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Proc. nº 94/92
2ª Secção Rel.: Cons. Luís Nunes de Almeida
(Cons. Bravo Serra)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. foi julgado no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro pela prática de um crime de deserção previsto e punido pelos artigos 132º e 133º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante (CPDMM), aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, por não ter embarcado no navio em que era mestre de pesca, na data designada para a saída deste, do porto de Aveiro com destino aos pesqueiros do Noroeste Atlântico.
A acusação foi julgada improcedente e o arguido absolvido, considerando o tribunal que, «por força do previsto nos arts
53º e ss da Constituição da República Portuguesa, e das normas promulgadas, na sua sequência, em sede laboral ordinária, constitui uma enormidade epigrafar de desertor, com a humilhação decorrente de sanção criminal, aquele que, sem motivo, faltar à chamada, na saída do navio para o mar». Assim, «os princípios
ínsitos na Constituição, decorrentes das normas legisladas - no atinente aos direitos dos trabalhadores - seriam ofendidos, se houvesse de penalizar-se como desertor, em sede criminal, o tripulante que deixar de embarcar, sem motivo justificado, na viagem aprazada». Consequentemente, entendeu o mesmo tribunal estarem feridos de inconstitucionalidade os artigos 132º e 133º do CPDMM.
2. Daquela decisão, recorreu obrigatoriamente o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
No entanto, nas alegações aqui apresentadas, pronuncia-se pela inconstitucionalidade, com fundamento em violação do princípio da igualdade, da norma constante do artigo 132º do CPDMM, na parte em que prevê a punição como desertor de quem, sendo tripulante de um navio, e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, ainda que tal tripulante não tenha funções que se liguem directamente à manutenção e equipagem desse navio.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. A versão original do CPDMM foi introduzida pela Carta de Lei de 4 de Julho de 1864. Conforme a Comissão Constitucional notou nos Pareceres nº 1/81 e nº 7/82 (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14, pág. 105, e vol. 18, pág. 209), tratava-se de uma lei penal especial que tipificava ilícitos de natureza penal (e não disciplinar, no sentido moderno do termo), segundo a tripartição napoleónica de «crimes»,
«delitos» e «contravenções».
Só com o novo código aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, é que se modificou essa situação, procurando distinguir-se agora a repressão penal da repressão disciplinar. Segundo o relatório do diploma, «esta confusão dos dois meios repressivos não tem qualquer justificação», já que «as infracções disciplinares são totalmente distintas das infracções penais, e estas, por sua vez, são divididas em crimes marítimos e crimes comuns».
No entanto, no que se refere à matéria disciplinar, o Código de 1943 retomava, afinal, medidas sancionatórias que no texto de 1864 eram consideradas contravencionais (penais), e nomeadamente as penas de prisão «disciplinar», aliás construídas segundo o modelo do direito disciplinar militar. Estas penas de prisão disciplinar só seriam eliminadas pelo Decreto-Lei nº 678//75, de 6 de Dezembro; e, mesmo assim, este diploma deixou ainda em aberto a possibilidade de conversão em prisão das penas disciplinares de multa (artigo 116º do CPDMM) - possibilidade que se manteve até que o Conselho da Revolução, em face do já citado Parecer nº 1/81 da Comissão Constitucional, declarasse com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do referido artigo 116º (Resolução nº 8/81, publicada no Diário da República, I série, de 29 de Janeiro de 1981), o qual veio, mais tarde, a ter nova redacção, estabelecida pelo Decreto-Lei nº 39/85, de 11 de Fevereiro.
No Código de 1943, a competência disciplinar ficou atribuída aos superiores hierárquicos, ao passo que a competência penal foi reservada aos tribunais marítimos aí previstos. Posteriormente, porém, face ao disposto no artigo 213º, nº 3, da Constituição de
1976, a competência para julgar os crimes previstos no CPDMM passou para os tribunais comuns.
4. Dispõem os artigos 132º e 133º do CPDMM:
Art. 132º - É considerado desertor o tripulante que, não havendo motivo justificado, deixar partir o navio para o mar sem embarcar e, bem assim, aquele que sem autorização superior abandonar o serviço de bordo durante cinco ou mais dias consecutivos.
Art. 133º - O tripulante que desertar no porto de partida será punido com prisão simples até um ano e aquele que desertar em qualquer outro lugar será punido com prisão simples até dois anos.
Segundo o Ministério Público, «aquela norma, quando aplicável a alguém que, sendo tripulante do navio, não tem funções que se ligam directamente ao funcionamento e manutenção do navio, como acontece no caso dos presentes autos, é inconstitucional por violação do artigo 13º da Constituição, e isto porque, embora se aceite que o trabalho a bordo, pelas suas características específicas, deve ter um regime próprio, no caso deste processo, dadas as funções do réu, não tem fundamento uma diferença de tratamento tão gritante em relação aos trabalhadores em geral».
