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Processo nº 602/92
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, de 6 de Julho de 1992, que, em processo de contra ordenação instaurado pela Câmara Municipal de Bragança, julgou 'parcialmente procedente' o recurso interposto pelo mesmo recorrente, arguido naquele processo, 'condenando o arguido em 5 000$00 de coima'.
O despacho recorrido é do seguinte teor:
'Conforme se vê das alegações de recurso o arguido confessa a prática dos factos.
Infringiu, assim, o disposto no Parágrafo único do artº. 11º da Postura Municipal sobre apascentação e divagação de animais, aprovada pela Assembleia Municipal de Bragança em 2-1l-89.
Aí se diz que 'é expressamente proibida a estabulação ou pernoita de gado lanígero ou caprino dentro das povoações, sob pena de ser aplicada ao transgressor a coima de 5 000$00 a 25 000$00'.
Nenhuma inconstitucionalidade existe.
O artº. 13º da C.R.P. consagra o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
A haver discriminação seria dos animais já que há um tratamento diferente para os animais de gado lanígero e caprino relativamente a todos os outros animais.
Mas, talvez por deficiência nossa, não vemos que algum preceito constitucional trate da discriminação dos animais.
Igualmente não viola o artº 2º da C.R.P. já que se respeita o Estado de Direito Democrático, tendo a postura sido aprovada pelo órgão com competência para tal, cuja legitimidade emana da sua eleição por escrutínio universal directo e secreto.
O artº. 9º al. d) define uma das tarefas fundamentais do Estado, que é a de promover o bem estar e qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses.
Não se alega nem se demonstra em que é que a postura contradiz o preceito ou as directivas do Estado no sentido de tal promoção do bem estar.
O artº 47º nº 1 da C.R.P. consagra o princípio da liberdade de escolha de profissão.
A Postura não proíbe ninguém de escolher a profissão de pastor.
Mas, escolhida, terá de se sujeitar às regras estabelecidas, como acontece em todas as profissões.
Acresce que o interesse colectivo, que tem de sobrelevar aos interesses individuais, impõe que se ditem regras de higiene pública, as que estão nitidamente subjacentes à Postura.
O que acaba de se dizer vale relativamente ao artº 58º nº 1 e nº 3, al b) da C.R.P.. Todos podem escolher a profissão de pastor, não estando limitados em função do sexo ou de outras condições.
A Postura também não põe em causa a propriedade quer do rebanho quer do estábulo. Respeita, integralmente, essa propriedade. O que não permite é que esta seja utilizada por aquele em determinadas condições, e tendo em vista o interesse público que ao Estado compete salvaguardar. Conforma-se, pois, com o artº 62º da C.R.P..
O artº. 81º é uma norma dirigida ao próprio Estado, programática, que este há-de pôr em execução.
E igualmente se conforma com o artº. 96º da C.R.P. já que nenhum dos objectivos aí definidos está posto em causa. A postura também não viola o conteúdo dos artºs. 1035, 1036 e 1308 do C. Civil.
O arguido pode usar, fruir e dispor do estábulo, desde que o faça dentro dos limites da lei.
Esta proíbe a pernoita do gado lanígero e caprino por razões, como dissemos,de ordem pública, designadamente de higiene.
Ainda ninguém se lembrou de dizer que a proibição de instalação de uma determinada fábrica num armazém de sua propriedade viola esse direito de propriedade, sendo tal feito para evitar a emissão de cheiros ou fumos.
E hoje, que tanto se fala em direito do ambiente, querer retirar ao Estado o direito de regulamentação em sacrifício de interesses individuais, e contra todos os pareceres técnicos, é inconcebível.
O artº. 1038 fala em expropriações e não vemos como possa ser trazido à colação.
Improcedem, assim, as conclusões das als. A), B) e C).
Tem, porém razão o recorrente quando refere não ser reincidente, sendo certo que a coima há-de ser aplicada, tendo em atenção os critérios estabelecidos no artº.
18º do DL nº 433/82 de 27-10.
Não pode o arguido alegar que agiu sem culpa já que pode perfeitamente fazer pernoitar o rebanho fora da localidade e ir dormir a casa, bastando para tanto que trate de disponibilizar instalações para o efeito'.
2. Nas suas alegações, adiantou o recorrente as seguintes conclusões:
A) - O parágrafo único do artº 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais do Município de Bragança, que fundamenta a aplicação da coima pela autoridade administrativa e o despacho que decidiu o recurso de impugnação judicial, que manteve a aplicação da mesma, é inconstitucional por violador do princípio de igualdade consagrado no artº 13º da C.R.P.;
B) - A mesma norma não se conforma ainda (ao restringir o exercício de direitos e ao coarctar os objectivos aí consagrados) com os artºs 2º, 9º d) 47,º nº 1,
58º, nº 3, b), 81º, a) b) c) e d), e 96º da Constituição;
C) - São ainda violados, por inexistência de regulamentação da referida Postura Municipal, os princípios gerais de Direito da Segurança e Estabilidade Jurídicas, bem como as justas expectativas dos titulares de relações jurídicas validamente constituídas, por impossibilidade prática e efectiva de adaptação, com certeza e segurança, à nova realidade pretendida pela norma;
D) - Sendo o parágrafo único do artº 11º da já referida Postura Municipal inconstitucional, carece o mesmo de validade - vd. artº 3º, nº3, da C.R.P., que se repercute no despacho-decisão sub judice.
