de pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade arguida pela A. quanto à alínea i) do n.º 1 do art. 494.º do C.P.C. na interpretação a que nos vimos referindo.
20ª) Do que resultou aplicar uma norma (a do art. 494, n.º1, alínea i) cuja inconstitucionalidade parcial, e implícita parcial revogação, tinha sigo arguida – o que confere à A. o direito de recorrer para este tribunal, conforme prevê o art. 70.º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15/11.”
O recorrido não contra-alegou.
Importa apreciar e decidir
II. Fundamentação
4. Está em causa, no presente recurso, a questão de saber se é conforme à Constituição a interpretação do disposto no nº 1, alínea i), do artigo 494.º do Código de Processo Civil, segundo a qual a exceção dilatória do caso julgado, aí prevista, abrange também as ações não oficiosas de investigação da paternidade.
De acordo com a argumentação da recorrente, que sustenta a tese da inconstitucionalidade, a questão não se resolve, como a resolveu o tribunal a quo, com a invocação do disposto no nº 3 do artigo 282º da Constituição. No seu entender, uma coisa é a determinação dos efeitos das decisões do Tribunal Constitucional que declaram, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas jurídicas, determinação essa levada a cabo pelo referido nº 3 do artigo 282.º da CRP; e outra, completamente distinta, é a de saber como é que, em uma leitura conforme à Constituição, se deve recortar o âmbito de matérias para a qual valerá a exceção dilatória do caso julgado, prevista pela alínea i) do nº 1 do artigo 494.º do Código de Processo Civil. É que é muito diverso, diz-se, o alcance das duas questões. De acordo com o iter argumentativo percorrido pela recorrente, a primeira terá apenas o alcance restrito de determinar quais os efeitos das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral; ao passo que a segunda terá alcance diverso, e bem mais vasto, pois que dirá respeito à questão de saber se as normas de direito processual comum que prevêem a exceção dilatória do caso julgado (normas, que, no dizer da recorrente, são “de ordem pragmática que indiscutivelmente condicionam e fazem mesmo precludir o exercício dos direitos (…)” não devem ser, por imposição constitucional, interpretadas restritivamente, de tal ordem que do seu âmbito material de aplicação se excluam situações que, convocando “valores muito relevantes da pessoa humana”, mereçam especialmente forte tutela jusfundamental. In casu, esses valores, merecedores de forte tutela, seriam os discutidos por intermédio das ações de investigação da paternidade que, por dizerem respeito à “preocupação intensa e íntima do ser humano de ver estabelecida a sua identidade genética”, deveriam elas próprias (no entender da recorrente) colocar-se fora do âmbito “em que vigoram as normas que configuram e determinam o universo de situações em que se aplica o princípio do caso julgado”.
Sendo esta a premissa inicial de que parte toda a argumentação subsequente, constante das alegações, é também pela sua análise que se começará. Será realmente inútil, para a resolução da questão sub judicio, a convocação do disposto no nº 3 do artigo 282.º da Constituição (que determina que, por princípio, os efeitos ex tunc das declarações de inconstitucionalidade das normas com força obrigatória geral se produzam com ressalva dos casos julgados)?
A resposta é claramente negativa. Não é inútil a convocação, para a resolução da questão sub judicio, do disposto no nº 3 do artigo 282.º da CRP. E isto por uma razão simples. Não sendo – ao contrário do que pretende a recorrente – de modo algum alheia à questão que no presente recurso se coloca aquela que é resolvida pelo preceito constitucional, há-se ser também a partir deste último que se achará a solução adequada ao caso.
5. Diversamente do que sucede em outros ordenamentos jurídicos, que, ou remetem para a lei a fixação final dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Tribunal Constitucional (artigo 94.º da Constituição alemã e artigo 164.º da Constituição espanhola), ou conferem a essas decisões apenas eficácia ex nunc (artigo 136.º da Constituição italiana), a Constituição portuguesa é explícita quanto ao grau com que censura o direito ordinário que contrarie, para usar as palavras do seu artigo 277.º, as “normas” e “princípios” que nela se contêm. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 282.º da CRP, será inválido o direito comum que for julgado inconstitucional através de declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, de tal modo que essas declarações produzirão efeitos “desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional”. O grau de censura que o legislador constituinte português reservou para o fenómeno da inconstitucionalidade é um grau intenso; pelo menos, mais intenso do que aquele que outras constituições, que apenas conferem eficácia ex nunc às sentenças, com força de lei, dos seus tribunais constitucionais, ao mesmo fenómeno reservam. Esta opção, tomada pelo nosso poder constituinte, por uma censura forte da inconstitucionalidade – que explicará também a opção, nem sempre seguida em direito comparado, de não remeter para a lei ordinária a fixação final dos efeitos das decisões do Tribunal com força obrigatória geral – poderá ser explicada por razões várias de História. Contudo, e como que quer que seja que se configure a sua explicação, a verdade é que ela denota uma especial intenção do legislador constituinte em garantir a força normativa da constituição, através da fixação, ao nível mais alto da hierarquia das normas, de instrumentos destinados a expurgar do ordenamento jurídico atos [normativos] inconstitucionais.
Esta intenção, que o artigo 282.º corporiza, traduz-se numa regra (a da eficácia ex tunc das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral) que conhece apenas duas exceções. Uma é a que consta do nº 4 do artigo 282.º Sempre que houver razões de segurança, equidade, ou interesse público de excecional relevo, o Tribunal Constitucional pode conferir às suas declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral efeitos mais restritos do que os que decorrem da regra geral. Outra é a que consta da primeira parte do nº 3 do mesmo artigo 282.º. As decisões do Tribunal a que se refere o preceito produzem efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, ficando no entanto ressalvados os casos julgados.
6. A razão que justifica esta segunda exceção encontra-se no princípio da segurança jurídica, que decorre do princípio mais vasto de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP.
O Estado de direito é, também, um Estado de segurança. Por isso, dificilmente se conceberia o ordenamento de um Estado como este que não garantisse a estabilidade das decisões dos seus tribunais. Ao contrário da função legislativa, que, pela sua própria natureza, tem como característica essencial a autorrevisibilidade dos seus atos (nos limites da Constituição), a função jurisdicional, que o artigo 202.º da CRP define como sendo aquela que se destina a “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, a “reprimir a violação da legalidade democrática” e a “dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, não pode deixar de ter como principal característica a tendencial estabilidade das suas decisões, esteio da paz jurídica. Por esse motivo, o artigo 282.º ressalvou, como derrogação à regra da eficácia ex tunc das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a intangibilidade do caso julgado, opondo assim ao valor negativo da inconstitucionalidade o valor positivo da questão já decidida pelo tribunal.
Ao estabelecer esta oposição, fazendo nela prevalecer a força vinculativa do caso julgado, o legislador constituinte revelou a forma como procedeu à ponderação de dois bens ou valores: entre a garantia da normatividade da constituição, e a consequente forte censura dos atos inconstitucionais, e a garantia da estabilidade das decisões judiciais, especialmente exigida pelo Estado de direito, a constituição optou em princípio pela segunda, salvos os casos, impostos pelo princípio do favor rei, previstos na segunda parte do nº 3 do artigo 282.º
A uma ponderação de bens feita pelo próprio legislador constituinte, e em cujo resultado se inscreve a prevalência nítida de um dos bens ou valores em conflito, não pode o intérprete contrapor a sua própria ponderação.
No caso, invoca o recorrente o maior peso que certos direitos fundamentais (como aqueles que, constantes do nº 1 do artigo 26.º da CRP, são atuados através das ações de investigação da paternidade) terão sobre o princípio da força vinculativa do caso julgado, partindo da ideia segundo a qual este segundo princípio deve ceder perante o imperativo de garantia da Constituição. É por isso que sustenta que, uma vez declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do Código Civil que previa um prazo de dois anos para a interposição das ações de investigação da paternidade, terá o autor de ação interposta em momento anterior ao da declaração de inconstitucionalidade o direito a interpor nova ação, direito esse conferido por uma leitura restritiva da norma de direito processual civil que define o âmbito e o alcance da exceção dilatória do caso julgado. Engana-se, porém, ao defender que tal interpretação restritiva é imposta pela Constituição. Não o é. A ponderação, feita pelo próprio legislador constituinte no nº 3 do artigo 282.º da CRP, entre censura da inconstitucionalidade por um lado e proteção do caso julgado por outro – com prevalência deste último sobre o primeiro –, ao ser reveladora do peso que detém, no sistema constitucional, o princípio da segurança jurídica, é também reveladora da opção de princípio que, neste domínio, o legislador constituinte tomou: a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de qualquer norma de direito ordinário (e quaisquer que sejam os valores constitucionais que esta última tenha ofendido), se, por regra, apaga os efeitos que a norma ilícita produziu, não apaga as situações em que tal norma tenha sido aplicada em casos definitivamente decididos pelos tribunais.
Sendo esta a opção de princípio que o legislador constituinte tomou, claro se torna que não resulta da Constituição o dever de interpretar restritivamente as normas do Código de Processo Civil que definem o âmbito e o alcance da exceção dilatória do caso julgado. Não há, face à Constituição, o dever de interpretar essas normas de forma a excluir do seu âmbito de aplicação as ações não oficiosas de investigação da paternidade, pese embora a especial repercussão jusfundamental que detém o regime comum dessas ações.
7. Esta conclusão não exclui que o legislador ordinário possa, em situações justificadas, permitir que se reabram casos jurisdicionalmente já definidos. É o que acontece nas hipóteses expressamente previstas pelos artigos 1813.º e 1868.º do Código Civil, relativas às ações oficiosas de investigação da paternidade e da maternidade, onde se estipula que a improcedência da ação [oficiosa] “não obsta a que seja intentada nova ação de investigação (…), ainda que fundada nos mesmos factos”.
Nas suas alegações, a recorrente invoca estas previsões normativas (às quais faz acrescer uma outra, inserta no regime tutelar de menores) a um duplo título: primeiro, enquanto lugar paralelo da solução que, no seu entender, deveria ser aplicada, também, às ações não oficiosas de investigação da paternidade; segundo, enquanto argumento para sustentar a inconstitucionalidade da não aplicação do mesmo regime às ações não oficiosas, por violação do princípio da igualdade. A nenhum destes títulos tem a recorrente razão.
Antes do mais, e quanto ao primeiro, haverá sempre que distinguir entre inconstitucionalidade e conceções do bom direito. Ainda que se entenda, como o parece fazer a recorrente, que, “de jure condendo”, deveria ser estendido o regime previsto nos artigos 1813.º e 1868.º do Código Civil para as ações oficiosas de investigação da maternidade e da paternidade às ações não oficiosas, de tal não decorre que seja inconstitucional a leitura feita pela decisão recorrida, segundo a qual se não verifica, face ao teor literal das normas pertinentes, a referida extensão. É que uma coisa é a conceção que se possa ter quanto à mais acertada solução legislativa a adotar sobre determinada matéria; e outra, bem diversa, o juízo de inconstitucionalidade que sobre essa solução legislativa eventualmente recaia. Como é evidente, ao Tribunal cabe apenas formular este último. E é esse juízo de inconstitucionalidade, o único que ao Tribunal cabe, que, pelas razões já expostas, se não apresenta, no caso, fundamentado.
Por outro lado, não colhe a invocação, feita pela recorrente, de que, a ser assim, haveria violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, por ser diverso o regime previsto para as ações oficiosas e não oficiosas [de investigação da paternidade e da maternidade]. Como o Tribunal sempre tem dito em jurisprudência constante, sintetizada no Acórdão nº 232/2003, à luz do princípio geral da igualdade, constante do nº 1 do artigo 13.º da CRP, só são censuráveis as diferenças de regimes estabelecidas pelo legislador ordinário que não apresentem, para a medida da diferença, uma justificação razoável e intersubjectivamente percetível. Ora, como a própria recorrente reconhece nas suas alegações, existe uma justificação inteligível para que o regime do artigo 1813.º do Código Civil valha apenas para as ações oficiosas de investigação da paternidade: “ [a]s menores garantias de apuramento da verdade que oferece a ação instaurada pelo Ministério Público (entidade oficial representada por agentes que nem sempre conhecem suficientemente a teia de relações existentes no meio social e familiar em que o nascimento ocorreu e a ação se desenrola) em face da ação proposta pelas pessoas que normalmente gozam da legitimidade para propô-la ou prosseguir com ela …). [Apud ponto I das alegações]. Pode discordar-se da valoração que e legislador fez deste fundamento, ao erguê-lo em medida da diferença entre o regime das ações oficiosas e não oficiosas; mas o que se não pode, como já vimos, é confundir a opinião de discordância com o juízo de inconstitucionalidade.
8. Resta, por último, analisar o argumento final alegado pela recorrente em favor da tese da inconstitucionalidade.
De acordo com este argumento, o facto de a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo de dois anos para a interposição da ação de investigação da paternidade, contida no Acórdão nº 23/2006, ter incidido sobre direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição é uma razão acrescida para que a censura de inconstitucionalidade prevaleça sobre o princípio do caso julgado.
Não há dúvida que pode ser qualificada como superveniente a inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal no seu Acórdão nº 23/2006. A redação constante do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, que então se julgou, com força erga omnes, ser contrária à Constituição, constava da versão primitiva do Código, datada de 1966. Nessa altura era outra a ordem constitucional portuguesa; os princípios próprios do novo ordenamento, iniciado em 76 (e, desde logo, o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos, liberdades e garantias), à luz do quais foi declarada, em 2006, a inconstitucionalidade do prazo de caducidade para a interposição das ações de investigação da paternidade, não eram pois vigentes no momento em que aquele prazo fora decidido pelo legislador ordinário. Mas a verdade é que o facto em nada altera os termos em que deve ser julgada a norma sub judicio, e isto por duas razões fundamentais.
Antes do mais, porque a ponderação que é feita, na Constituição, entre censura de inconstitucionalidade e intangibilidade de caso julgado vale, como já vimos – e com ressalva da exceção expressamente prevista na parte final do nº 3 do artigo 282.º – para a inconstitucionalidade em geral, sem aceção dos parâmetros constitucionais que, em cada caso, tenham sido violados. Como a Constituição não procedeu aqui a nenhuma “graduação de inconstitucionalidades”, fixando a gravidade dos efeitos das declarações com força obrigatória geral em função da “gravidade” dos princípios ou valores que, em cada caso, tenham sido violados, também não pode o intérprete proceder a essa graduação. Assim sendo, nenhuma razão há para que se considere que a inconstitucionalidade superveniente merece tratamento mais gravoso do que aquele que por princípio é reservado à inconstitucionalidade originária.
A esta razão acresce uma outra. O juízo de inconstitucionalidade que recaia sobre normas de direito ordinário emanadas antes da entrada em vigor da Constituição só difere, quanto ao seu âmbito, do juízo comum (referente às normas emanadas já durante a vigência da CRP) na exata medida em que se restringe apenas à inconstitucionalidade dita material. Como o Tribunal sempre tem dito (veja-se, a título de exemplo, o Acórdão nº 398/2008), quanto aos critérios de aplicação, no tempo, das normas constitucionais relativas à forma, procedimentos e competências dos atos estaduais, vale o princípio tempus regit actus. É pois neste sentido – e não naquele que o recorrente pretende eleger, para fundar a sua tese segundo a qual o caráter superveniente da inconstitucionalidade deveria fundar um regime de efeitos especialmente gravoso das declarações com força obrigatória geral – que deve ser lido o disposto, hoje, no nº 2 do artigo 290.º da CRP.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea i) do nº 1 do artigo 494.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido segundo o qual a exceção dilatória do caso julgado abrange, também, as ações não oficiosas de investigação da paternidade; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto ao juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixadas em 25 (vinte e cinco) unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 6 de março de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.