É bem verdade que poderia opor-se a esta linha de raciocínio, desde logo, que, na pesca de alto-mar, a segurança da navegação é assunto que diz respeito a todas as categorias de membros da equipagem. Por exemplo, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março
(Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho do Pessoal da Marinha do Comércio), refere-se expressamente um «princípio da polivalência das funções a bordo».
Todos os elementos embarcados podem, pois, ser chamados a desempenhar tarefas que têm a ver com o prosseguimento da viagem e a segurança do navio. E, consequentemente, com a falta de condições de navegabilidade.
Em sentido oposto se poderia ripostar que tal agravamento de risco se afigura demasiado abstracto e vago, já que as funções de navegação que um pescador é normalmente chamado a desempenhar são marginais e indiferenciadas, não têm um carácter permanente nem premente, e nelas a substituição desse pescador por outro elemento da equipagem pode normalmente realizar-se sem problemas de maior. Assim, tais funções resultantes da polivalência do pessoal embarcado não se afigurariam decisivas para alcançar o desiderato de fazer navegar o navio até ao seu destino e de garantir o seu regresso.
5. A questão da igualdade de situações entre o pessoal de terra e ao pessoal do mar, é, pois, duvidosa. Mas, haja ou não aí violação do princípio da igualdade, poderia também perguntar-se se a norma incriminadora não criará uma situação de trabalho obrigatório.
Como é sabido, a Constituição consagra o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade do trabalhador (artigo 47º, nº 1). Esta liberdade consiste, por um lado em não poder ser-se obrigado a exercer uma certa actividade e, por outro lado, em não poder ser-se impedido de exercê-la.
O que sejam as restrições impostas pelo interesso colectivo, é matéria que a Constituição não aborda especificamente. Mas não se deverá deixar de ter aqui em conta os preceitos e princípios decorrentes do direito internacional que vincula Portugal nesta matéria, designadamente o artigo 4º, nº 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que proíbe a imposição de trabalho forçado ou obrigatório, bem como a Convenção nº 29 da O.I.T. sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 28 de Junho de 1930, e a Convenção nº 105 da O.I.T. sobre a Abolição do Trabalho Forçado, de 25 de Junho de 1957 (aprovadas para ratificação respectivamente pelo Decreto-Lei nº
40 646, de 16 de Junho de 1956, e Decreto-Lei nº 42 381, de 23 de Novembro de
1959).
A Convenção nº 29 da O.I.T. define como trabalho forçado ou obrigatório qualquer trabalho ou serviço exigido sob a ameaça de uma pena, e para o qual o interessado não se ofereceu voluntariamente
(artigo 2º, parágrafo 1º).
A Comissão Europeia dos Direitos do Homem tem jurisprudência no sentido de que para se considerar o trabalho como forçado ou obrigatório é preciso, cumulativamente, que: a) o trabalho seja realizado contra a vontade do interessado; b) a obrigação imposta ao trabalhador seja injusta ou opressiva, ou o trabalho inútil, penoso ou vexatório (v. pormenores em J. Velu e R. Ergec, La Convention Européenne des Droits de l'Homme, Bruylant, Bruxelles, 1990, págs. 227-229). Por outro lado, o artigo 4º, nº 4, da Convenção Europeia estabelece que não se considera trabalho forçado ou obrigatório o trabalho prisional normal, o serviço militar e o serviço cívico imposto a objectores de consciência, bem como o serviço exigido em caso de emergência ou de calamidade pública, e finalmente o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.
Ora, poderia defender-se que o trabalho a bordo, imposto a quem não tem funções directamente relacionadas com a navegabilidade e a segurança da embarcação, não cabe em qualquer destas alíneas de exclusão, pelo que teria de ser considerado, neste sentido, trabalho obrigatório. Nesta perspectiva, a norma incriminadora em causa seria, portanto, ilegítima.
Porém, é preciso assinalar que a jurispudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem se tem revelado prudente em certos casos de fronteira entre o que deve considerar-se ou não trabalho obrigatório segundo a Convenção, como resulta da análise dos casos Iversen e Van der Mussele.
