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Proc. nº 451/91
2ª Secção Rel.: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. foi julgado no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro pela prática de um crime de deserção previsto e punido pelos artigos 132º e 133º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante (CPDMM), aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, por ter abandonado o navio em que era pescador no porto de -------------, não tendo regressado a bordo na data designada para a saída deste com destino à Terra Nova.
A acusação foi julgada improcedente e o arguido absolvido, considerando o tribunal não ter havido consciência da ilicitude penal, uma vez que «sabendo embora que não pode abandonar o navio sem autorização do capitão, [o arguido] reconduz esse abandono a uma questão laboral, correspondendo ao seu não cumprimento do contrato o não pagamento respectivo por parte da empresa». E ocorreria erro não censurável, segundo aquela sentença, porquanto seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a disposição do artigo 132º do CPDMM, na parte em que pune como desertor alguém que, sendo tripulante de um navio, não tem funções que se liguem directamente ao funcionamento e manutenção do mesmo navio e sua equipagem.
2. Daquela decisão, recorreu obrigatoriamente o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. No entanto, nas alegações aqui apresentadas, pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma em questão, também com fundamento em violação do princípio da igualdade.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. É objecto do presente recurso a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 132º do CPDMM, na parte em que prevê a punição como desertor de quem, sendo tripulante de um navio, e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, ainda que tal tripulante não tenha funções que se liguem directamente à manutenção e equipagem desse navio.
Na verdade, não tendo o tribunal recorrido concluído não ser penalmente ilícita a conduta em causa, o juízo de inconstitucionalidade foi determinante para, na óptica da decisão recorrida, se considerar não censurável o erro do agente sobre a ilicitude da sua conduta, com a consequente absolvição por exclusão de culpa.
4. A versão original do CPDMM foi introduzida pela Carta de Lei de 4 de Julho de 1864. Conforme a Comissão Constitucional notou nos Pareceres nº 1/81 e nº 7/82 (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14, pág. 105, e vol. 18, pág. 209), tratava-se de uma lei penal especial que tipificava ilícitos de natureza penal (e não disciplinar, no sentido moderno do termo), segundo a tripartição napoleónica de «crimes»,
«delitos» e «contravenções».
Só com o novo código aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, é que se modificou essa situação, procurando distinguir-se agora a repressão penal da repressão disciplinar. Segundo o relatório do diploma, «esta confusão dos dois meios repressivos não tem qualquer justificação», já que «as infracções disciplinares são totalmente distintas das infracções penais, e estas, por sua vez, são divididas em crimes marítimos e crimes comuns».
No entanto, no que se refere à matéria disciplinar, o Código de 1943 retomava, afinal, medidas sancionatórias que no texto de 1864 eram consideradas contravencionais (penais), e nomeadamente as penas de prisão «disciplinar», aliás construídas segundo o modelo do direito disciplinar militar. Estas penas de prisão disciplinar só seriam eliminadas pelo Decreto-Lei nº 678/75, de 6 de Dezembro; e, mesmo assim, este diploma deixou ainda em aberto a possibilidade de conversão em prisão das penas disciplinares de multa (artigo 116º do CPDMM) - possibilidade que se manteve até que o Conselho da Revolução, em face do já citado Parecer nº 1/81 da Comissão Constitucional, declarasse com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do referido artigo 116º (Resolução nº 8/81, publicada no Diário da República, I série, de 29 de Janeiro de 1981), o qual veio, mais tarde, a ter nova redacção, estabelecida pelo Decreto-Lei nº 39/85, de 11 de Fevereiro.
No Código de 1943, a competência disciplinar ficou atribuída aos superiores hierárquicos, ao passo que a competência penal foi reservada aos tribunais marítimos aí previstos. Posteriormente, porém, face ao disposto no artigo 213º, nº 3, da Constituição de
1976, a competência para julgar os crimes previstos no CPDMM passou para os tribunais comuns.
5. Dispõem os artigos 132º e 133º do CPDMM:
Art. 132º - É considerado desertor o tripulante que, não havendo motivo justificado, deixar partir o navio para o mar sem embarcar e, bem assim, aquele que sem autorização superior abandonar o serviço de bordo durante cinco ou mais dias consecutivos.
Art. 133º - O tripulante que desertar no porto de partida será punido com prisão simples até um ano e aquele que desertar em qualquer outro lugar será punido com prisão simples até dois anos.
6. Sobre a norma do artigo 132º, o tribunal recorrido teceu as seguintes considerações:
Pergunta-se: o cidadão que abandona o seu contrato de trabalho em terra comete o mesmo acto de deserção que o que abandona o seu trabalho de marítimo?
A resposta, é claro, é não. Mas isso, a nosso ver, não viola o princípio da igualdade.
Este tem implícito o comando de tratar igual o que é igual, e desigual o que é desigual. Ora, parece-nos, a consideração de que um navio é uma parcela do território nacional que é preciso fazer regressar, é o único elemento que pode fazer a diferença, a desigualdade.
Para além disso, em tudo aquilo em que a punição dos arts. 132 e 133 do CPDMM tenha a ver apenas com razões económicas, a punição do abandono do trabalho a bordo e a não punição do abandono do trabalho em terra corresponde a um tratamento desigual de situações iguais.
Nesse sentido, a disposição do artigo 132 CPDMM será inconstitucional.
Ora bem: as funções que o arguido desempenhava a bordo eram as de pescador. Sem terem, portanto, de perto ou de longe, a ver com a possibilidade do navio, em qualquer momento, regressar a Portugal.
É portanto inconstitucional a disposição dos arts. 132 e 133 CPDMM enquanto punindo o arguido, ou seja, alguém que, sendo tripulante do navio, não tem a ver com a possibilidade de o mesmo regressar a Portugal em segurança com os seus tripulantes.
Assim, decidindo:
Julgo inconstitucional a disposição do art. 132 do CPDMM (Dec.-Lei nº 33.252, de 20.Nov.43), na parte em que pune como desertor alguém que, sendo tripulante de um navio, não tem funções que se liguem directamente ao funcionamento do mesmo navio e sua equipagem.
7. Portanto, segundo a decisão do tribunal a quo, a incriminação do abandono do navio só pode ter por fundamento a consideração de que este é uma parcela do território nacional, e, portanto, só pode ser punível o abandono que ponha em causa a possibilidade de o navio regressar ao país. Quanto ao mais, não haverá fundamento para tratar esse abandono de forma diversa do abandono do trabalho em terra, que constituirá um simples ilícito juslaboral.
Ao estender a incriminação para lá desses limites, isto é, ao prever a punição como desertor de um simples pescador cujas funções a bordo nada teriam a ver, nem de perto nem de longe, com a possibilidade desse regresso do navio, a lei ordinária violaria o princípio constitucional da igualdade.
É bem verdade que poderia opor-se a esta linha de raciocínio, desde logo, que, na pesca de alto-mar, a segurança da navegação é assunto que diz respeito a todas as categorias de membros da equipagem. Por exemplo, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março
(Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho do Pessoal da Marinha do Comércio), refere-se expressamente um «princípio da polivalência das funções a bordo».
Todos os elementos embarcados podem, pois, ser chamados a desempenhar tarefas que têm a ver com o prosseguimento da viagem e a segurança do navio. E, consequentemente, com a falta de condições de navegabilidade.
Em sentido oposto se poderia ripostar que tal agravamento de risco se afigura demasiado abstracto e vago, já que as funções de navegação que um pescador é normalmente chamado a desempenhar são marginais e indiferenciadas, não têm um carácter permanente nem premente, e nelas a substituição desse pescador por outro elemento da equipagem pode normalmente realizar-se sem problemas de maior. Assim, tais funções resultantes da polivalência do pessoal embarcado não se afigurariam decisivas para alcançar o desiderato de fazer navegar o navio até ao seu destino e de garantir o seu regresso.
8. A questão da igualdade de situações entre o pessoal de terra e ao pessoal do mar, é, pois, duvidosa. Mas, haja ou não aí violação do princípio da igualdade, poderia também perguntar-se se a norma incriminadora não criará uma situação de trabalho obrigatório.
Como é sabido, a Constituição consagra o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade do trabalhador (artigo 47º, nº 1). Esta liberdade consiste, por um lado em não poder ser-se obrigado a exercer uma certa actividade e, por outro lado, em não poder ser-se impedido de exercê-la.
O que sejam as restrições impostas pelo interesso colectivo, é matéria que a Constituição não aborda especificamente. Mas não se deverá deixar de ter aqui em conta os preceitos e princípios decorrentes do direito internacional que vincula Portugal nesta matéria, designadamente o artigo 4º, nº 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que proíbe a imposição de trabalho forçado ou obrigatório, bem como a Convenção nº 29 da O.I.T. sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 28 de Junho de 1930, e a Convenção nº 105 da O.I.T. sobre a Abolição do Trabalho Forçado, de 25 de Junho de 1957 (aprovadas para ratificação respectivamente pelo Decreto-Lei nº
40 646, de 16 de Junho de 1956, e Decreto-Lei nº 42 381, de 23 de Novembro de
1959).
A Convenção nº 29 da O.I.T. define como trabalho forçado ou obrigatório qualquer trabalho ou serviço exigido sob a ameaça de uma pena, e para o qual o interessado não se ofereceu voluntariamente
(artigo 2º, parágrafo 1º).
A Comissão Europeia dos Direitos do Homem tem jurisprudência no sentido de que para se considerar o trabalho como forçado ou obrigatório é preciso, cumulativamente, que: a) o trabalho seja realizado contra a vontade do interessado; b) a obrigação imposta ao trabalhador seja injusta ou opressiva, ou o trabalho inútil, penoso ou vexatório (v. pormenores em J. Velu e R. Ergec, La Convention Européenne des Droits de l'Homme, Bruylant, Bruxelles, 1990, págs. 227-229). Por outro lado, o artigo 4º, nº 4, da Convenção Europeia estabelece que não se considera trabalho forçado ou obrigatório o trabalho prisional normal, o serviço militar e o serviço cívico imposto a objectores de consciência, bem como o serviço exigido em caso de emergência ou de calamidade pública, e finalmente o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.
Ora, poderia defender-se que o trabalho a bordo, imposto a quem não tem funções directamente relacionadas com a navegabilidade e a segurança da embarcação, não cabe em qualquer destas alíneas de exclusão, pelo que teria de ser considerado, neste sentido, trabalho obrigatório. Nesta perspectiva, a norma incriminadora em causa seria, portanto, ilegítima.
Porém, é preciso assinalar que a jurispudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem se tem revelado prudente em certos casos de fronteira entre o que deve considerar-se ou não trabalho obrigatório segundo a Convenção, como resulta da análise dos casos Iversen e Van der Mussele.
O caso Iversen girou à volta da colocação obrigatória de dentistas em regiões rurais da Noruega, imposta por uma lei deste país de 1956, que punia criminalmente a recusa do médico colocado. A Comissão entendeu, por maioria, não haver aí infracção ao artigo 4º da Convenção, mas não houve total identidade de fundamentação entre os membros que compunham a corrente maioritária. Para quatro destes, não ocorria trabalho forçado ou obrigatório, já que a situação que se verificava não era injusta nem opressiva, uma vez que esse serviço era de curta duração, assegurava uma remuneração satisfatória, só se verificava em relação a lugares não preenchidos, e não comportava uma atitude disciminatória, arbitrária ou punitiva; segundo outros dois membros desta corrente maioritária, o trabalho apenas era autorizado nos termos do parágrafo 3º do artigo (que admite a requisição de serviços em caso de crises ou calamidades). Assim, a Comissão não recebeu a queixa, mas houve quatro votos discordantes que se baseavam no facto de o trabalho em causa ser imposto sob a cominação de sanções penais e a decisão foi muito criticada na altura (Processo nº 1468/62, Decisão de 17 de Dezembro de 1963, v. Velu / Ergec, cits.).
O caso Van der Mussele (23 de Novembro de
1983) tinha a ver com a situação dos advogados que, na Bélgica, eram obrigados a desempenhar, sem quaisquer honorários, as funções de defensores oficiosos. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou não haver aí trabalho obrigatório, uma vez que o patrocínio gratuito não saía dos marcos da actividade profissional do advogado, tinha por contrapartida as vantagens inerentes à sua profissão e não constituía um encargo excessivamente pesado; mas um aspecto interessante desta decisão foi a afirmação de que não basta ter havido uma prévia aceitação do trabalho pelo interessado para que se possa concluir não ser tal trabalho obrigatório, sendo necessário ter igualmente em conta outros elementos de apreciação (Tribunal Europeo de Derechos Humanos -
1959/1983, Cortes Generales, Madrid, págs. 982 e segs.).
9. Seja como for, uma abordagem mais incisiva da matéria em causa é, porém, a que pode ser feita à luz do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das penas) que, como é sabido, limita a intervenção da norma incriminadora aos casos em que não é possível, através de outros meios jurídicos, obter os fins pretendidos pelo legislador.
É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada 'constituição penal' (artigos 27º e seguintes da Constituição). Todavia ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental.
Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal - Parte General,trad., Bosch, 1986, pág. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para «assegurar a convivência humana na comunidade».
Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão constitucional de 1982.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira,
(Constituição da República Portuguesa Anotada, vol 1º, pág. 170), o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação
(as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
Ora, se parece controversa a afirmação de que a norma incriminadora em causa viola o princípio da proporcionalidade na primeira destas decorrências, e se não parece ainda totalmente líquido que o viola na segunda, já é indiscutível que o viola na terceira.
Com efeito, ao tornar criminosa a conduta de um trabalhador de bordo cujas funções não estão directa e normalmente relacionadas com a segurança do navio, mas apenas têm a ver com a actividade económica através dele exercida, a norma em causa revela-se excessiva.
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» (O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Coreia, I, págs.806/807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes - ou, sequer, caber no objecto do direito penal - as condutas, entre outras, que, «violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só deve intervir como ultima ratio da política social» (O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 323).
Pode, assim, reconhecer-se que haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para efectuar uma «ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto», para averiguar «se o sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a importância do interesse estatal que se trata sde salvaguardar», já que «se o sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de proporcionalidade»
(Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal, Colex, pág. 225).
A este propósito, escreveu José de Sousa e Brito (A Lei Penal na Constituição, Estudos Sobre a Constituição, vol. 2º, pág. 218):
Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa limitação mais ou menos grave dos direitos individuais, o princípio restritivo dirá que essa limitação será a menor que as necessidades da conservação e da paz sociais consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a convicção de que, se a sanção fosse suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em causa.
É evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva.
In casu, a incriminação não é, claramente, necessária para assegurar a navegabilidade da embarcação, tendo em conta as funções atribuídas ao arguido. E, para permitir um regular desenvolvimento da actividade económica da pesca de longo curso, configura-se como um recurso a meios desproporcionadamente gravosos para a prossecução desse objectivo, só compreensível por se tratar de uma disposição obsoleta, constante de um diploma pré-constitucional, elaborado à luz de valores evidentemente contraditórios com os consignados na Constituição vigente .
Assim, tal norma, ao não respeitar a subsidiariedade do direito penal, viola os princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, decorrentes da ideia de Estado de direito democrático.
III - DECISÃO
10. Face ao exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 132º do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei nº 33.252, de 20 de Novembro de 1943, na parte em que estabelece a punição como desertor daquele que, sendo tripulante de um navio e sem motivo justificado, o deixe partir para o mar sem embarcar, quando tal tripulante não desempenhe funções directamente relacionadas com a manutenção, segurança e equipagem do mesmo navio.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Novembro de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra (vencido nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão nº
634/93) José Manuel Cardoso da Costa