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Procº nº 239/93.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A., interpôs para o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa recurso contencioso de impugnação do despacho proferido pelo Director Municipal de Finanças da Câmara Municipal de Lisboa e por intermédio do qual foi indeferida uma reclamação deduzida por aquela sociedade contra a liquidação da taxa de compensação por deficiência de estacionamento, no montante de Esc. 2.932.500$00, imposta pela mesma Câmara ao abrigo do artº 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa aprovado pela Portaria nº 274/ /77, de 19 de Maio.
2. Remetidos os autos ao indicado Tribunal Tributário, o respectivo Juiz, por sentença de 18 de Fevereiro de 1993, decidiu julgar procedente o recurso, o que fez por julgar inconstitucional e ilegal a 'parte final do art. 12º da Portaria 274/77, de 19-5, que aprovou o Regulamento Geral da cidade de Lisboa'.
3. Dessa sentença, na parte tocante à recusa de aplicação normativa, por inconstitucionalidade, recorreu para este Tribunal o Ministério Público, tendo o seu Ex.mo Representante aqui em funções produzido alegação na qual concluiu dever a sentença recorrida ser confirmada na parte impugnada, pois que a norma constante da última parte do artº 12º do «Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa», aprovado pela Portaria nº 274/ /77, enquanto cria um encargo patrimonial a suportar pelo construtor como condução para o dispensar do cumprimento das obrigações mencionadas nos vários parágrafos daquele mesmo artigo, é inconstitucional por ofensa dos artigos 106º, números 2 e 3, e 167º, alínea o), da Constituição, na sua versão originária.
A recorrida A., por seu turno, não apresentou alegações.
Uma vez que a matéria agora em causa foi já objecto de decisões por parte deste Tribunal, o que significa que os respectivos Juízes da mesma têm pleno conhecimento, foi dispensada a continuação dos autos com vista aos que compõem a 2ª Secção.
II
1. É o seguinte o teor da norma cuja compatibilidade constitucional é questionada e que se insere no «Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa»:
'ARTIGO 12º.
Estacionamento e garagens
Em todas as zonas deverá ser considerada uma área útil de estaciona- mento equivalente a 12,5 m2 de área útil de estacionamento por fogo.
Para instalações industriais deverá ser prevista para tal fim uma área a utilizar pelo pessoal igual a um décimo da área coberta total de pavimentos.
Para instalações terciárias, grandes armazéns e demais locais abertos ao público, uma área de estaciona- mento equivalente a um quarto da área útil da edificação.
Para salas de espectáculos e locais de reunião deverão prever-se 25 m2 de área de estacionamento por ca- da vinte e cinco lugares.
Para hotéis deverão prever-se, para a mesma finalidade, 25 m2 por ca- da cinco quartos de hóspedes.
Caso o município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições, o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar, mediante aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário estimado para a construção'.
2. Dados os termos em que a questão foi colocada e mereceu decisão por banda do tribunal a quo, é nítido que da norma transcrita unicamente interessará o segmento da sua parte final, ou seja, aquele em que se impõe ao construtor o pagamento de uma determinada quantia como contrapartida da sua dispensa em cumprir a consideração ou previsão de áreas para estacionamento, nos moldes indicados nos restantes segmentos de tal norma, nas construções que levar a efeito.
3. A questão que, naturalmente, se levantará em primeira linha, será a da caracterização do que seja o encargo do pagamento ao município de Lisboa da «quantia a fixar» a que se reporta o assinalado segmento normativo.
E esta questão rodeia-se de importância pois que, a ter aquele encargo o mesmo tratamento legislativo a que estão sujeitos os impostos proprio sensu, tendo em conta o que se dispõe nos artigos 106º, números 2 e 3, e
167º, alínea o), da primitiva versão da Constituição - vigente à data da emissão da portaria aprovadora do «Regulamento» onde se insere a norma sub specie - seria esta inválida porque criada por diploma ao qual a Lei Básica não conferia força para tal criação.
Diferente posicionamento, quanto ao particular em causa, haveria de seguir-se, porém, se porventura se concluísse estarmos perante uma
«taxa» ou, mais correctamente, perante um encargo que pudesse sofrer tratamento idêntico a esta forma de imposição pecuniária.
3.1. A diferença específica entre o «imposto» e a «taxa» tem sido situada pela pela nossa doutrina na existência ou não existência de um vínculo sinalagmático, característico da segunda, representando o encargo a pagar como que o 'preço' do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará ( e sem aqui se olvidar que esse 'preço' não tem, necessariamente, de corresponder à contrapartida financeira ou económica do serviço prestado).