O caso Iversen girou à volta da colocação obrigatória de dentistas em regiões rurais da Noruega, imposta por uma lei deste país de 1956, que punia criminalmente a recusa do médico colocado. A Comissão entendeu, por maioria, não haver aí infracção ao artigo 4º da Convenção, mas não houve total identidade de fundamentação entre os membros que compunham a corrente maioritária. Para quatro destes, não ocorria trabalho forçado ou obrigatório, já que a situação que se verificava não era injusta nem opressiva, uma vez que esse serviço era de curta duração, assegurava uma remuneração satisfatória, só se verificava em relação a lugares não preenchidos, e não comportava uma atitude disciminatória, arbitrária ou punitiva; segundo outros dois membros desta corrente maioritária, o trabalho apenas era autorizado nos termos do parágrafo 3º do artigo (que admite a requisição de serviços em caso de crises ou calamidades). Assim, a Comissão não recebeu a queixa, mas houve quatro votos discordantes que se baseavam no facto de o trabalho em causa ser imposto sob a cominação de sanções penais e a decisão foi muito criticada na altura (Processo nº 1468/62, Decisão de 17 de Dezembro de 1963, v. Velu/Ergec, cits.).
O caso Van der Mussele (23 de Novembro de
1983) tinha a ver com a situação dos advogados que, na Bélgica, eram obrigados a desempenhar, sem quaisquer honorários, as funções de defensores oficiosos. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou não haver aí trabalho obrigatório, uma vez que o patrocínio gratuito não saía dos marcos da actividade profissional do advogado, tinha por contrapartida as vantagens inerentes à sua profissão e não constituía um encargo excessivamente pesado; mas um aspecto interessante desta decisão foi a afirmação de que não basta ter havido uma prévia aceitação do trabalho pelo interessado para que se possa concluir não ser tal trabalho obrigatório, sendo necessário ter igualmente em conta outros elementos de apreciação (Tribunal Europeo de Derechos Humanos -
1959/1983, Cortes Generales, Madrid, págs. 982 e segs.).
6. Seja como for, uma abordagem mais incisiva da matéria em causa é, porém, a que pode ser feita à luz do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das penas) que, como é sabido, limita a intervenção da norma incriminadora aos casos em que não é possível, através de outros meios jurídicos, obter os fins pretendidos pelo legislador.
É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada 'constituição penal' (artigos 27º e seguintes da Constituição). Todavia ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental.
Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal - Parte General,trad., Bosch, 1986, pág. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para «assegurar a convivência humana na comunidade».
Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão constitucional de 1982.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira,
(Constituição da República Portuguesa Anotada, vol 1º, pág. 170), o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação
(as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
Ora, se parece controversa a afirmação de que a norma incriminadora em causa viola o princípio da proporcionalidade na primeira destas decorrências, e se não parece ainda totalmente líquido que o viola na segunda, já é indiscutível que o viola na terceira.
Com efeito, ao tornar criminosa a conduta de um trabalhador de bordo cujas funções não estão directa e normalmente relacionadas com a segurança do navio, mas apenas têm a ver com a actividade económica através dele exercida, a norma em causa revela-se excessiva.
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» (O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Coreia, I, págs.806/807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes - ou, sequer, caber no objecto do dieito penal - as condutas, entre outras, que, «violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bena jurídicos, só deve intervir como ultima ratio da política social» (O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 323).
Pode, assim, reconhecer-se que haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para efectuar uma «ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto», para averiguar «se o sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a importância do interesse estatal que se trata sde salvaguardar», já que «se o sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de proporcionalidade»
(Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal, Colex, pág. 225).
A este propósito, escreveu José de Sousa e Brito (A Lei Penal na Constituição, Estudos Sobre a Constituição, vol. 2º, pág. 218):
Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa limitação mais ou menos grave dos direitos individuais, o princípio restritivo dirá que essa limitação será a menor que as necessidades da conservação e da paz sociais consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a convicção de que, se a sanção fosse suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em causa.
É evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva.
In casu, a incriminação não é, claramente, necessária para assegurar a navegabilidade da embarcação, tendo em conta as funções atribuídas ao arguido. E, para permitir um regular desenvolvimento da actividade económica da pesca de longo curso, configura-se como um recurso a meios desproporcionadamente gravosos para a prossecução desse objectivo, só compreensível por se tratar de uma disposição obsoleta, constante de um diploma pré-constitucional, elaborado à luz de valores evidentemente contraditórios com os consignados na Constituição vigente .
Assim, tal norma, ao não respeitar a subsidiariedade do direito penal, viola os princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, decorrentes da ideia de Estado de direito democrático.
III - DECISÃO
7. Face ao exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 132º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, na parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Novembro de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia
Bravo Serra (vencido nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido no tocante à decisão tomada no presente Acórdão, de que esta declaração é parte integrante.
Fi-lo pelas razões constantes do projecto de acórdão que, como relator, apresentei, razões essas que entendo não serem infirmadas por aqueloutras constantes da tese que fez vencimento.
Assim, na presente declaração de voto, passarei a expôr, para além do mais, também a argumentação que se encontrava ínsita no aludido projecto.
1. Como se alcança do exórdio do Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, que aprovou o Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, os crimes marítimos previstos no Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante foram considerados como sendo 'aqueles que directamente se relacionam com o exercício da função marítima', uma parte deles só revestindo tal qualidade quando os factos são 'praticados por algum membro da tripulação, porque se trata de crimes que só podem ser executados pelos tripulantes', enquanto que outra parte se refere a infracções praticadas por agentes 'qualquer que seja a sua qualidade', já que 'todas as hipóteses colocam em causa um interesse de ordem marítima'.
A norma em apreço, como é bom de ver, situa-se no âmbito dos crimes marítimos que como tal são qualificados atendendo aos factos que só por um tripulante podem ser praticados.
O dito Código é aplicável, de entre o mais, a todas as pessoas, nacionais ou estrangeiras, que se encontrem, por qualquer título, a bordo de embarcações portuguesas pertencentes a particulares ou administrações públicas (artº 1º, nº 1) e a todos os inscritos marítimos (mesmo artigo, nº 2).
Daí que as respectivas disposições se não circunscrevam somente à Marinha Mercante. Abarcam elas, na verdade, toda a denominada Marinha de Comércio.
Se a Marinha Mercante, como se define no Parecer nº 30/71 da Procuradoria-Geral da República (Boletim do Ministério da Justiça, 217º, 29 e segs.) é, ' na sua mais simples expressão, um agrupamento de indivíduos dirigidos à prossecução de um fim específico que, aliás, consubstancia o desempenho de um serviço público: a efectivação dos transportes marítimos, quer de passageiros, quer de mercadorias' e, como tal, requer normação reguladora e disciplinadora dos membros que tal agrupamento compõem, por isso que, sem ela, dificilmente seriam atingidos os objectivos e propósitos prosseguidos, também a marinha de pesca, e nomeadamente quanto à marinha pesqueira do Alto Mar ou do largo, demanda, dadas as especiais condições e aspectos em que decorre a vida do trabalho marítimo e a bordo, que facilmente deve ser vista como um micro-cosmos societário onde decorre uma especial vivência em muitos aspectos diferente da da sociedade em geral, um corpo de normas ou regras específicas dotadas de rigor destinadas a regular tão devidamente quanto possível a organização e disciplina desse micro-cosmos.
Por isso, é perfeitamente compreensível para mim que as disposições constante do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante sejam também aplicáveis à marinha de pesca (e, repete-se, especialmente à pesca em Alto Mar, actividade que implica deslocações e estadas prolongadas a bordo).
A questão que se coloca, porém, a meu ver, é a de saber se é justificável que a totalidade daquelas disposições possam ser, sem mais, aplicáveis à marinha de pesca e, concretamente, se é justificado - agora do ponto de vista jurídico-constitucional - que o crime previsto no artº 132º do aludido Código seja aplicável aos inscritos marítimos pertencentes àquela actividade industrial.
2. Quanto a este ponto, podem configurar-se diferentes posicionamentos.
2.1. Segundo uns, pode entender-se que o artº 132º do C.P.D.M.M., ao penalizar como desertor um tripulante que deixe de embarcar sem motivo justificativo, ofende os princípios constitucionalmente consagrados no que concerne ao direito dos trabalhadores e que se encontram ínsitos nos artigos
53º e seguintes da Lei Fundamental.
Creio, contudo, que este entendimento não tem razão de ser.
Na realidade, a conduta que, pela norma em crise, é qualificada como crime de deserção, pode, inclusivamente, perante as normas gerais reguladoras da cessação do contrato de trabalho, constituir também uma situação justificativa de despedimento, figura esta que, obviamente, vai afectar a segurança no emprego do marítimo que tal conduta praticou.
Nem por isso, todavia, ainda que se enveredasse pelo despedimento, posso considerar que este é obstaculado pela garantia constante do artigo 53º da Constituição.
Na verdade, no meu modo de ver, o que relevará, nesta sede, é que da qualificação do crime em causa e dos efeitos que dela advêm - a imposição de uma pena - , não resulta desde logo, directa e necessariamente, que a relação laboral entre o marítimo considerado autor desse crime e a entidade empregadora tenha de ser cessada por despedimento [cfr. cláusula 40ª, números 2 e 3 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Associação dos Armadores das Pescas Industriais e o Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Pescas e outros
(pesca do largo), publicado no nº 10 da 1ª Série do Boletim do Trabalho e Emprego, de 15 de Março de 1990, e artigos 83º e 84º, alínea a), do D.L. nº
64-A/89, de 23 de Fevereiro] pelo que, por tal motivo, não vislumbro imediata ofensa do citado normativo constitucional.
Por outro lado, não considero que o mesmo artº 132º conflitue com o direito de os trabalhadores constituirem comissões de trabalhadores, com os direitos destas comissões, com a liberdade sindical, com os direitos das associações sindicais e com o direito à greve. De onde não aceitar que se possa falar em que o normativo em apreciação vai brigar com os direitos, liberdades e garantias reconhecidos constitucionalmente aos trabalhadores, designadamente no Capítulo III do Título II da Lei Básica.
2.2. Segundo outros, a norma em análise não padeceria, toda ela, de inconstitucionalidade, mas sim enfermaria desse vício tão só num seu segmento ou, se se quiser, numa sua parte - justamente aquela em que a torna aplicável aos tripulantes de embarcações que não desempenham funções directamente ligadas ao seu funcionamento e manutenção e à sua equipagem -, sendo que o dito vício se caracterizaria pela violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da Lei Fundamental.
Entendo, todavia, que esta óptica não é de acompanhar.
Foi acima referido que são compreensíveis as razões que levaram o legislador a considerar o C.P.D.M.M. aplicável à marinha de pesca
(nomeadamente quanto se trate de pesca do largo ou em Alto Mar).
Resulta, para quem perfilhe a óptica agora tentada contra-argumentar, que, simplesmente, os motivos justificativos da normação constante daquele corpo de leis no que tange ao crime de deserção - necessidade de protecção de um interesse de índole pública, ideia essencialmente ligada à Marinha Mercante, necessidade de adequação às concretas especificidades do trabalho marítimo em geral e a bordo em particular, e necessidade de salvaguarda da viagem - não são, por si, transponíveis, de todo, para a indústria da pesca e para todos os marítimos que desempenham funções a bordo.
É que, dir-se-á, em primeiro lugar é duvidoso considerar a actividade industrial de pesca como tendo a natureza de serviço público; em segundo, se com o crime de deserção o C.P.D.M.M. quer assegurar a eficiência e segurança da viagem, então para um tal fim são irrelevantes os desempenhos de alguns marítimos ligados àquela actividade, desempenhos esses que, em si, não estão ligados, por qualquer forma, às mencionadas eficiência e segurança.
A partir daqui poder-se-ia concluir-se que se não via qualquer justificação, dados os interesses em presença - relações meramente existentes entre a entidade patronal e o trabalhador -, para a norma do art 132º considerar como desertor um marítimo com a categoria de «mestre de redes», categoria que nada teria a ver com a prossecução de uma actividade ligada a qualquer interesse público, ajuntando que, se no artº 436º do Código Penal, norma que visa salvaguardar o serviço público, o abandono de funções por parte do funcionário tem de ser acompanhado de impedimento ou interrupção daquele serviço, igualmente se terá de considerar que o abandono previsto na norma em apreciação teria de prejudicar a viagem do navio.
Começando por este último argumento, cumpre-me referir que o mesmo, para mim, não é relevante.
De facto, no artº 436º do Código Penal não constitui elemento objectivo do tipo o impedimento ou a interrupção concretizados de um serviço público ou, sequer, o perigo de ocorrência desses impedimento ou interrupção.
Estes, pelo contrário, são elementos subjectivos, inseridos na intenção do agente.
Daí que a similitude que se deveria exigir também para o artº
132º do C.P.D.M.M., não possa, em meu entender, colher neste particular.
No que tange à consideração segundo a qual a 'ratio' das normas constantes do C.P.D.M.M. e, logo, daquele artº 132º, residiria na defesa das concretas especificidades do trabalho marítimo em geral e a bordo em particular e na salvaguarda da viagem, tenho para mim que, em primeira banda, e como resulta da referência já acima feita, tendo em conta a realidade das coisas, não se pode falar em que haja uma substancial diferença entre as especificidades de vivência e do trabalho desempenhado a bordo das embarcações da Marinha Mercante e das embarcações pesqueiras, mormente aquelas que se encontram adstritas à pesca no Alto Mar.
Em segunda, que há que ponderar que, para a marinha de pesca, também valem as razões que levaram ao desenho do complexo normativo disciplinador e definidor de infracções constitutivo do C.P.D.M.M., tendo em conta a salvaguarda das necessidades da viagem.
Claro que, neste particular, não pode ser escamoteada uma perspectiva segundo a qual a desproporcionalidade implicada na norma em apreço residiria na gravidade das consequências que advêm por essa norma para um trabalhador que tenha uma categoria profissional no âmbito da qual não cabe o desempenho de funções directamente relacionado com o funcionamento e manutenção da embarcação e da sua equipagem.
A questão que, neste ponto, se coloca, reside, portanto, em saber se, efectivamente, na Marinha de Comércio do sector pesca - e tratando-se de pesca em Alto Mar ou do largo - é possível aceitar-se que da tripulação
(entendida esta como querendo significar equipagem - cfr. artº 4º do C.P.D.M.M., artº 2º do Regulamento da Inscrição Marítima, Matrícula e Lotações dos Navios da Marinha Mercante e da Pesca, aprovado pelo Decreto nº 45.969, de 15 de Outubro de 1964, artº 4º do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março, artigos 17º, 18º e 20º do Decreto-Lei nº 104/89, de 6 de Abril, e Parecer nº 110/49 da Procuradoria-Geral da República, no B.M.J., nº 18, 154 e segs.) façam parte marítimos que, a bordo, nunca irão desempenhar funções que se conexionem com as segurança e eficiência da viagem.
Pois bem:
Não se vá sem dizer que, de entre as categorias constitutivas do grupo «equipagem» dos marítimos, contam-se algumas que, verdadeiramente, só são comprensíveis se, na Marinha de Comércio, forem reportadas à pesca [cfr. artigos 19º, 20º e 21º do D.L. nº 104/89 e artigos 2º, alínea a) e § 1º, e 3º,
§§ 1º a 4º, ambos do Decreto nº 45.969 (quanto à pesca de cetáceos, cfr. o Decreto nº 39.657, de 19 de Maio de 1954, ressalvado, no que ao escalão de mestrança concerne, pelo nº 5 do artº 20º do D.L. nº 104/89), e cláusula 3ª e anexos à Convenção Colectiva de Trabalho já anteriormente citada].
Muito embora, em princípio, os tripulantes devam exercer as funções correspondentes à categoria para que foram contratados, o que é certo é que os mesmos podem desempenhar as funções correspondentes às categorias que já tenham possuído ou às que ainda não possuam, conquanto, neste último caso, detenham as habilitações necessárias para o efeito (cfr. artº 21º do D.L. nº
74/73; cfr., ainda, cláusula 4ª, nº 2, da aludida Convenção Colectiva).
De facto, pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 74//73, diploma aprovador do «Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho do Pessoal da Marinha de Comércio», que com ele se visou consagrar o 'princípio da polivalência das funções a bordo, sem que daí advenha prejuízo monetário para o trabalhador'.
Significa isto, consequentemente, que, mesmo em relação a um marítimo da Marinha de Comércio do sector pescas que detenha uma categoria do grupo «equipagem» no conteúdo funcional da qual normalmente não cabe o desempenho de funções que directamente se liguem ao funcionamento e manutenção do navio, ainda assim é perfeitamente possível que, no decorrer da viagem, a ele sejam cometidas funções que se vão ligar àqueles funcionamento e manutenção.
Ora, a ser assim, parece-me justificado que, relativamente a esse marítimo, sejam aplicáveis, nos mesmos moldes, as regras de disciplina e definidoras de ilícitos aplicáveis aos marítimos cujas categorias têm como conteúdo funcional directo a manutenção e funcionamento da embarcação.
É que, para um e para outro caso, não existe uma substancial diferença de situações que aconselhe um tratamento diferenciado.
A isto acresce que, em verdade, a categoria profissional detida 'in casu' pelo arguido não pode deixar de considerar-se como revestindo de uma dada essencialidade para as funções ou para os objectivos que presidem à viagem de um navio de pesca, vista a actividade que por este é prosseguida.
2.2.1. Aqui chegado, é ocasião de incidir a atenção para a resposta a conferir à questão de saber se a qualificação como crime de deserção da conduta do marítimo que injustificadamente falta ao embarque, é algo que fere o princípio da igualdade contido no artigo 13º da Constituição, tendo em conta que, tocantemente aos trabalhadores em geral, as faltas não justificadas ao trabalho, quer as directamente determinantes de prejuízos ou riscos graves para a empresa, quer as que, não acarretando tal consequência, atinjam um determinado número de dias, não são qualificadas como infracção criminal (salvo o que se consagra no já mencionado artº 436º do Código Penal relativamente aos funcionários - cujo conceito abrange o que se encontra disposto no artº 437º do mesmo diploma - , preceito cuja 'fattispecie', porém, comporta diversos elementos dos da norma em questão).
A resposta a esta questão é, para mim, muito simplesmente, a de que existe justificação bastante para o tratamento diferenciado dado pela norma 'sub specie' aos marítimos.
Efectivamente, os interesses subjacentes à viagem e à normal estada a bordo de um navio aconselham à tomada de medidas que, ainda que isso conduza à qualificação de determinadas condutas como constituindo infracções criminais, numa vivência societária em geral podem não ser exigidas. De facto, os riscos que comporta uma deslocação marítima prolongada e a premência da salvaguarda da segurança do conjunto de pessoas e bens que se encontram dentro do confinado espaço que constitui um navio, exigem que a esse mini-mundo seja conferido um tratamento especial que implique, inclusivamente, a adopção de regras de conduta muito estritas com vista a minimizar aqueles riscos e a assegurar devidamente a referida salvaguarda.
São, no meu entender, desta arte, diferentes as condições de desempenho de funções de um marítimo pertencente à «equipagem» do navio - e ao qual, independentemente da sua categoria, podem ser cometidas (e mesmo ser inerentes a) tarefas que se liguem com a sua manutenção e funcionamento - e aquelas a cargo dos trabalhadores em geral.
Se a falta injustificada destes ao trabalho, normalmente, não vai criar riscos, é perfeitamente figurável que a falta de um marítimo ao embarque de um navio já devidamente aparelhado possa criar futuros perigos e diminuir a segurança de pessoas e bens a bordo.
Como assinala Eusébio Filipe (O Direito do Trabalho Marítimo, edição da Direcção dos Serviços do Trabalho, Lisboa, 1972, 17 e segs.), 'as normas jurídicas que regulam o trabalho a bordo reflectem as constantes características do ambiente humano, social e técnico da vida e do trabalho que lhes servem de substrato, apresentando particularidades que as diferenciam, nitidamente, das outras normas que pautam actividades terrestres', não se existindo naquele labor um 'lugar de trabalho' ou uma entrada e saída do trabalhador a 'horas certas', pois que, contrariamente ao trabalho terrestre, em que '[h]á uma descontinuidade da ...vida profissional, social e privada' do trabalhador, a bordo '[h]á uma confusão de todos os tempos', sendo aí a vida de sociedade limitada. E, continua aquele autor, '[a]inda a bordo, e no mar, o marítimo está permanentemente no local de trabalho pois ainda que deixando a máquina, a ponte ou o convés, e descansando no seu camarote, continua ligado aos riscos do navio sendo obrigado, por ordem superior, a trabalhos...', como '[é] o caso da segurança do navio, da carga ou das pessoas correrem perigo, o caso do exercício de salva-vidas, encalhe e extinção de incêndio, a rendição de quartos e outros taxativos'.
Não posso olvidar, neste particular, que nem sequer é exigível que o navio deva atrasar a sua partida esperando pela substituição de alguém devidamente qualificado que deva substituir o marítimo faltoso, sabido como é que um tal atraso acarreta pesados encargos financeiros, desde logo para a empresa armadora, e prejuízos para a própria economia do País, que não deixa de estar interessado numa Marinha de Comércio do sector da pesca que eficientemente desempenhe as suas funções e objectivos.
De onde, mercê da diferenciação de situações rodeadoras do trabalho prestado pelos trabalhadores em geral e pelos marítimos embarcados da Marinha de Comércio em particular, a consideração segundo a qual existe fundamento bastante para, em relação aos segundos, se adoptarem regras específicas que confiram tratamento diferenciado, ao nível de consequências sancionatórias, para condutas de alguma sorte idênticas tomadas por uns e outros
(neste ponto não é de passar em claro que a Organização Internacional do Trabalho, ponderando as condições de vida e de trabalho no mar, promoveu a aprovação de um Código Internacional dos Marítimos onde, além dos mais, se define o carácter especial do contrato de trabalho dos marítimos).
Os interesses que deixei expostos e que, como resulta, não se confinam a um mero relacionamento entre a entidade empregadora e o trabalhador, podem, pois, a meu ver, no caso, considerar-se coincidentes com o próprio interesse público na salvaguarda de pessoas e bens a bordo e no assegurar dos objectivos e funções cometidos à viagem do navio de pesca.
E, por isso, também me não repugna minimamente que determinadas condutas que, potencialmente, podem afectar aquele interesse, sejam passíveis de uma censura ética de tal relevo que conduza a considerar como infracção criminal a falta injustificada ao embarque de um navio da Marinha de Comércio do sector pescas devidamente aparelhado.
Termos em que, sequentemente, no meu entendimento, não considero violador do artigo 13º da Constituição a norma constante do artº 132º do C.P.D.M.M., a qual, igualmente, não se me revela como estatuindo uma consequência desproporcionada relativamente aos interesses que são ofendidos pela conduta tipificada nessa norma.
Estas considerações, servirão, no meu entender, para pôr em crise a argumentação aduzida na tese que fez vencimento e que adiante aflorarei.
2.3. Relativamente a quem adopte a postura de harmonia com a qual a norma do artº 133º do C.P.D.M.M. se deveria considerar inconstitucional mas não tão só na parte em se aplicasse aos marítimos cujas funções a bordo se não ligassem directamente ao funcionamento e manutenção do navio e sua equipagem
(pois que do no nº 1 da cláusula 41ª do Contrato Colectivo de Trabalho em vigor para o sector, ao se referir que qualquer tripulante tem direito a rescindir o contrato individual de trabalho sem prejuízo do cumprimento de toda a campanha do navio, se retiraria a inexistência de qualquer condicionalismo derivado das funções exercidas a bordo), direi que não concebo como se afigurará líquido que, a partir de disposições constantes de uma convenção colectiva de trabalho, se aduzam argumentos que conduzam à consideração de que uma norma constante de um diploma legal está eivada de inconstitucionalidade.
Mas, como quer que seja, o que é certo é que - e isto é, para mim, o que verdadeiramente releva - os campo de incidência e situação pretendidos regular pelo nº 1 da cláusula 41ª do C.C.T. a que já se fez referência (rescisão do contrato individual de trabalho por iniciativa do trabalhador) são totalmente diversos dos da norma do artº 132º do C.P.D.M.M., pelo que a convocação daquela cláusula para fundamentar o entendimento segundo o qual esta norma é, toda ela, violadora da Constituição, não tem razão de ser.
3. Igualmente me não convence uma postura segundo a qual se poderia divisar, na norma em apreço, uma certa forma de coacção ao trabalho e, assim, o estabelecimento de trabalho obrigatório.
De facto, a rescisão do contrato de trabalho do marítimo é sempre possível, mesmo que efectuada em momentos antes do embarque, pelo que, se o mesmo não desejar efectuar, por quaisquer motivos, quer as tarefas inerentes ao trabalho que irá desempenhar a bordo (os correspondentes à sua categoria ou aqueles a quem, mercê do que acima ficou dito, lhe possam ser impostos), ou ainda não desejar, por motivos pessoais ou outros, tomar o seu lugar a bordo, poderá, fazê-lo licitamente usando a figura da rescisão (ainda que tal possa implicar outras consequências, verbi gratia, as decorrentes de um despedimento por iniciativa do trabalhador sem ter, previamente, avisado a sua entidade patronal).
A norma sob sindicância, na minha perspectiva, visa uma outra realidade - que já atrás tentei explicitar - não tendo, para mim, de todo em todo, a intenção de consagrar, ainda que de modo indirecto, uma forma de trabalho obrigatório.
4. Por último, convém deixar assinalado que, para mim, não se afigura, seja porque motivo for, que a norma sub iudicio constitua uma consagração de um ilícito sem justa medida ou, se se quiser, sem possuir uma proporcionalidade em sentido estrito.
Deriva já do que atrás arrazoei que o intuito da normação em análise era o de assegurar as condições de segurança, manutenção e viagem do navio e de preservar a actividade por ele prosseguida, não esquecendo o reflexo que esta tem na economia nacional.
Por isso, e como facilmente decorrerá para quem assuma, como assumo, este posicionamento, não se poderá desembocar na conclusão, a que chega o Acórdão a que esta declaração se encontra apendiculada, de que há uma desproporção estrita entre a sanção prevista e a defesa dos interesses que foram a base da estatuição.
A «ponderação de interesse» leva, no meu modo de ver, a que se não conclua inquestionavelmente que, in casu, as suas circunstâncias não aconselhariam ao estabelecimento de uma sanção de natureza criminal, antes devendo o sancionamento da conduta de um marítimo postado na situação do recorrido ser obtido por um outro qualquer modo que não por recurso a uma pena criminal, após, obviamente, a criação da respectiva fattispecie penal.
Ao fazer o raciocínio que fez, o Acórdão entrou num trilho demasiado perigoso, qual seja o de entrar em censura num campo tão delicado como
é o da liberdade de conformação do legislador tocantemente à consideração de condutas como criminosas, arvorando-se em legítimo intérprete da consciência
ética da sociedade quanto à questão de saber se essas condutas têm, ou não, uma ressonância tal que permita ao Tribunal, no futuro, caso a caso, decidir se uma norma previsora de um crime deva deixar de o ser, fulminando-a com um juízo de inconstitucio- nalidade baseado numa falta daquela ressonância, segundo critérios que, ao fim e ao resto, são só seus e não, verdadeiramente, expressão da colectividade que serve.
Por tudo o que vim de expôr, votei no sentido de se conceder provimento ao recurso, julgando não desconforme às normas ou princípios ínsitos na Lei Fundamental a disposição constante do artº 132º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante na parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio, o deixe, sem motivo justificado, partir para o mar, sem embarcar, e mesmo se esse tripulante, mercê da categoria profissional que tenha, não esteja, quanto a essa categoria, directamente ligado ao desempenho de funções ligadas com a manutenção, segurança e equipagem da embarcação.
(Bravo Serra)