Imprimir acórdão
Proc. nº 183/93
1ª Secção Cons. Rel.: A. Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Tribunal do Trabalho de Leiria, em autos de execução por coima, sendo exequente o Ministério Público e executada A., dirigiu ao Tribunal Judicial de Alcobaça carta precatória para penhora e subsequentes diligências.
Em despacho de 17 de Fevereiro de 1993, o Juiz do Tribunal Judicial de Alcobaça julgou este tribunal incompetente em razão da matéria para a prática dos actos deprecados e, em consequência, competente o Tribunal do Trabalho de Leiria. Fê-lo nos seguintes termos:
'Solicita o Tribunal do Trabalho de Leiria que se realize a penhora dos bens que identifica e que a essa penhora proceda este Tribunal Judicial de Alcobaça.
Supõe-se que o pedido de proceder à penhora se baseia no disposto no artigo 26º, nº1, do Código de Processo do Trabalho, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, o qual dispõe que
'quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal do trabalho sediado naquela comarca, se o houver, e, não o havendo, ao tribunal de competência genérica com sede naquela comarca'.
Porém, esta disposição foi julgada 'organicamente' inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Agosto de 1992.
Assim, a inconstitucionalidade do preceito em que se baseia a remessa da presente carta precatória determina que se considere aplicável a anterior redacção do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, que, conjugada com o Decreto-Lei nº 214/88 (Regulamento da Lei Orgânica dos Tribunais), confere competência para realização da diligência deprecada ao tribunal deprecante.
Em síntese, decide-se considerar este Tribunal Judicial de Alcobaça incompetente em razão da matéria, considerando competente para a realização da diligência o Tribunal do Trabalho de Leiria'.
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 280º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Constituição da República, e dos artigos 70º, nº 1, alínea a), 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, 75º, nº 1, 75º-A, e 78º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
Alegando, o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal sustentou que 'a norma do nº 1 do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, na redacção do Decreto-Lei nº 315/89, na medida em que alterou as regras de atribuição de competência para o cumprimento de deprecadas emanadas dos tribunais do trabalho, interferiu no domínio da competência legislativa reservada da Assembleia da República, violando a alínea q) do nº 1 do artigo
168º da Constituição'.
II - A fundamentação
1. O Governo, no uso da competência legislativa que lhe confere o artigo 201º, alínea a), da Constituição da República, editou o Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, com o fim de criar 'os mecanismos processuais adequados à efectivação do direito à impugnação do despedimento colectivo'.
No preâmbulo anunciou também 'a oportunidade para esclarecer as dúvidas que têm surgido relativamente à questão da competência para o cumprimento de deprecadas cujas diligências devem ter lugar em comarcas onde não haja tribunais do trabalho', e, depois, no artigo 1º, estabeleceu uma redacção para o artigo 26º do Código de Processo do Trabalho. É assim:
'1 - As citações e notificações que não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal do trabalho sediado naquela comarca, se o houver, e, não o havendo, ao tribunal de competência genérica com sede naquela mesma comarca ou ainda, em qualquer destes casos, à autoridade administrativa ou policial territorial competente.
2 - ...'.
É a norma transcrita do nº 1 que aqui se constitui em objecto do recurso de constitucionalidade. O juiz do Tribunal Judicial de Alcobaça recusou a sua aplicação no despacho de 17 de Fevereiro de 1993, considerando a incidência dessa norma sobre matéria da reserva de competência legislativa da Assembleia da República [Organização e Competência dos Tribunais] e que o Governo a decretara sem autorização parlamentar.
2. A Constituição determina, no artigo 168º, nº 1, alínea q), que é da exclusiva competência da Assembleia da República 'legislar (...) sobre organização e competência dos tribunais (...) salvo autorização ao Governo'. Trata-se aí de uma reserva de toda a matéria de organização e competência dos tribunais, com ressalva apenas das modificações de competência decorrentes da adopção de uma certa forma processual (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993, p. 675; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 25/88, 3/89 e 356/89, in D.R., II Série de 7-5-1988 e de 12-4-1989, I Série, de 23-5-1989, respectivamente; e, quanto à ressalva, cf. Acórdão nº 404/87, in D.R., II Série, de 21-12-1987, solução acolhida em outros acórdãos tirados em processos sobre extinção de colonia).
É com a norma constitucional do artigo 168º, nº 1, alínea q), assim entendida, que há-de ser confrontado o artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho. E, indagar de eventuais efeitos modificativos da competência dos tribunais operados nessa mesma alteração pressupõe ter presente a formulação originária do artigo 26º. Era a seguinte:
'Artigo 26º Citações, notificações e outras diligências em comarca alheia
As citações e notificações que não possam ou não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal competente autoridade administrativa ou policial territorialmente competente'.
(Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº
272-A/81, de 30 de Setembro).
Do confronto entre a nova e a velha redacção do artigo 26º conclui-se aqui como no Acórdão nº 139/92 (D.R., II Série, de 21-8-1992), que, em outro processo, tratou a mesma questão de constitucionalidade. É irrecusável que a solução legislativa agora consagrada 'envolve alteração quer da competência material dos tribunais comuns quer da competência territorial dos tribunais de trabalho.
Enquanto, por força do art. 26º do Código de Processo do Trabalho, na sua versão originária, o tribunal competente para o cumprimento de deprecadas emanadas de processos do foro laboral era o tribunal competente em matéria de trabalho com jurisdição na área onde devesse ser praticado o acto deprecado, o nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei nº
315/89, veio atribuir competência para o cumprimento de deprecadas do tribunal de competência genérica sediado na comarca onde tiver de praticar-se o acto, excepto se nessa comarca estiver sediado um tribunal de trabalho'.
E, assentando numa ponderação do âmbito da reserva de da Constituição, afirmou a seguir:
'Seja como for, e mesmo nesta questão tão restrita de execução de cartas precatórias para citações ou notificações e outros actos processuais, sempre se há-de considerar relevante que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido modifique regras de competência em razão da matéria, afectando tribunais de competência genérica e tribunais especializados, do mesmo passo que é também modificada a área territorial de competência dos próprios tribunais de trabalho, fixada anteriormente à modificação de 1989 pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987 e seu Regulamento.
Daí a conclusão de que o art. 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de
21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do art. 26º do Código de Processo do Trabalho, é organicamente inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição' (cf., igualmente, os Acórdãos nºs.
374/92, 375/92, 118/93, 119/93, 122/93, 128/93, 129/93, 130/93, 131/93 e 157/93,
191/93, 192/93, 193/93, 198/93, 199/93, 200/93, 244/93, 245/93, 250/93, 272/93,
273/93, 279/93, inéditos).
É essa jurisprudência que se reafirma neste acórdão.
Aliás, à mesma solução conduz (por maioria de razão) uma interpretação que não reconheça ao Governo a possibilidade de, sem autorização legislativa, intervir na regulação de matéria da reserva do Parlamento, mesmo sem efeitos inovatórios no sistema jurídico (cf., a propósito, as declarações de voto apostas ao Acórdão nº 373/91, in D.R., I Série-A, de 6-11-1991).
III - Decisão
Nestes termos decide-se julgar inconstitucional a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, por violação do artigo
168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República, negando, assim, provimento ao recurso e confirmando a decisão recorrida.
Lisboa, 11 de Maio de 1993
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto aposta ao Acórdão nº 139/92)
Luís Nunes de Almeida