Já, por outro lado, o «imposto» constitui, por si, uma receita estadual - ou até da entidade pública legalmente habilitada a cobrá-lo - que não é directamente destinada à satisfação das utilidades do tributado como contrabalanço do usufruto dessa satisfação (cfr., sobre o tema, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 267 e segs. e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 117º, 3727, 289 e segs, Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, 34 e segs., Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 4 e segs., Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, 1º vol.,42 e segs., e Sá Gomes Curso de Direito Fiscal, 92 e segs.).
3.2. No caso da norma em apreço, dúvidas se poderiam colocar no que respeita a uma vincada unilateralidade do tributo em causa, pois que, dir-se-ia, o 'limite' à actividade dos particulares (construtores) aí contemplado - isto é a imposição de limitações às construções na área de Lisboa, justamente pela circunstância de deverem ser considerados e reservados espaços para garagens - seria afastado se esses particulares procedessem ao pagamento de determinada quantia, o que, assim, constituiria o pretium (com a ressalva atrás assinalada) da vantagem em não sofrerem limitações e, logo, uma contrapartida de um benefício alcançado.
3.3. Todavia, mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, é vista pela doutrina como a imposição de uma «taxa» somente desde que tal retirada se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou semi-público (cfr., sobre o ponto, Teixeira Ribeiro na citada Revista).
Se este último condicionalismo não ocorrer, deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma compensação/contributo que se aproximará da figura do «imposto» nos termos que a seguir se verão, sem que com isto se queira significar que a imposição de contributo só é recondutível à dicotomia de «taxas» ou «impostos» .
3.4. Revertendo ao caso dos autos - rectius, à norma em apreciação - não se pode olvidar que, 'dispensado' o construtor do cumprimento da obrigação imposta pelos restantes segmentos dessa norma (dispensa que lhe é atribuída após o pagamento do tributo que vimos apreciando), nem por isso, como se descortinou nos Acórdãos deste Tribunal números 277/86 e 313/92 (publicados na 2ª Série do Diário da República de 17 de Dezembro de 1986 e 18 de Fevereiro de 1993, respectivamente), adquire ele o 'direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público nem sequer constitui o município na obrigação de criar ou manter tais áreas'.
De onde o poder afirmar-se que tal tributo não confere de per si um serviço ou a possibilidade de se recorrer aos serviços ou actividades públicas, consequentemente não podendo ele ser visto como uma contraprestação ou compensação característica da tradicional noção de «taxa».
3.5. É evidente que, não cumprindo os construtores as imposições que decorrem da norma em análise, dispensando-se do cumprimento após o pagamento do tributo nela previsto, o município de Lisboa terá acrescidos encargos, por isso que, para obviar à falta de espaço que não existiria se as garagens fossem construídas, terá de realizar obras no sentido de aumentar a
área de estacionamento público.
O tributo exigido terá, desta arte, uma natureza compensatória dos referidos encargos acrescidos.
3.6. Simplesmente, essa natureza, por si só, não afasta que as denominadas compensações especiais tenham de ter um tratamento legislativo dissemelhante daquele que é exigido aos impostos qua tale.
Na realidade, tem a doutrina fiscal portuguesa vindo a entender que, muito embora haja justificação económico-financeira para uns tributos serem havidos como compensações ou contribuições especiais, do ponto de vista jurídico estas e os «impostos» propriamente ditos têm de sofrer o mesmo tratamento (cfr. Cardoso da Costa, Ob. cit, 15, Sá Gomes, idem, 97 e Alberto Xavier, idem, 59).
Aos argumentos utilizados pela doutrina, designadamente aqueles que se podem encontrar nos referidos autores, não são oponíveis quaisquer outros que agora este Tribunal divise, como já não divisava aquando da prolação dos aludidos Acórdão nº 277/86 e 313/92.
Daí que se tenha de concluir que o tributo instituído pela norma de que curamos deva ser perspectivado como um «imposto» quanto ao tratamento legislativo que há-de sofrer tal compensação.
4. Alcançada esta conclusão, dado que o dito tributo foi criado por norma inserida em diploma que não foi emitido pelo órgão a que a Constituição confere os cabidos poderes [a Assembleia da República ou o Governo por ela devidamente autorizado - cfr. artigos 167º, alínea o) e 168º da versão originária da Lei Fundamental], há-de concluir-se também que aquela norma padece de inconstitucionalidade orgânica.
III
Perante o exposto, decide-se:
- a) Julgar o segmento final da norma ínsita no artº 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, - na parte em que permite ao construtor ser dispensado, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar nas condições aí impostas, das consideração e previsão de áreas de estacionamento previstas na mesma norma - inconstitucional por violação dos artigos 106º, números 2 e 3, e
167º, alínea o), da primitiva versão da Constituição e, em consequência,
- b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se, na parte impugnada, a censurada decisão.
- Lisboa, 4 de Novembro de 1993
Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa