Imprimir acórdão
Processo n.º 621/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi acusado no processo n.º 362/08.1JAAVR, da 1.ª Secção, do DIAP de Aveiro, da prática de um crime de tráfico de influência, p.p. pelo artigo 335.º, n.º 1, a), do Código Penal.
O arguido requereu a abertura de instrução, na qual, além do mais, no seu ponto III, arguiu a nulidade das decisões do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de destruição de registos de interceções telefónicas, proferidas em 3 de setembro de 2009, 27 de novembro de 2009, 26 de janeiro de 2010 e 18 de junho de 2010 nos autos de “extensão procedimental”, anexos ao presente processo, dos respetivos atos de destruição e, subsequentemente, da acusação contra si formulada.
O Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, por decisão proferida em 3 de janeiro de 2011, determinou a remessa ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido A., para apreciação da arguição de nulidades constante do seu ponto III.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho proferido em 27 de janeiro de 2011, decidiu não conhecer dessa arguição de nulidades.
O arguido interpôs recurso desta decisão para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto nos artigos 11.º, n.º 4, b), e 399.º, do Código de Processo Penal.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho proferido em 14 de março de 2011, não admitiu este recurso.
O arguido interpôs então recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
“I– CRONOLOGIA
1º - No requerimento de abertura de instrução (RAI), apresentado em dezembro de 2010, o recorrente arguiu, na parte III dessa peça processual, as seguintes nulidades:
i) a nulidade da acusação, porque se sustenta em escutas de conversas telefónicas nulas, uma vez que são nulas as interceções efetuadas ao ora recorrente por terem, entretanto, sido destruídos produtos dessa natureza contra a sua vontade expressa, os quais foram julgados necessários para o exercício da sua defesa (cfr. nºs 121 a 123 do RAI).
ii) a nulidade dos atos decorrentes dos despachos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 03/09/2009, 27/11/2009, 26/01/2010 e 18/06/2010, que produziram efeitos neste processo, porque não é admissível que o Presidente do STJ possa determinar num processo autónomo de outro – como aqui acontecia – a destruição de escutas telefónicas que foram ordenadas e validadas nesse outro processo pelo juiz competente (cfr. nº 58 a 63 do RAI).
iii) a nulidade desses despachos por incompetência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo admitido a natureza que, por ele, foi atribuída ao que denominou de “extensão procedimental” (cf. nºs 64 a 76, 80 a 91 e 98 do RAI).
iv) a nulidade decorrente de a destruição de tais escutas/interceções ter sido ordenada sem ter sido dado aos arguidos a possibilidade de se pronunciarem sobre esses atos, mesmo em relação ao recorrente que a isso expressamente se havia oposto – cfr. nºs 101 a 115 do RAI).
v) mesmo que assim se não entendesse, a nulidade de tais despachos por flagrante violação do preceito legal em que se fundam (art. 188º nº 6 do CPP – cfr. nºs 116 a 119 do RAI).
2º O Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal remeteu ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça o RAI do recorrente, para que este apreciasse as nulidades suscitadas na parte III de tal RAI, o que fez na esteira de promoção efetuada nesse sentido pelo Ministério Público.
3º Foi neste contexto que foi proferido, a 27 de janeiro de 2011, o despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que não conhece das questões suscitadas pelo arguido nessa parte III do RAI.
4º Tal despacho, pelo qual se decide não conhecer as nulidades suscitadas pelo ora Recorrente no ponto III do RAI, funda-se no seguinte:
• por um lado, na circunstância de as comunicações que foram objeto dos despachos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não terem sido intercetadas de alvo que respeitasse ao arguido ora recorrente, uma vez que este não teve intervenção nessas comunicações, as quais, por isso, ser-lhe-iam completamente estranhas, tanto objetiva como subjetivamente [pelo que o Recorrente não teria legitimidade e interesse em agir quanto a tal arguição de nulidade];
• por outro lado, no facto de tais questões já terem sido decididas por despacho do Presidente do STJ, de 15 de abril de 2010, transitado em julgado, o qual já teria julgado a falta de legitimidade e de interesse de agir do Recorrente.
5º Foi desse despacho que foi interposto recurso pelo arguido, que, na sua parte preambular – anterior à motivação do recurso –, dizia o seguinte:
A., arguido nos autos à margem indicados, notificado do despacho de V. Exa de 27 de janeiro de 2011 – que não conheceu a arguição de nulidades suscitadas na parte III do seu requerimento de abertura de instrução –, o qual lhe foi notificado por determinação constante do despacho do Senhor Juiz de Instrução Criminal de 28 de janeiro de 2011, nos termos de fax remetido a 31 de janeiro de 2011, não se conformando, dele vem interpor recurso para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 11º nº 4-b) e 399º do C. P. P..
