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Procº nº 370/91 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. O Provedor de Justiça requereu, em 26 de Agosto de 1991, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 281º da Constituição e do artigo 51º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, publicado no Diário do Governo nº 44, de 24 de Fevereiro de 1913, na parte em que permite a privação da totalidade do vencimento do arguido suspenso disciplinarmente.
O pedido vem alicerçado nos seguintes fundamentos:
a) O Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, é ainda hoje aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, por força do disposto no artigo 36º do Decreto-Lei nº 48
953, de 5 de Abril de 1969, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº
461/77, de 24 de Outubro.
b) Preceitua o artigo 37º desse Regulamento que o funcionário implicado em qualquer processo disciplinar poderá ser desligado do serviço sem vencimento, ou com parte dele, enquanto durar a instrução ou até julgamento final.
c) Tal estatuição afronta o princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 2, da Constituição, segundo o qual 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'.
d) Por assim ser, o Tribunal Constitucional, no âmbito de recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público num determinado caso concreto, proferiu o Acórdão nº 198/90, publicado no Diário da República, II Série, nº 14, de 17 de Janeiro de 1991, no qual decidiu julgar inconstitucional a norma em causa.
e) No entanto, a respectiva declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade só poderá ocorrer quando surgirem outros dois casos concretos similares, apresentados ao Tribunal Constitucional, motivo por que se formula o presente pedido.
2. Admitido este, foram notificados o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro para, querendo, sobre ele se pronunciarem, no prazo de 30 dias, nos termos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, tendo um e outro, nas suas respostas, oferecido o merecimento dos autos.
3. Em 13 de Maio de 1993, igualmente o Provedor de Justiça veio requerer a declaração, com força obrigatória geral, da mesma norma - a do artigo
37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de
22 de Fevereiro de 1913 - e, bem assim, da norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº
48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº
461/77, de 24 de Outubro - pedido que veio a constituir o Processo nº 272/93.
Neste pedido, refere o Provedor de Justiça que a norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913, ao permitir que, em sede de processo disciplinar, o funcionário seja desligado do serviço, com a consequência de perda de vencimento ou de parte dele, viola directa e materialmente, por um lado, o princípio da presunção de inocência do arguido em processo disciplinar
(resultante da leitura concertada dos artigos 32º, nº 2, e 269º. nº 3, ambos da Constituição), e, por outro, o princípio da proporcionalidade (artigos 18º, nº
2, e 266º, nº 2, da Constituição). Nele salienta ainda que a norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção constante do Decreto-Lei nº 461/77, de 24 de Outubro, na medida em que remete para a norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913, é inconstitucional, por razões idênticas às desta última norma.
Notificado deste segundo pedido o Primeiro-Ministro, para, querendo, sobre ele se pronunciar, nos termos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, não apresentou ele qualquer resposta, dentro do prazo legal.
4. Por despacho de 30 de Setembro de 1993 do Presidente do Tribunal Constitucional, foi ordenada a incorporação dos autos do Processo nº 272/93 nos autos do Processo nº 370/91.
Tendo em conta estes dois pedidos, verifica-se que constitui objecto do presente processo de fiscalização abstracta a questão da constitucionalidade da norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, conjugada com a norma do artigo
36º do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 461/77, de 24 de Outubro, enquanto nela se determina a aplicação ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos do regime constante do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913.
5. Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir, começando por analisar a questão de saber se existe interesse jurídico relevante no conhecimento da questão de constitucionalidade que vem colocada a este Tribunal.
II-Fundamentos.
6. O artigo 37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, publicado no Diário do Governo, nº 44, de 24 de Fevereiro de 1913, dispõe como segue:
'O funcionário implicado em qualquer processo disciplinar poderá ser desligado do serviço, sem vencimento, ou com parte dele, enquanto durar a instauração, ou até julgamento final.
§ único. A perda de vencimento será reparada, confirmada ou levada em conta na decisão final do processo'.
Por sua vez, a norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969 (Lei Orgânica da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência), na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 461/77, de 7 de Novembro, tem o seguinte conteúdo:
'1. As normas disciplinares aplicáveis ao pessoal da Caixa Geral constarão também de regulamento interno aprovado pelo conselho de administração, tendo-se em conta as condições especiais da prestação de trabalho na instituição e o regime aplicável à generalidade do sector bancário público.
2. Enquanto não for estabelecido o regulamento referido no número anterior, o pessoal permanecerá sujeito ao regulamento disciplinar que actualmente lhe é aplicável, continuando a incumbir ao conselho de administração exercer, em relação ao mesmo pessoal, a competência atribuída aos Ministros pelo referido regulamento'.
6. As disposições transcritas foram, entretanto, revogadas. Com efeito, o Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, que transformou a Caixa Geral de Depósitos, Crédito de Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com a denominação de Caixa Geral de Depósitos, S.A.
(cfr. o artigo 1º), revogou, no seu artigo 9º, nº 1, salvo no que respeita à sua aplicação à Caixa Geral de Aposentações, o Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969, não constando do nº 2 do mesmo preceito a indicação do artigo 36º do Decreto-Lei nº 48 953 como sendo um daqueles que permanecerão em vigor. Os trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos deixaram, por força daquele diploma legal, de estar sujeitos ao regime constante do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913.
Mas igual discurso pode ser feito em relação ao pessoal que presta serviço para a Caixa Geral de Aposentações. Com efeito, apesar de o Decreto-Lei nº 277/93, de 10 de Agosto, ter autonomizado a Caixa Geral de Aposentações (CGA) em relação à Caixa Geral de Depósitos, configurando aquela como uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e com património próprio, que tem por escopo a gestão do regime de segurança social do funcionalismo público em matéria de pensões ( cfr. o artigo 1º, nº 1), não a dotou de pessoal próprio (note-se que o artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº
277/93 estatui que 'os meios e serviços necessários para o exercício da actividade da CGA, que vêm sendo assegurados pela CGD, continuarão a ser prestados por esta instituição'), nem ressalvou a manutenção em vigor do artigo
36º do Decreto-Lei nº 48 953.
7. Alcançada a conclusão de que a norma objecto do presente processo está revogada, importa referir que não subsiste interesse jurídico relevante no conhecimento da sua constitucionalidade.
É certo que a revogação de uma norma, não obsta, só por si, à sua eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral. Isto porque, enquanto a revogação tem, em princípio, uma eficácia prospectiva (ex nunc) a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, por via de regra, uma eficácia retroactiva (ex tunc) [cfr. o artigo 282º, nº 1, da Constituição]. Daí que, neste último caso, possa haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos medio tempore (cfr. o Acórdão nº 238/88, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Dezembro de 1988).
Constitui, com efeito, jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal «que haverá interesse na emissão de tal declaração, justamente toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou» e essa indispensabilidade for evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (cfr. os Acórdãos nºs. 17/83, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. I, p. 93 ss., 103/87, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de Março de 1987, 238/88, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Dezembro de 1988, 73/90, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1990, 135/90, publicado no Diário da República, II Série de 7 de Setembro de 1990, e 465/91, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992).
8. Todavia, ainda que este Tribunal viesse a declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913, em conjugação com a norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº 48 953, não poderia deixar, em nome da segurança jurídica, de restringir os efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, de modo a deixar incólumes os actos administrativos praticados ao abrigo daquela norma não impugnados contenciosamente ou que já não sejam susceptíveis de uma tal impugnação.
Na verdade, durante o período de vigência da norma questionada, houve certamente trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos ou, em geral, trabalhadores sujeitos ao regime da função pública que foram suspensos do exercício de funções, na sequência da instauração de procedimento disciplinar, com perda total ou parcial do vencimento, enquanto durou a instrução, ou até julgamento final, sem que os actos administrativos de suspensão tenham sido objecto de impugnação contenciosa. Esses actos administrativos constituem caso resolvido ou decidido, achando-se os seus efeitos consolidados no ordenamento jurídico, pelo que não deveriam ser afectados pela eventual declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas aqui em causa.
Esses actos administrativos poderiam mesmo ser equiparados aos casos julgados, sendo, assim, ressalvados da eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por efeito do estatuído no artigo 282º, nº 3, da Lei Fundamental.
Suscitando-se, porém, dúvidas a propósito de uma tal equiparação, não poderia deixar o Tribunal de limitar, por razões segurança jurídica, os efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, de modo a deixar incólumes os actos administrativos praticados ao abrigo da norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar de 1913 não impugnados contenciosamente ou que já não sejam susceptíveis de impugnação contenciosa.
Ora, constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal que, ocorrendo - como se verifica no caso concreto - uma situação 'em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir', bem se justifica que se conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade (cfr. os mencionados arestos deste Tribunal), tendo em conta que o recurso concreto constituirá um meio suficiente e adequado para resolver eventuais litígios ainda pendentes.
III- Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do pedido de declaração, com força obrigatória geral, da norma do artigo 37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, conjugada com a norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 461/77, de 24 de Outubro, enquanto nela se determina a aplicação ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos do regime constante do artigo 37º daquele Regulamento Disciplinar, em razão de inutilidade superveniente do mesmo pedido.
Lisboa, 30 de Novembro de 1993
Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento António Vitorino Guilherme da Fonseca Bravo Serra Antero Alves Monteiro Dinis Maria da Assunção Esteves Luís Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa (com declaração idêntica à aposta no Acórdão nº 135/90, entre outros). José Manuel Cardoso da costa