E) - Deve ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com a decisão que se vier a proferir no presente recurso.
3. O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo que:
1º. - A norma constante do § único do artigo 11º da postura municipal sobre apascentação e divagação de animais, vigente no município de Bragança, não viola o princípio constitucional da igualdade, nem qualquer outro preceito ou princípio constitucional, não sendo arbitrária ou desrazoável a concreta proibição nele estabelecida;
2º. - Deverá, pois, negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
4. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A única questão posta nos autos, de acordo com a tese sempre sustentada pelo recorrente, e logo que veio, 'ao abrigo do disposto no artº 59º do DL 433/82 de 27 de Outubro, interpôr recurso, mediante impugnação judicial' da decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou uma coima, em processo de contra ordenação, é a de saber se o § único do artigo 11º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais
(aprovada pela respectiva assembleia municipal em2 de Novembro de 1989, e publicitada por Edital de 17 de Janeiro de 1990), na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero dentro das povoações é ou não inconstitucional.
Tal é o objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente, como lhe permite a alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição, e a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pois o Mmº Juiz a quo considerou no despacho recorrido que nenhuma
'inconstitucionalidade existe', improcedendo 'as conclusões das als. A), B) e C)'.
5. Na área do município de Bragança está em vigor uma postura municipal 'Sobre apascentação e divagação de animais', aprovada em reunião da Câmara de 11 de Abril de 1989 e sessão da Assembleia Municipal de 2 de Novembro de 1989, publicitada por Edital de 17 de Janeiro de 1990.
Tal postura começa por estabelecer, no seu artigo 1º, a proibição de apascentação e divagação de animais de qualquer espécie em terrenos municipais e paroquiais, ruas, lugares e logadouros públicos ou comuns e, bem assim, em propriedades particulares, sem a indispensável licença.
Passa, de seguida, a regulamentar a 'apascentação' de animais, estabelecendo toda uma série de limitações e prescrevendo sanções para o seu desrespeito (§ 1º e seguintes do artigo 1º e artigos 2º a 8º).
Nos artigos 9º a 11º, regulamenta-se a 'divagação' de animais, estabelecendo aquele preceito que nos locais públicos 'é proibida a divagação de quaisquer espécies de animais, quando não atrelados ou conduzidos por pessoas, e bem assim, a divagação de aves de capoeira'.
Finalmente, estabelece o artigo 11º:
'Na cidade de Bragança, é proibido o estacionamento de gado ovino, caprino, bovino, cavalar, muar, asinino e suíno, fora do lugar destinado ao campo da feira ou dos locais ou parques de estacionamento a eles destinados, salvo para carga e descarga, sob pena de coima de 500$00 a 2500$00'.
E acrescenta o questionado § único:
'É expressamente proibida a estabulação ou pernoita de gado lanígero ou caprino dentro das povoações, sob pena de ser aplicada ao transgressor a coima de
5000$00 a 25 000$00'.
Esta coima será elevada de um terço por cada reincidência verificada 'e responderão pelo seu total pagamento os pastores e os donos dos animais, solidariamente' (artigo 12º).
6. Começa o recorrente por invocar que a norma em causa do § único do artigo 11º viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, por traduzir uma discriminação arbitrária e materialmente injustificada para os criadores e pastores de gado lanígero ou caprino, relativamente aos que se dedicam à criação ou pastorícia de outras espécies de gado e animais. Pois que ele foi condenado por permitir que o seu rebanho de gado lanígero tivesse pernoitado num barracão situado no interior da povoação de Paçó, freguesia de Rio Frio, do município de Bragança.
Quid Juris?
No Acórdão nº 39/88, publicado no Diário da República, I série, de 3 de Março de 1988, escreveu-se, a propósito do princípio da igualdade, o seguinte:
'O princípio da igualdade é um corolário da igual dignidade de todas as pessoas, sobre a qual gira, como em seu gonzo, o Estado de Direito democrático (cf. artigos 1º e 2º da Constituição).
A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, 'reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade' - acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, lições policopiadas de 1972, página 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só
é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante (cfr. também, mais recentemente, o Acórdão nº 186/92, publicado no Diário da República, de 18 de Setembro de 1992)'.
Ver o princípio da igualdade como proibição do arbítrio é olhá-lo também na sua função negativa de princípio de controlo [cfr. Acórdão nº 157/88 (Diário da República, I série, de 26 de Julho de 1988)]. Do que se trata, com efeito, não é de fazer apenas apelo a um critério definidor do conteúdo do princípio, mas, agora e nesta perspectiva, de lançar mão de um critério que 'expressa e limita a competência de controle judicial' [cfr. Acórdãos nºs 186/90 e 188/90, publicados no Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1990].
Neles se escreveu:
'Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou da discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação de poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa'.
7. Com este ponto de partida facilmente se alcança que o questionado § único - na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero e caprino dentro das povoações do município de Bragança - não se apresenta como uma solução arbitrária e discriminatória, violadora do princípio da igualdade, ainda que se não proíba também no mesmo parágrafo a estabulação ou pernoita dentro das povoações de outras espécies de gado ou de outros animais (v.g., de gado vacum, cavalar, muar, asinino ou suíno ou de aves de capoeira).
É que, o recorrente, incorrendo em vício de petição de princípio, na sua argumentação, dá como ponto assente aquilo, que, concretamente, no caso, importava averiguar e discutir: existirá ou não alguma especificidade justificativa do regime restritivo constante do questionado artigo 11º?
Talqualmente afirma o Ministério Público nas suas alegações:
'O recorrente começa por não ter presente que uma simples postura municipal com a natureza e configuração da que estamos a analisar não terá naturalmente vocação para enunciar grandes princípios aplicáveis a uma pluralidade indefinida de situações - mas antes resolver concretos e pontuais problemas efectivamente surgidos na vida diária das populações, tipificando e sancionando determinados comportamentos que a experiência já revelou serem de ocorrência mais frequente'.
Depois, há todo um circunstancialismo fáctico que rodeia a criação de gado na zona nordeste do País, em que se situa o município de Bragança, assumindo o gado lanígero e caprino, apascentado em rebanho e em regime de pastoreio, uma importância vital para a comunidade local, como até se reflecte nas primeiras disposições - artigos 1ºa 8º - da Postura Municipal em causa.
Pretendeu o órgão municipal com poder regulamentar impedir que, à noite, os rebanhos de gado lanígero e caprino viessem dormir no interior da povoação e que eventualmente, sobretudo em condições climatéricas desfavoráveis, correntes naquela zona do País, esses rebanhos fossem estabulados no interior da povoação.
E são razões ambientais, relacionadas com a higiene e a salubridade públicas, que justificam tal proibição, dado o elevado número de cabeças de gado que normalmente integram os citados rebanhos, ao contrário do que se verifica com as outras espécies de gado ou outros animais, relativamente aos quais não se pratica o pastoreio. O risco de conspurcação das vias públicas e poluição do ambiente é muito maior com o gado lanígero ou caprino do que com os outros conjuntos de gado ou animais.
Como regista o Ministério Público, nas suas alegações, 'não será, na realidade, situação normal ou frequente deparar com manadas de bois, varas de porcos ou bandos de aves de capoeira, apascentados em regime itinerante e ocasionalmente recolhidos, durante a noite, em estábulos situados no centro das povoações...'.
E acrescenta-se ainda:
'Visando, deste modo - como tudo leva a crer - soluciona-se, através do regime estatuído no impugnado § único do artigo 11º, um específico problema - a permanência ocasional, dentro de povoações de rebanhos integrados por largo número de animais - que, na realidade da vida transmontana, apenas ocorrerá com o gado lanígero ou caprino, é evidente que a aparente 'discriminação' surgirá como plenamente justificada por razões materiais suficientes - o que naturalmente lhe retirará o qualificativo de 'arbitrária'.
Na expressão de Maria da Glória Ferreira Pinto, 'o princípio da igualdade não dá uma qualquer orientação, concreta e material, sobre a escolha de critérios de qualificação de igualdade. Basta que em tais critérios se encontrem justificados pelo fim a atingir com o tratamento jurídico em causa, para que sejam válidos no âmbito do princípio da igualdade'
(Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, pág. 46).
In casu, o tratamento jurídico diferenciado para o gado lanígero e caprino, dadas as condições em que é criado e o circunstancialismo da zona nordeste do País, encontra justificação, e, por isso, não pode falar-se em violação do princípio da igualdade, inexistindo a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente.
8. O recorrente sustenta também que a mesma norma da Postura Municipal ofende ainda os artigos 2º, 9º, alínea d), 47,º nº 1, 58º, nº
3, alínea b),81º, alíneas a), b), c) e d),e 96º, todos da Constituição, mas este rol de preceitos ou princípios constitucionais não encontra adequação com a tese por ele defendida, bastando uma análise liminar para revelar a total inconsistência dessa tese.
Assim, e de modo resumido, por que não se justificam mais desenvolvimentos:
- tendo-se concluído pela não violação do princípio da igualdade, carece de fundamento a invocação da ofensa do artigo 2º, que seria sempre mera consequência, na posição do recorrente, da pretensa violação originária daquele princípio ('Ao contrariar o princípio da igualdade, ele (o preceito ora questionado) põe em causa o princípio democrático, princípio enformador da sociedade e do Estado de Direito Democrático (...)' - é a linguagem do recorrente).
- é descabida a invocação do artigo 47º, nº 1, pois não se vê nenhum limite no acesso ou no exercício da profissão de pastor ou da actividade de criador de gado lanígero ou caprino.
- é igualmente impertinente a invocação do artigo
58º, nº 3, alínea b), pois não se consegue detectar a conexação que poderá existir entre uma regra regulamentar local sobre estabulação e pernoita de gado lanígero e caprino e a garantia do direito ao trabalho.
- é, finalmente, despropositada a invocação conjugada dos artigos 9º, alínea d), 81º, alíneas a), b), c), e d), e 96º, que se reportam às incumbências do Estado no âmbito económico e social - nomeadamente, no plano agrícola, que o recorrente traz à colacção -, pois os objectivos programáticos aí enunciados passam à margem da finalidade comesinha que uma norma regulamentar local pretende atingir, no simples respeito pelo bem estar e pela comodidade das comunidades locais.
Com o que improcedem todas as conclusões das alegações do recorrente, não se verificando, talqualmente entende o Mmº Juiz a quo, nenhum tipo de inconstitucionalidade que ele aponta à norma do § único do artigo 11º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais.
9. Há, no entanto, que ter aqui em conta o que se dispõe no artigo 115º, nº 7, da Constituição, que reza assim:
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Este artigo 115º, nº 7, impõe que os regulamentos, que contenham normas regulamentares externas, indiquem, expressamente, a lei que visam regulamentar ou que define a competência subjectiva e objectiva para a sua edição.
Na verdade, para além dos regulamentos do Governo
[cf. artigo 202º, alínea c)], e dos dos órgãos das regiões autónomas [cf. artigo 229º, nº 1, alínea b)], também os das autarquias locais (como é o caso dos das assembleias municipais, que são órgãos autárquicos, com poder regulamentar próprio: cf. artigos 242º, e 250º da Constituição) têm que cumprir esta exigência constitucional.
Ao impor o dever de citação da lei habilitante, o que a Constituição pretende é garantir que a subordinação do regulamento à lei (e, assim, a precedência da lei relativamente a toda a actividade administrativa) seja explícita (ostensiva).
Nos dizeres de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página
516):
[...] a função da exigência de identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevante à luz da principiologia do Estado de direito democrático.
Ora, isto há-de valer para todos os regulamentos contendo normas regulamentares externas.
Isso mesmo reconhecem os citados autores que acentuam que o dever de citação há-de ser observado por 'todos os regulamentos', não bastando que 'seja possível identificar a lei habilitante' (cf. ob. e loc cit.).
Os regulamentos que não respeitem a imposição feita pelo artigo 115º, nº 7, da Constituição (isto é: que não indiquem, expressamente, a lei que visam regulamentar ou, sendo o caso, que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão) são constitucionalmente ilegítimos [cf., entre outros, os Acórdãos nºs 76/88 (Diário da República, I série, de 21 de Abril de 1988), 63/88 (Diário da República, II série, de 10 de Maio de 1988) e 268/88 (Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de
1988).
Neste último aresto, escreveu-se:
Impõe-se recordar que o nº 7 do artigo 115º dispõe que os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. Para perfeita compreensão do sentido e alcance do preceito, indispensável é, no entanto, estabelecer o confronto do nº 7 com o nº 6 do artigo 115º. E desse cotejo verifica-se que, enquanto o nº 6 do artigo 115º da Constituição estipula que 'os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes', limitando, por conseguinte, e de modo expresso, a determinação dele constante aos regulamentos do Executivo, já o nº 7 do mesmo artigo se refere a regulamentos tout court, sujeitando, assim, todo e qualquer regulamento, independentemente da consideração do órgão ou da autoridade donde tiver emanado, à imposição de tipo alternativo nela prevista.
É, pois, claro, face a esta simples análise normativa, de ordem comparativa, que abrangidos pela regra bidireccional estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo. Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que por força do nº
7 do artigo 115º da Constituição tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.
Pois bem: no presente caso a Postura Municipal aqui em causa não indica a lei ao abrigo da qual foi editada. Viola ela, por isso, o mencionado nº 7 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa.
10.Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição da República - a norma constante do § único do artigo 11º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais
(aprovada pela respectiva assembleia municipal em 2 de Novembro de 1989, e publicitada por edital de 17 de Janeiro de 1990), na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero dentro das povoações;
(b). em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 1 de Março de 1994
Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida