Imprimir acórdão
Processo nº 213/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1.1.- A ... e M ..., identificados nos autos, foram demandados por J
..., e mulher, em acção declarativa de condenação sob a forma sumária que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, em que se pediu, atento o disposto na alínea a) do nº 1 do R.A.U. (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro) e no artigo 655º do Código Civil, a condenação do réu a despejar imediatamente o local arrendado, deixando-o devoluto de pessoas e bens, e de ambos os réus, solidariamente, ao pagamento aos autores das rendas vencidas de Fevereiro a Junho de 1993, no montante de 249.716$00, e vincendas no decurso da acção até efectivo despejo.
Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação, do mesmo passo reconvindo o primeiro réu, que deduziu um pedido de indemnização na importância de 266.590$00, acrescidos dos juros legais a partir da notificação.
Houve resposta e contestação ao pedido reconvencional e, por decisão de 15 de Julho de 1994 (fls. 95 e segs. dos autos principais), na fase de saneamento e condensação, foi a acção julgada procedente e provada, com a condenação dos réus no pedido, e o pedido reconvencional improcedente e não provado relativamente a ele se absolvendo do pedido.
Do assim decidido recorreram os réus para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 27 de Julho de 1995 (fls. 150 e segs.) confirmou a anterior decisão, assim julgando improcedente a apelação.
É deste aresto que os réus interpõem recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, 'para apreciação da inconstitucionalidade da norma
ínsita no artigo 1057º do Código Civil, por violação do disposto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, questão suscitada nas alegações de Apelação' (fls. 169).
O recurso não foi admitido, por despacho do Senhor Desembargador relator (fls. 170 dos autos principais).
De acordo com esse despacho, que cita Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, pág. 331, constitui jurisprudência pacífica e uniforme o entendimento segundo o qual a questão de inconstitucionalidade só é eficazmente suscitada durante o processo desde que o juiz a quo tivesse podido e decidido tomar posição sobre ela, o que significa a adopção de um entendimento funcional e não puramente formal da expressão
'durante o processo'.
Ora, acrescenta-se, 'embora os recorrentes na parte discursiva da sua alegação de recurso, hajam referido a inconstitucionalidade do artigo 1057º do Código Civil, omitiram tal questão nas correspondentes conclusões que, como é sabido (artigo 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil) delimitam o âmbito do recurso, assim impedindo o Tribunal Constitucional de conhecer da mesma questão' (na realidade, fala-se em correspondentes alegações o que foi rectificado posteriormente tomando-se a divergência como lapso material).
1.2.- Em requerimento dirigido ao Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional, os réus e recorrentes deduziram reclamação do despacho citado, ao abrigo do disposto nos artigos 76º, nº 4, e 69º da Lei nº 28/82 e 688º do Código de Processo Civil.
Submetida à conferência, de acordo com o nº 3 deste
último normativo, o Tribunal da Relação, por acórdão de 23 de Janeiro último, manteve o despacho reclamado (rectificando-o materialmente nos termos já assinalados).
Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, o magistrado do Ministério Público, pronunciando-se nos termos do nº 2 do artigo
77º da Lei nº 28/82, entendeu ser a reclamação de indeferir, não só por não se depreender claramente qual teria sido a interpretação 'inconstitucional' da norma constante do artigo 1057º do Código Civil, como, e essencialmente, porque tal normativo não foi sequer invocado como fundamento jurídico da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2.1.- Tem-se por líquido que os reclamantes não mencionaram, nas conclusões das suas alegações para a Relação enquanto recorrentes, a problemática de inconstitucionalidade aludida em certo passo do seu discurso argumentativo.
O Relator, subsequentemente confirmado pela conferência, ao perfilhar a tese da determinação do objecto do recurso pela medida das conclusões, não recebeu o recurso, por entender não suscitada atempadamente a questão de inconstitucionalidade durante o processo, de harmonia com a jurisprudência reiteradamente professada pelo Tribunal Constitucional.
O Ministério Público, no entanto, seguiu outra linha de fundamentação, privilegiando a não verificação, em seu critério, de um outro pressuposto de admissibilidade do recurso, o da não aplicação na decisão recorrida da norma impugnada.
Com efeito, para ser admitido o recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82 - como é o caso - tem-se por indispensável a congregação de vários pressupostos, entre eles figurando quer a necessidade de uma suscitação da questão durante o processo, no sentido jurisprudencial acolhido, quer a aplicação da norma questionada na decisão recorrida, em termos de constituir uma das suas rationes decidendi.
Razões pragmáticas apontam para a conveniência de se abordar, em primeiro momento, o problema tocante à verificação deste último pressuposto.
2.2.- A convocação pelos reclamantes do artigo 1057º do Código Civil -
nos termos do qual 'o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo' - resulta do facto de os autores não terem outorgado no contrato de arrendamento que invocaram como causa de pedir, resultando a titularidade da sua posição jurídica, como locadores, da aquisição, por compra, da fracção do imóvel objecto do contrato de arrendamento.
Esta situação proporcionou aos réus, ora reclamantes, a dedução da falta de legitimidade dos autores, ao serem demandados e contestarem a acção, o que logo foi afastado na decisão da 1ª instância que considerou os autores sujeitos da relação jurídica material controvertida, por virtude da aquisição da posição jurídica de locadores no contrato em referência.
Nas alegações de recurso para a Relação, os réus questionam a interpretação dada ao mencionado artigo 1057º: segundo alegam, o adquirente do direito de propriedade só sucede plenamente nos direitos do locador quando chegar ao conhecimento do locatário essa aquisição, de outro modo não podendo ser exercido contra este nenhum direito do locador, nomeadamente o de despejar; mais ainda, e substancialmente, o contrato de arrendamento inicialmente celebrado, no concreto caso, porque celebrado para o período correspondente à ausência temporária do senhorio, não está sujeito ao regime geral do arrendamento urbano (o regime aplicável, à data, seria o da alínea c) do nº 2 do artigo 1083º do Código Civil; alínea c) do nº 2 do artigo 5º do R.A.U.).
Na óptica dos reclamantes, uma interpretação do artigo 1057º que não permita ao locatário opor-se, por se entender consagrar-se uma subrogação ex lege, tal como se entendeu na decisão recorrida, será inconstitucional 'por violação, pelo menos, do disposto no artigo 65º da Constituição'. Decorrerá o vício, acrescentam, do facto de o adquirente do direito de propriedade com base no qual foi celebrado contrato de arrendamento de casa habitada pelo senhorio, por período correspondente à ausência temporária deste, suceder nos direitos que do contrato de arrendamento urbano em geral advêm para o locador e não nos direitos derivados desse específico contrato.
2.3.- A Relação, no acórdão recorrido, confirmou o anterior juízo quanto à legitimidade dos autores, considerando que a sucessão da posição contratual do locador, processando-se por efeito do artigo 1057º, dispensa a verificação do consentimento ou do reconhecimento do locatário. Não existe, em rigor, afirma-se no acórdão, uma cessão da posição contratual do locador que, assim, não depende do prévio conhecimento por parte do locatário. E citam-se, em abono, a anotação ao artigo 424º do Código Civil feita por Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, vol. I, pág. 401 da 4ª edição) e o acórdão da Relação de Lisboa, de 29 de Maio de 1990 (in - Colectânea de Jurisprudência, ano XV, 1990, t. III, pág. 130).
Relativamente à questão de fundo, a Relação resolveu-a em termos que a levaram a confirmar a anterior decisão e que, nessa medida, se passam a transcrever:
'Preceitua o nº 1 do art. 405º do C.C., que, dentro dos limites da lei, as partes têm a dificuldade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes neste código ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver.
Daí resulta o princípio de que os particulares, na área dos contratos, podem agir por sua própria e autónoma vontade, constituindo excepção os limites impostos por lei, princípio que assume particular importância quanto
à interpretação dos contratos (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 196).
Cabendo ao tribunal, na sua função jurisdicional, interpretar e apreciar, sem formalismos exagerados, os factos provados, resulta da respectiva interpretação sistemática e criteriosa, que, contrariamente à suposição, decorrente da denominação do contrato de arrendamento para habitação e da indicação específica do regime a ele aplicável, tal contrato não será 'o arrendamento de casa habitada pelo senhorio, feito por período correspondente à ausência temporária deste', previsto no art. 1083º, nº 2, al. c) e, ora, no art.
5º, nº 2, al. c), do R.A.U., aprovado pelo art. 1º do De-Lei nº 321-B/90, de
15/10.
Esse tipo de arrendamento urbano, subtraído à disciplina do arrendamento habitacional normal, pressupõe, necessariamente, como, de forma clara, advém dos seus termos, que incida sobre casa habitada por quem vier a ser senhorio em tal contrato, o que não se mostra provado.
Pelo contrário, já que, em síntese, aquando da sua celebração, em
1-4-89, os senhorios residiam em França, desde, pelo menos, 16-11-88, e ainda não tinha sido emitida a licença de habitação do prédio em que se integra a fracção arrendada, o que veio a acontecer em 21-11-89, sendo certo ter sido estipulado serem da conta do locatário, R.- apelante-, todas as despesas 'com as ligações iniciais da água, electricidade e instalações de telefone'.
Ainda que o contrato fosse do referido tipo à data de celebração, já não revestia essa natureza quando da compra e venda, em 27-3-92, da fracção sobre que incidia, por banda, respectivamente, dos AA.- apelados- e dos proprietários-senhorios, todos, então, residentes, como emigrantes, em França.
Na verdade, convencionada a conversão automática do arrendamento
'em regime de renda livre', se verificado 'o cumprimento das obrigações fiscais correspondentes', e 'renunciando o fiador ao benefício da excussão em caso do presente contrato para o Contrato de Arrendamento', intui-se a existência,
àquela data, dessa conversão automática, em decorrência da entrega, quase três anos antes (11-5-89), do 'contrato de arrendamento na Repartição de Finanças de Cascais'.
Por isso, desde 27-3-92, os AA., o R. e a R. são, respectivamente, senhorios, locatário e fiadora deste, com renúncia ao benefício da excussão, relativamente a contrato habitacional normal, a que está inerente faculdade legal da actualização anual da renda correspondente (art. 30º, nº 1, do R.A.U.), tanto assim que, a partir de Abril de 92, o montante das quantias pagas pelo segundo aos primeiros e das inscritas em cheques, emitidos a favor destes por aquele, foi em função da renda actualizada e legal indemnização.'
3.- Constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional o entendimento segundo o qual a via do recurso por alegada inconstitucionalidade de norma aplicada só se justifica quando a norma questionada - ou a interpretação que dela se tenha feito - fôr relevante para a decisão da causa. Atenta a função instrumental deste tipo de recurso, só devem conhecer-se as questões de constitucionalidade cuja decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 169/92, 257/92 e 682/94, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, 18 de Junho de 1993 e 20 de Maio de 1995, respectivamente).
Ora, resulta claramente da passagem transcrita que a Relação não se socorreu da norma constante do artigo 1057º - não a aplicou
- como fundamento jurídico do acórdão na sua apreciação de mérito, na dimensão normativa questionada pelos reclamantes, qual seja - repete-se - uma interpretação pressupondo uma cessão da posição contratual do locador, a exigir o conhecimento e consentimento do locatário.
Na verdade, a linha argumentativa e a fundamentação adoptadas invocam o falado artigo 1057º na medida em que a transmissão do locado se dá 'por efeito da lei', com a inerente dispensa daqueles conhecimento e consentimento, considerando ter ocorrido conversão automática do primitivo contrato de arrendamento em arrendamento segundo o regime de renda livre, em consequência do estipulado nas próprias cláusulas contratuais.
Com efeito, a sentença da 1ª Instância mostra-se clara, a este respeito:
'Ao tempo da constituição da relação jurídica de arrendamento era lícito ao senhorio, proceder, em todos os arrendamentos habitacionais, independentemente da data da celebração dos contratos de arrendamento ou do regime de rendas, à actualização anual destas (artº 6 nº 1 Lei 46/85, 20 de Set.).
A primeira actualização podia ser exigida um ano após a data do início da vigência do contrato, e as seguintes, sucessivamente, 1 ano após a actualização anterior, com base em coeficiente a fixar anualmente (artº 6º nºs.
1 e 2 Lei 46/85, 20 Set.).
Temos, pois, que na data da celebração do ajuizado contrato de arrendamento, que ao locador era lícito exigir do R. a actualização anual da renda convencionada, não constituindo obstáculo à actualização, o facto de aquele contrato haver sido celebrado por ausência temporária do senhorio.
Todavia, o DL. 321-B/90, 15 Out., que entrou em vigor no dia 18 Out. 90 revogou o artº 6º da Lei 46/85 20 Set. e, por outro lado, subtraiu ao regime jurídico do arrendamento urbano que estabeleceu os arrendamentos celebrados por ausência do senhorio (artºs. 3 nº 1 i) e 5 nºs. 1 e 2 c) e Ac. RL
5/11/92, CJ V, 117).
Com as normas contidas no DL 321-B/90, 15 Out. relativas à actualização de rendas não são aplicáveis aos contratos de arrendamento celebrados com fundamento na ausência temporária do locador, segue-se aos AA. não seria lícito, a partir de 18 Out. 90, proceder à actualização das renda convencionada no contrato de arrendamento em apreço (artºs. 30 nº 1 e 31 nº 1).
Esta conclusão pressupõe, porém, que o contrato em apreço configura ainda contrato de arrendamento de casa habitada pelo senhorio, pelo período correspondente à ausência temporária deste, dado que só por esse modo tal contrato estaria subtraído ao princípio da actualização anual da renda, estabelecido pelos artºs. 30 nº 1, 31 nº 1 a) e 32 nº 1 DL 321-B/90, 15 Out..
Deve, todavia, entender-se que o ajuizado contrato deixou de ter, desde 27 Mar. 92, uma tal natureza'.
E a Relação, no acórdão recorrido, ao confirmar aquela sentença, sublinha, nomeadamente, que a existência de um contrato subtraído ao regime de arrendamento habitacional normal, não se mostra sequer provado, como consta da passagem transcrita desse acórdão. Não obstante, a verificação do contrato específico de arrendamento de casa habitada pelo senhorio, pelo período correspondente à ausência temporária deste, mostra-se indispensável à dimensão normativa do artigo 1057º defendida pelos reclamantes.
Não há, assim, apelo à norma do artigo 1057º do Código Civil, na dimensão questionada pelos reclamantes, na fundamentação utilizada que, obviamente, não é passível de censura por este Tribunal.
O que significa não se verificar o correspondente pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Desnecessário, por conseguinte, se torna abordar o fundamento invocado para o não recebimento pelo Desembargador relator e pela conferência, o que colocaria o problema da suscitação de 'questão nova' confrontado com a interpretação que limita o objecto do recurso pelo teor das conclusões das alegações, de acordo com os nºs. 1 e 3 do artigo 690º do Código de Processo Civil (e, sobre as respectivas implicações, podem citar-se os acórdãos nºs. 41/92 e 310/94, publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Maio de 1992 e 29 de Agosto de 1994, respectivamente).
4.- Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, condenando-se os reclamantes nas custas do processo, fixando-se em 5
(cinco) unidades de conta a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 25 de Junho de 1996
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria da Assunção ESteves
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Luis Nunes de Almeida