O recurso deve subir em separado, imediatamente e com efeito suspensivo, nos termos dos arts. 406º nº 2, 407º nº 1 e 408º nº 3 do C.P.P..
Desde já vai arguida a inconstitucionalidade do eventual entendimento normativo dado aos arts. 11º e 399º do C.P.P., devidamente conjugados, no sentido de que não há recurso para a Secção Criminal do STJ do despacho proferido pelo Presidente do STJ enquanto de juiz de instrução – no quadro das competências previstas no art. 11º nº 2-b) do C.P.P. –, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso que o art. 32º nº 1 da CRP consagra.
Vai também desde já arguida a inconstitucionalidade do eventual entendimento normativo dado ao art. 407º nº 1 do C.P.P., no sentido de que o recurso de despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido ao abrigo do art. 11º nº 2-b) do C.P.P., na pendência de instrução na qual é suscitada a questão do acesso do arguido ao teor de escutas telefónicas para o efeito do exercício dos direitos consignados no art. 188º nº 8 do C.P.P., só sobe a final, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso que o art. 32º nº 1 da CRP consagra, bem como do direito a obter decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, tal como está previsto no art. 20º nº 4 da CRP e no art. 6º da CEDH
6º E foi esse recurso que não foi admitido pelo despacho ora recorrido, com o fundamento em que o arguido não teria legitimidade e interesse em agir, pelo que o recurso seria inadmissível, com fundamento no art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P..
7º Nesse mesmo despacho, que não admitiu o recurso com o fundamento supra assinalado, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça acrescentou ainda “como esclarecimento e não como fundamento decisório” que não haveria recurso do despacho por si proferido no âmbito da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P..
II- DA INCONSTITUCIONALIDADE
8º Julga o Recorrente que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça inverteu os dados do problema, já que a questão da legitimidade só se coloca depois de se decidir se a decisão é ou não suscetível de recurso.
9º Essa inversão lógica cria um problema ao Recorrente – o que, certamente, só involuntariamente terá sido desejado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça –, já que fora atempadamente suscitada a questão da inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., no sentido da irrecorribilidade dos despachos preferidos ao abrigo das competências previstas no nº 2-b) dessa norma legal, mas não a inconstitucionalidade do entendimento normativo que consta do fundamento decisório da não admissão do recurso.
10º Contudo, é jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que não tem de ser suscitada previamente uma questão de inconstitucionalidade com a qual o Recorrente não devesse contar.
11º É manifestamente o caso.
12º O entendimento normativo, que implicitamente foi dado, no despacho recorrido, ao art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P. – no sentido em que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir é inconstitucional, com fundamento em violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da C.R.P., bem como do direito a um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP.
13º O arguido não podia prever que tão insólito entendimento iria ser adotado.
14º O arguido já sabia que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça entendia que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no que diz respeito à arguição das nulidades em causa.
15º Mas era insuscetível de poder ser previsto que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça também tivesse o entendimento de que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no recurso de despacho que indeferira a arguição de nulidades com esse mesmo pressuposto!!
16º É que, ressalvado o devido respeito, a ser assim, estaria constituído um círculo vicioso de que nunca nenhum sujeito processual conseguiria sair.
17º O arguido nunca viu tal entendimento normativo em lado nenhum, nem na doutrina, nem na jurisprudência publicada nos tribunais superiores.
18º Não podia contar com ele.
19º Assim sendo, o arguido não podia ter suscitado tal questão de inconstitucionalidade em momento anterior, razão pela qual, neste segmento, não pode ser dado cumprimento ao que está previsto na parte final do nº 2 do art. 75º-A da CRP.
20º Pelo exposto, deve ser admitido o recurso para discutir a questão da inconstitucionalidade acima assinalada no art. 12º.
21º Mas o presente recurso deve também abranger a parte do despacho recorrido – apesar de nele se dizer que, nesse segmento, não é fundamento decisório – que adota o entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do C.P.P., no sentido em que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P., por violação ao direito ao recurso previsto pelo art. 32º nº 1 da CRP..
22º Essa inconstitucionalidade já foi arguida no próprio requerimento de interposição do recurso, na parte acima transcrita no nº 5 deste requerimento, quando se previu essa possibilidade.
23º Ademais, deve ainda dizer-se que, na ótica do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não há reclamação do despacho ora recorrido de não admissão de recurso, sendo certo que, na sua ótica, ninguém pode sequer apreciar se há ou não lugar a essa reclamação, a não ser ele próprio, que não a admite, nos termos já lavrados em despacho de 24 de fevereiro de 2011 (renovados na parte ii) do despacho ora recorrido), a propósito de outro incidente surgido nestes mesmo autos.
24º Por isso mesmo, não há recurso ordinário possível do despacho ora recorrido.”
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“A) O despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2011, que não recebeu o recurso do seu despacho de 27 de janeiro de 2001 – o qual não conheceu das nulidades suscitadas pelo arguido na parte III do RAI – para a Secção Criminal do STJ, foi objeto do presente recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez através de requerimento remetido por fax a 25 de março de 2011, tendo o respetivo original dado entrada a 28 de março, onde estão suscitadas duas questões de constitucionalidade, a saber:
• o entendimento normativo – implicitamente adotado, no despacho recorrido, quanto ao art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P. – no sentido em que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir –, por violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da C.R.P., bem como do princípio de um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP.
• o entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do C.P.P., no sentido em que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P., por violação ao direito ao recurso previsto pelo art. 32º nº 1 da CRP.
B) Em primeiro lugar, está em causa a recusa de admissão do recurso interposto pelo ora Recorrente do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de janeiro de 2011, que não conheceu a arguição de nulidades suscitadas na parte III do RAI, a qual se funda na sua alegada falta de legitimidade e de interesse em agir, o que se inscreveria no âmbito da previsão do art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P..
C) Compreende-se a argumentação do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – embora dela se discorde – quando sustenta que o arguido, ora Recorrente, não tem legitimidade e interesse em agir quanto à invocada nulidade dos despachos postos em crise na parte III do RAI.
Todavia, já é completamente incompreensível – não tendo sustentação intelectual possível – a tese de que, num recurso, também não tem legitimidade e interesse em agir a parte que põe em causa um despacho judicial que lhe é desfavorável, exatamente porque a julgou – na apreciação da arguição de uma nulidade – sem legitimidade e interesse em agir.
A ser assim, estaria criado um verdadeiro círculo vicioso de que nunca se conseguiria sair.
D) O entendimento normativo ora em apreciação viola manifestamente o direito ao recurso e o princípio de um processo equitativo.
Viola o direito ao recurso, porque, a ter vencimento, impediria que, daqui para a frente, os despachos judiciais que indeferem uma pretensão, por alegada falta de legitimidade e interesse em agir, pudessem ser objeto de recurso, o que seria verdadeiramente irrazoável.
Viola o principio do processo equitativo, porque, estabelecendo um círculo vicioso que impede a reapreciação da legitimidade e do interesse em agir, criaria uma regra desproporcionada e até arbitrária que poria em causa a lógica que subjaz ao princípio consagrado de que o interesse em agir no recurso tem a ver com o facto da decisão recorrida ser desfavorável à parte que dela pretende recorrer.
E) Pelo exposto, deve o Tribunal Constitucional declarar inconstitucional o entendimento normativo – implicitamente adotado, no despacho recorrido, quanto ao art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.PP. – no sentido em que, na interposição de um recurso, não tem legitimidade e interesse em agir quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir, por violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da C.R.P., bem como do princípio de um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP.
F) A segunda questão colocada – que encerra o tema verdadeiramente relevante, que a anterior só pretendeu evitar – tem a ver com o problema de se saber se o despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da competência fixada no art. 11º nº 2-b) do C.P.P, é ou não suscetível de recurso.
G) Nesse segmento, o tema do presente recurso circunscreve-se à questão de se saber se o entendimento normativo adotado – quanto ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do mesmo código, no sentido em que não há recurso para a Secção Criminal do STJ do despacho proferido pelo Presidente do STJ, enquanto juiz de instrução, no quadro das competências previstas no art. 11º nº 2-b) do C.P.P. – viola ou não a Constituição.
H) A questão está então em saber se a ausência de duplo grau de jurisdição, que o entendimento normativo adotado implica, viola ou não – de forma desproporcionada – um direito fundamental.
E, salvo melhor opinião, a resposta só pode ser no sentido afirmativo.
I) Ninguém porá em crise que o direito de defesa do arguido em processo penal é um direito fundamental, como está consagrado no art. 32º nº 1 da CRP e está plasmado em todas as convenções internacionais, designadamente na CEDH, por que se regem as nações.
J) E também ninguém discutirá que esse direito fundamental compreende tudo aquilo que seja relevante – guardada a devida proporcionalidade – para o exercício da defesa do arguido.
K) O tema será então apurar se a questão da nulidade do despacho que manda destruir os produtos de escutas telefónicas autorizadas por um juiz – cuja avaliação o arguido considera relevante para o exercício da sua defesa, maxime para a demonstração da sua inocência – integra ou não o núcleo do direito fundamental da defesa.
L) Ora, a destruição de meios de prova – de que a defesa não abre mão para o exercício do seu direito – é manifestamente um elemento que contende com o núcleo essencial do direito de defesa, como, de resto, tem sido reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
M) Vistas as coisas sobre outro ângulo, também não se afigura excessiva a garantia de um duplo grau de jurisdição para a apreciação da validade da destruição dos meios de prova de que defesa não prescinde; pelo contrário, desproporcionado seria criar uma instância sem recurso para os atos do Presidente do STJ quando atua tão somente como juiz de instrução.
N) Ademais, o despacho do Presidente do STJ objeto de recurso não tem nada de interlocutório, provisório ou preliminar, uma vez que o seu trânsito era julgado – a ocorrer – configuraria a consolidação de uma situação processual insuscetível de ser alterada, altamente lesiva dos direitos do arguido.
O) Pelo exposto, deve o Tribunal Constitucional declarar inconstitucional o entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do C.P.P., no sentido em que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P., por violação ao direito ao recurso previsto pelo art. 32º nº 1 da CRP.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado precedente, declarando-se os dois vícios de inconstitucionalidade que vão assinalados, com as legais consequências.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
“1.ª) Primeira questão de inconstitucionalidade: a “interpretação normativa”, que a sustenta, tem natureza de “ato jurisdicional”, e não de “ato normativo”, pelo que a mesma questão de constitucionalidade não deverá ser conhecida por este Tribunal Constitucional;
2.ª) Segunda questão de inconstitucionalidade: a “interpretação normativa” em causa não afronta o âmbito material de proteção garantido pelo direito do arguido ao recurso, em processo criminal, consagrado na lei constitucional (CRP, art. 32.º, n.º1, in fine).
3.ª) Idem: o regime legal em apreço é de reputar conforme ao princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, e, bem assim, não limita a “extensão e alcance do conteúdo essencial” do direito do arguido ao recurso, como garantia de defesa em sede do processo criminal (CRP, arts. 18.º, n.º 2 e 3, e 32.º, n.º 1 e CPP, arts. 11.º, n.º 2, al. b), e 399.º).
Face ao exposto, é de negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o despacho recorrido, assim se fazendo justiça”.
*
Fundamentação
1. O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, pediu a fiscalização da constitucionalidade dos seguintes critérios normativos:
- do artigo 401.º, n.º 1, b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação de que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir;
- do artigo 11.º, conjugado com o artigo 399.º, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não há recurso de despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, b), do mesmo diploma.
Independentemente do modo como a decisão recorrida fez uso destes critérios normativos como seus fundamentos, uma vez que a legitimidade para recorrer de uma decisão judicial pressupõe a sua recorribilidade, seguindo uma ordem lógica, cumpre apreciar em primeiro lugar a constitucionalidade da última das normas acima mencionadas.
2. A decisão recorrida não admitiu um recurso interposto de um despacho que não conheceu da arguição por um arguido, no requerimento para abertura da instrução, da nulidade das decisões do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de destruição de registos de interceções telefónicas, proferidas ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, dos respetivos atos de destruição e, subsequentemente, da acusação contra aquele formulada, com o fundamento de que as decisões proferidas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da referida competência, não eram recorríveis.
Contudo, incluindo-se nos poderes conferidos ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça previstos no artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, a autorização para a interceção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro e determinar a respetiva destruição, nos termos do artigo 187.º a 190.º, do mesmo diploma, e reportando-se o despacho recorrido apenas à competência para apreciar a arguição, no requerimento para abertura da instrução, da nulidade da ordem de destruição dos registos de interceções telefónicas, deve o objeto do presente recurso cingir-se à irrecorribilidade de decisões proferidas no âmbito dessa competência específica.
Assim a norma a fiscalizar é a constante do artigo 11.º, conjugado com o artigo 399.º, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não há recurso de despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, b), do mesmo diploma, que não atenda a arguição, no requerimento para abertura da instrução, da nulidade da ordem de destruição dos registos de interceções telefónicas, emitida por aquele Magistrado.
3. Foi a Revisão do Código de Processo Penal de 2007 que, ao alterar a redação do artigo 11.º deste diploma, atribuiu a competência ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para “autorizar a interceção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro e determinar a respetiva destruição, nos termos dos artigos 187.º a 190.º” (alínea b), do n.º 2).
Anteriormente a esta inovação, o Código de Processo Penal dispunha de uma norma em que cometia, sem exceção, a competência para praticar os atos jurisdicionais nos inquéritos em que estivesse em investigação o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro, por crimes praticados no exercício das suas funções, o que incluía a autorização para intercetar, gravar e transcrever as conversações ou comunicações em que interviessem estas altas figuras do Estado, ou determinar a destruição dos respetivos registos, às Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 11.º, n.º 3, g), do Código de Processo Penal, com a redação introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto).
A tentativa de previsão de um regime específico, em matéria de competência jurisdicional, no domínio da interceção de conversações ou comunicações em que interviessem o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, iniciou-se com a aprovação, em 24 de junho de 2004, pelo Conselho de Ministros do XV Governo Constitucional, de uma Proposta de Lei de Revisão do Código de Processo Penal, na qual essa competência era atribuída às Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Como esta iniciativa não teve seguimento, devido à queda do Governo, o XVI Governo Constitucional retomou o propósito de introduzir alterações ao Código de Processo Penal, apresentando à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 150/X, em 28 de outubro de 2004, a qual previa agora a atribuição dessa competência específica ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Esta opção foi assim justificada na respetiva exposição de motivos:
“Adicionalmente atribui-se ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a competência para ordenar ou autorizar a interceção, gravação ou registo de conversações ou comunicações efetuadas pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República ou pelo Primeiro-Ministro. Trata-se de uma solução que se justifica pela posição constitucional cimeira destes titulares de cargos políticos e pelo interesse público cuja prossecução superiormente lhes está cometida”.
Esta proposta também viria a caducar com o fim antecipado da legislatura.
O Conselho de Ministros do XVII Governo Constitucional, pela Resolução n.º 138/2005, de 17 de agosto, criou a Unidade de Missão para a Reforma Penal que, em 26 de julho de 2006, entregou ao Ministro da Justiça um Anteprojeto de Revisão do Código de Processo Penal, no qual não se previa a criação de qualquer foro específico nesta matéria, tendo essa possibilidade sido equacionada e afastada nas reuniões daquela comissão de 17 de março e 10 de abril de 2006 (vide atas da UMRP, n.º 17 e 26).
Contudo, na sequência da assinatura, em 8 de setembro de 2006, pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata do “Acordo Político-Parlamentar para a Reforma da Justiça”, que integrava a previsão de uma alteração legislativa de conteúdo idêntico à constante da Proposta de Lei n.º 150/X, acima referida, o XVII Governo Constitucional viria a incluir tal medida na Proposta de Lei n.º 109/X, apresentada à Assembleia da República em 20 de dezembro de 2006.
A atribuição da referida competência ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça também constava do Projeto de Lei n.º 237/X, apresentado pelo Partido Social Democrata em 21 de março de 2006, enquanto o Projeto de Lei n.º 368/X, apresentado pelo Partido Popular em 7 de março de 2007, mantinha a solução da Proposta de Lei do XV Governo Constitucional, dirigindo essa competência às Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Na sequência deste atribulado processo legislativo foi aprovada a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que na alínea b), do n.º 2, do artigo 11.º, do Código de Processo Penal, atribuiu a referida competência específica ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
A definição do âmbito de aplicação desta nova competência tem sido objeto de alguma controvérsia doutrinal.
Para alguns autores, a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, além de precisar que a competência para praticar os atos jurisdicionais nos inquéritos em que estivesse em investigação o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro, por crimes praticados no exercício das suas funções, cabia a um juiz das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (n.º 7, do artigo 11.º), ao cometer ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a nova competência acima mencionada, retirou aos Juízes das Secções Criminais desse Tribunal o poder de autorizar a interceção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que interviessem aqueles titulares de órgãos de soberania e determinar a respetiva destruição, nos inquéritos em que estivesse em investigação a prática de crimes no exercício das suas funções. Nesta perspetiva, com esta alteração, nestes inquéritos, enquanto a generalidade dos atos jurisdicionais é da competência de um Juiz Conselheiro das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, a quem aleatoriamente é distribuído o processo, nas matérias relacionadas com escutas telefónicas e meios legalmente equiparados, nos termos do artigo 189.º, do Código de Processo Penal, essa competência passou a pertencer ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o qual passou também a intervir nesses atos, em inquéritos de investigação da prática de crimes por aqueles dignitários fora do exercício das suas funções (vide, neste sentido, COSTA ANDRADE, em “Escutas telefónicas, Conhecimentos Fortuitos e Primeiro-Ministro”, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 139.º, n.º 3962, pág. 275-276, e o “Código de Processo Penal. Comentários e notas práticas”, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 43, da ed. de 2009, da Coimbra Editora). Segundo outras opiniões, a previsão competencial contida na alínea b), do n.º 2, do artigo 11.º, do Código de Processo Penal, apenas se aplica quando se encontra em investigação um crime praticado por aqueles titulares, fora do exercício das suas funções, mantendo os juízes das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça a competência nesse domínio, nos inquéritos em que esteja em investigação a prática de crimes no exercício de funções (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 79, da 4.ª ed., da Universidade Católica, e ANDRÉ LAMAS LEITE, em “Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 4, pág. 623).
Há também quem sustente que a competência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria se estende à admissibilidade da valoração ou utilização dos resultados de interceções em que um dos referidos dignitários tenha mantido conversações ou comunicações com suspeito ou arguido alvo de escuta, nomeadamente quando possa estar em causa a disciplina dos “conhecimentos fortuitos” (vide, neste sentido, COSTA ANDRADE, no est. cit., pág. 284-289, SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, em “Código de Processo Penal anotado”, vol. I, pág. 1174, 3.ª ed., do Rei dos Livros, ANDRÉ LAMAS LEITE, no est. cit., pág. 623-624, VINÍCIO RIBEIRO, em “Código de Processo Penal. Notas e comentários”, pág. 46-47, da 2.ª ed., da Coimbra Editora, e o “Código de Processo Penal. Comentários e notas práticas”, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 43), contrariando a opinião de quem defende que a nova competência atribuída ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não abrange o controlo destas intervenções acidentais (vide CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, em “Escutas telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e os novos problemas”, na Revista do CEJ, n.º 9 (especial), Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, pág. 280-281), e a posição mais radical segundo a qual a intervenção incidental de uma dessas figuras de Estado, em escutas ordenadas por um comum juiz de instrução conduz à nulidade absoluta dessas escutas (vide GERMANO MARQUES DA SILVA, em “Escutas telefónicas…em busca de uma interpretação jurídica”, no Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 60/61, Nov.-Dez. de 2009).
Contudo, o critério normativo, cuja constitucionalidade se encontra aqui em discussão, é alheio a estas controvérsias em volta do âmbito de aplicação do disposto no artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, respeitando apenas à recorribilidade das decisões proferidas nesse âmbito.
4. Tendo sido ordenada por sucessivos despachos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a destruição do registo de interceções a conversações telefónicas mantidas entre um alvo de escutas neste processo e o Primeiro-Ministro, face à arguição de nulidade desses despachos, no requerimento para abertura de instrução deduzido pelo coarguido Recorrente, entendeu-se que cabia àquele Magistrado, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, apreciar essa arguição.
Tendo o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferido decisão em que não atendeu a invocação das referidas nulidades, foi interposto recurso desse despacho para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido, com o fundamento, além do mais, que esse despacho era irrecorrível.
Não compete a este Tribunal pronunciar-se sobre a correção deste entendimento face às regras infraconstitucionais, mas apenas verificar se os critérios normativos em que o mesmo se apoiou violam parâmetros constitucionais.
5. Defende o Recorrente que, relativamente à interpretação de que um despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da competência que lhe passou a ser atribuída pelo artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, é irrecorrível, a mesma constitui uma violação ao direito ao recurso, enquanto garantia de defesa em processo penal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Apesar do direito ao recurso em processo penal só ter passado a constar expressamente do artigo 32.º, da Constituição, como uma das garantias de defesa constitucionalmente exigidas, com a Revisão Constitucional de 1997, tal integração no complexo dos meios defensivos essenciais à proteção do arguido em processo penal foi desde sempre efetuada pela doutrina e pela jurisprudência.
A essencialidade deste direito tem diferentes justificações.
Em primeiro lugar, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal permite a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
Além disso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.
Por outro lado, também assegura a faculdade do arguido expor perante um tribunal superior os motivos que sustentam a posição jurídico-processual da defesa perante a decisão impugnada. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido não só reiterar, mas também apresentar novos argumentos que abalem os fundamentos da decisão recorrida, de modo a que a nova decisão possa ter em consideração toda a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam na garantia de um duplo grau de jurisdição.
Mas, conforme este Tribunal tem afirmado reiteradamente, a obrigatoriedade de assegurar esta garantia, não implica necessariamente a consagração na lei ordinária da recorribilidade de toda e qualquer decisão proferida em processo penal, sendo admissível que essa faculdade seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos atos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial desse direito de defesa do arguido. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional, o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), pelo que o legislador, para além das matérias em que não dispõe de liberdade para excluir a hipótese de recurso, pode sacrificar este direito desde que outros princípios orientadores do processo penal, designadamente a celeridade processual, o justifiquem.
O Tribunal Constitucional tem incluído no núcleo essencial deste direito de defesa as sentenças condenatórias e outras decisões que tenham como efeito a privação ou restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Com a salvaguarda do direito ao recurso nestas matérias pretende-se garantir ao arguido a possibilidade de requerer que o sacrifício dos seus direitos fundamentais, em prol das necessidades de eficácia da justiça criminal, resulte duma decisão jurisdicional com um grau de ponderação reforçado, obtido através duma segunda apreciação por um tribunal superior. O estabelecimento desta proteção aos direitos fundamentais faz aliás todo o sentido porque, ao contrário de outros ordenamentos constitucionais estrangeiros, em que existem específicos recursos de defesa destes direitos constitucionais contra decisões judiciais («o recurso de amparo»), esta figura não foi acolhida no nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade.
Foi esta posição da jurisprudência do Tribunal Constitucional que a Revisão de 1997 procurou sufragar com a menção ao direito ao recurso entre as garantias de defesa que devem ser asseguradas ao arguido no processo penal.
6. No presente recurso questiona-se a constitucionalidade da interpretação que considera irrecorrível um despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal, que não atenda a arguição, no requerimento para abertura da instrução, da nulidade da ordem de destruição dos registos de interceções telefónicas, emitida por aquele Magistrado.
O Recorrente alega, por um lado, que a destruição de registos de interceções telefónicas realizadas no âmbito do inquérito é manifestamente um elemento que contende com o núcleo essencial do direito de defesa dos arguidos, pelo que, estando em causa a afetação de um direito fundamental, é obrigatória a sua recorribilidade, e, subsidiariamente, que a solução restritiva que não admite a garantia de um duplo grau de jurisdição para a apreciação da decisão sobre a validade da destruição dos meios de prova de que a defesa não prescinde é desproporcionada.
O Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.º 216/99 e 387/99 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt) já decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, com referência ao artigo 308.º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de estender a irrecorribilidade do despacho de pronúncia à decisão dele constante sobre questões prévias ou incidentais, considerando que as razões que permitiam ao legislador optar pela não admissão de recurso do despacho de pronúncia abrangiam igualmente a decisão daquelas questões. E nestes casos estavam em questão despachos proferidos em 1.ª instância por comuns juízes de instrução criminal.
Para análise desta problemática convém ter presente, em primeiro lugar, que a irrecorribilidade em discussão não se reporta à decisão que determinou a destruição das escutas, mas sim àquela que, posteriormente proferida, não atendeu um pedido de declaração de nulidade da ordem de destruição, e, em segundo lugar, que a decisão em causa foi proferida no âmbito de apreciação de questão prévia ao despacho de pronúncia.
A decisão sobre cuja recorribilidade se pronuncia o despacho recorrido não veda o acesso do arguido a qualquer material obtido na atividade investigatória, limitando-se a apreciar a arguição de um vício na ordem anteriormente emitida de destruição de registos de interceções telefónicas. Visando a arguição desta nulidade, não a recuperação dos registos destruídos, o que já será materialmente impossível, mas sim a exclusão de outras provas, em maior ou menor extensão, do acervo probatório a ponderar na decisão instrutória, o efeito do não atendimento desta arguição é unicamente o da consideração das provas, cujo afastamento se pretendia, no juízo subjacente a essa decisão.
Ora, se a ponderação dessas provas pode ser prejudicial aos interesses do arguido, a decisão (implícita) do seu não afastamento não pode ser qualificada como uma violação de um qualquer direito fundamental constitucionalmente garantido, cuja proteção exija a necessária recorribilidade das decisões que o afetem negativamente. Na verdade, o despacho recorrido apenas se limitou a não reconhecer que tivesse sido praticado um ato processual violador de direitos de defesa, não podendo esse não reconhecimento ser considerado ele próprio diretamente ofensivo desses direitos.
Não se revelando, pois, que a decisão em causa se situe no núcleo essencial do direito ao recurso em processo penal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o qual se encontra fora do alcance do poder conformador do legislador, resta averiguar se, como alega o Recorrente, a irrecorribilidade dessa decisão é uma restrição desproporcionada daquele direito, nomeadamente porque cria uma instância sem recurso para os atos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quando este atua tão somente como juiz de instrução, e porque configura a consolidação de uma situação processual insuscetível de ser alterada, lesiva dos direitos do arguido.
Como já acima se referiu, o que está em causa nesta decisão é apenas a admissão de determinadas provas na ponderação da decisão instrutória, cujo afastamento se pretendia, como consequência duma alegada nulidade da ordem de destruição do registo de interceções telefónicas realizadas no decurso do inquérito.
Não integrando a interpretação normativa que sustentou a decisão recorrida qualquer indicação quanto ao seu cariz definitivo, o qual seria impeditivo da pretensão do arguido voltar a ser reapreciada no momento de valoração das provas na fase de julgamento, e sendo possível a defesa, no atual regime processual, de uma interpretação que inclua esta situação na previsão do artigo 310.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, à decisão em causa apenas lhe pode ser atribuída uma influência no juízo ponderativo subjacente ao despacho de pronúncia.
Ora, a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação foi introduzida no nosso sistema processual pela Código de Processo Penal de 1987, o qual, ao suprimir um recurso com subida necessariamente imediata e com efeitos suspensivos de um despacho interlocutório, pondo fim a uma prática que foi considerada como um dos fatores responsáveis pelo crónico atraso no julgamento dos processos crimes na vigência do Código de Processo Penal de 1929, visou dar execução à norma constitucional que impõe que o julgamento penal deva ocorrer no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 2, in fine, da Constituição). Confessadamente, com as inovações introduzidas em matéria de recursos, visou o legislador de 1987 obter um duplo efeito: 'potenciar a economia processual numa ótica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efetividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico' (preâmbulo do Decreto-Lei nº 78/87, III, 7, c)).
A constitucionalidade desta solução foi fiscalizada pelo Tribunal Constitucional que, apesar de ter presente os danos provocados pela sujeição a um julgamento penal, emitiu sucessivos juízos de não inconstitucionalidade (Vide os acórdãos n.º 265/94, 610/96, 468/97, 45/98, 101/98, 156/98, 238/98, 266/98, 299/98, 300/98, 463/2002, 481/2003 e 527/2003, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Entendeu-se, invariavelmente, que se encontrava dentro da margem de liberdade do legislador optar pela irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, enquanto despacho intermédio que se limita a determinar a necessidade do arguido ser sujeito a julgamento, face aos indícios que existem de que ele cometeu um crime, como forma de, em nome dos interesses da celeridade processual, evitar uma demora na realização do julgamento.
Ora, sendo constitucionalmente admissível que o legislador possa determinar a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, quando opta por essa solução em nome da celeridade processual, revela-se perfeitamente coerente que essa opção se estenda às decisões sobre questões prévias a esse despacho, as quais apenas nele se repercutem, como sucede com a decisão em causa nos presentes autos.
Daí que não ofereça dúvidas que a solução da irrecorribilidade do despacho não possa ser qualificada como uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal.
Por estes motivos conclui-se que a interpretação normativa acima analisada não viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, da Constituição, nem se vislumbra que infrinja qualquer outro parâmetro constitucional.
7. Concluindo-se pela não inconstitucionalidade desta interpretação normativa, mantém-se incólume o respetivo fundamento utilizado no despacho recorrido, o qual é bastante para sustentar o sentido da sua decisão. Isto faz com que, mesmo que se apreciasse e se concluísse pela inconstitucionalidade da outra interpretação normativa, cuja constitucionalidade é questionada no presente recurso - e que respeita a outro fundamento que integrou a ratio decidendi -, tal pronúncia não teria qualquer repercussão útil na decisão recorrida, uma vez que sempre subsistiria, para a manter, o fundamento da sua irrecorribilidade.
Dai que, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, se deva considerar prejudicado, por inutilidade, o conhecimento do mérito da questão de constitucionalidade do artigo 401.º, n.º 1, b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação de que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir.
*
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 11.º, conjugado com o artigo 399.º, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não há recurso de despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, b), do mesmo diploma, que não atenda a arguição, no requerimento para abertura da instrução, da nulidade da ordem de destruição dos registos de interceções telefónicas, emitida por aquele Magistrado.
b) Considerar prejudicado o conhecimento da constitucionalidade da norma constante do artigo 401.º, n.º 1, b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação de que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir.
c) julgar improcedente o recurso interposto por A. do despacho proferido nestes autos pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 14 de março de 2011.
*
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de março de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J.Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.