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Proc. nº 461/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. foi julgado, em processo sumário, no Tribunal Judicial de Ponte de Lima, por ter sido encontrado a conduzir na via pública um veículo automóvel ligeiro de passageiros sem dispor de documento que validamente o habilitasse a tal - pois, sendo emigrante e encontrando-se em Portugal em gozo de férias, apenas era titular de uma licença de condução emitida pela República da Venezuela, cuja data de validade tinha já expirado. Provados aqueles factos, o arguido foi condenado na multa de 35.000$00, pela prática da infracção prevista e punível pelo artigo 47º, nº 12, do Código da Estrada, na redacção do Decreto Regulamentar nº 47/87, de 29 de Julho. Para assim decidir, o tribunal recusou aplicar, por inconstitucionalidade orgânica, a norma constante do novo nº 17, alínea a), do mesmo artigo, introduzido pelo Decreto-Lei nº 268/91, de 6 de Agosto.
Invocando o disposto nos artigos 72º, nº 3, e
70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, restrito a essa questão de inconstitucionalidade; mas, aqui, produziu alegações pedindo que se confirme a decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. Para delimitar o objecto do presente recurso, importa expor as disposições que o tribunal recorrido teve em consideração na sentença em causa.
O artigo 46º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 268/91, dispunha o seguinte, na parte que interessa aqui considerar:
1. Só poderão conduzir automóveis nas vias públicas:
... e) Quando não estejam domiciliados em Portugal, os estrangeiros habilitados com licença de condução passada pelos serviços do seu país, [...], os brasileiros titulares da carta de condução passada pelos serviços brasileiros competentes e os portugueses titulares de licença de condução estrangeira nos termos a fixar em despacho do Director-Geral de Viação;
... A contravenção do disposto neste número será punida com a multa de 10.000$ a
50.000$00 e prisão até um mês. A reincidência será punida com a multa de
20.000$00 a 100.000$00 e prisão até seis meses. ...
Mas o artigo 47º do mesmo diploma estabelecia, no seu nº 12 (redacção do Decreto Regulamentar nº 47/87, de 29 de Julho):
12 - [...] a condução por titular de carta de condução caduca será punida com multa de 5.000$ a 25.000$, ficando os infractores impedidos de conduzir até à sua revalidação.
Os montantes destas multas foram depois aumentados, pelo Decreto-Lei nº 240/89, de 26 de Julho (artigos 1º, alínea j),
2º, alínea g), e 9º): quanto à infracção prevista no nº 1, o mínimo da multa passou para 100.000$, ou 200.000$ em caso de reincidência, e quanto à infracção prevista no nº 12, o mínimo passou para 25.000$; o limite máximo das multas foi fixado no quíntuplo do mínimo. E, no ano seguinte, o artigo 1º do Decreto-Lei nº
123/90, de 14 de Abril, veio estabelecer:
Quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado, nos termos do artigo 46º do Código da Estrada, será punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias.
Mais recentemente, a redacção dos referidos normativos do Código da Estrada foi novamente alterada, pelo Decreto-Lei nº
268/91, de 6 de Agosto. O artigo 46º passou a dispor:
1. Só poderão conduzir automóveis nas vias públicas:
... c) Quando não estejam domiciliados em Portugal, os estrangeiros habilitados com licença de condução estrangeira [...], bem como os portugueses titulares de licença de condução estrangeira; ...
Foi introduzida, por este decreto-lei, a seguinte redacção ao nº 17 do artigo 47º:
17 - Consideram-se, para todos os efeitos, não habilitados para a condução de veículos automóveis, só podendo obter carta de condução após aprovação nas provas de exame a que se refere o nº 1 do artigo 52º, os indivíduos que se encontrem nas condições seguintes:
a) Sejam titulares de quaisquer das licenças de condução previstas nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 46º, cujo prazo de validade tenha expirado; ...
O texto do anterior nº 12 do artigo 47º transitou para o nº 6 do artigo 48º, com idêntica redacção, actualizada no que diz respeito aos montantes mínimo e máximo da multa:
6 - [...] o exercício da condução por titular de carta de condução caduca será punido com multa de 25.000$ a 125.000$.
A diferença entre os dois últimos normativos consiste desde logo em que o nº 17, alínea a), se refere a licenças de condução internacionais, estrangeiras e da Comunidade Europeia [artigo 46º, nº 1, alíneas b), c) e d)], ao passo que o nº 6 do artigo 48º se refere apenas a licenças de condução nacionais (denominadas 'cartas de condução'). Assim, o anterior artigo
47º, nº 12, foi substituído, quanto às licenças de condução internacionais e estrangeiras, pelo novo nº 17, alínea a), e quanto às restantes pelo novo artigo
48º, nº 6.
3. A decisão recorrida considerou que 'a hipótese dos autos cai na previsão do artigo 47º nº 17 al. a) desse Decreto-Lei 268/91, e assim incorria o arguido na pena do artigo 1º do Decreto-Lei 123/90, isto é, na pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias pela prática do crime aí previsto'.
A norma desaplicada foi, pois, a do artigo 47º, nº 17, alínea a), do Código da Estrada, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 268/91, na medida em que, da sua conjugação com o artigo 46º do mesmo diploma, resulta ser punível com as penas previstas no artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90 (prisão até um ano, ou multa até 120 dias) a condução de um veículo automóvel ligeiro na via pública, por um titular de licença de condução estrangeira já caducada. Foi essa a disposição que o tribunal a quo julgou organicamente inconstitucional, e é ela, por isso, o objecto do presente recurso.
4. A norma em causa sofre do apontado vício de inconstitucionalidade .
Deve entender-se que, a partir da entrada em vigor do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, passou a ser crime a condução de veículo automóvel na via pública sem a devida licença: de facto, e como se mostrou no recente Acórdão 121/93, de 14 de Janeiro, do Tribunal Constitucional
(ainda inédito), tal alteração penal resultou do uso de uma autorização legislativa que habilitou Governo a criminalizar a infracção em causa - v. artigo 2º, alínea c), da Lei nº 31/89, de 23 de Agosto, norma invocada expressamente no preâmbulo daquele diploma. Porém, esta criminalização não abrangeu, como vimos, os casos em que a licença existira, mas havia caducado.
Só com o Decreto-Lei nº 268/91 é que a condução de veículo automóvel na via pública por quem não está legalmente habilitado a tal por ter caducado a respectiva licença, e que antes era punível, nos termos daquele anterior nº 12, com multa contravencional de 25.000$ a 125.000$, passou a ser punível, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, com prisão até um ano ou multa até 120 dias. O Decreto-Lei nº 268/91 alterou, pois, a natureza da infracção - de contravencional para criminal - e agravou a punição anterior, substituindo uma pena de multa por uma pena de prisão ou de multa.
E, se nada há a objectar ao uso da mencionada autorização legislativa na aprovação do Decreto-Lei nº 123/90, já o alargamento daquela incriminação, operada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 268/91, carecia de nova autorização legislativa, pois a definição de crimes, penas e respectivos pressupostos é matéria incluída na reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição).
Autorização legislativa de que o Governo não dispunha, conforme resulta do relatório do Decreto-Lei nº 268/91, apenas aprovado ao abrigo da competência legislativa conferida pelo artigo 201º, nº 1, da Constituição.
Aliás, mesmo que se continuasse a atribuir àquela infracção uma natureza meramente contravencional, a autorização legislativa não deixaria de ser exigível. É certo que a reserva relativa de competência estabelecida por aquele artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição não abrange, em princípio, a definição da medida legal das penas contravencionais, mas não é menos certo que a definição de contravenções a que corresponda medida privativa de liberdade (designadamente, pena de prisão, como foi o caso), sendo matéria de direitos, liberdades e garantias, está abrangida na reserva estabelecida pela alínea b) do mesmo artigo 168º, nº 1 (sobre a evolução da jurisprudência da Comissão Constitucional e do Tribunal Constitucional nesta questão, v. Acórdãos nºs 15/84, 21/84, 49/84, Diário da República, II série, de
11 e 19 de Maio de 1984 e 24 de Julho de 1984, respectivamente; v. também o Acórdão nº 56/84, Diário da República, I série, de 9 de Agosto de 1984).
III - DECISÃO
Face ao exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 47º, nº 17, alínea a), do Código da Estrada, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 268/91, na medida em que, da sua conjugação com o artigo 46º do mesmo diploma, resulta ser punível, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, a condução de um veículo automóvel ligeiro na via pública por titular de licença de condução estrangeira já caducada, por violação do preceituado nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 8 de Junho de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Bravo Serra Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa