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Proc. nº 192/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A A. instaurou execução, no 7º Juízo Cível de Lisboa, contra B. e mulher, C..
Os executados defenderam-se por embargos, invocando, além do mais, a ilegitimidade de representação da exequente e a falta de capacidade judiciária da respectiva comissão liquidatária para promover a execução. Segundo alegaram, a comissão liquidatária não pode representar a A. nem tem capacidade para estar por si em juízo, uma vez que são contrárias à Constituição as normas ao abrigo das quais foi emitida a portaria que ordenou a liquidação daquela instituição bancária - o artigo 11º do Decreto-Lei nº 30.689, de 27 de Agosto de
1940.
Nos autos de embargos, foi proferido despacho saneador que concluiu pela improcedência destas excepções relativas à ilegitimidade e incapacidade judiciária e elaborou especificação e questionário. Os executados/embargantes interpuseram, para o Tribunal de Relação de Lisboa, recurso de agravo que foi admitido para subir a final. E, após audiência de discussão e julgamento em primeira instância, foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos e condenou os embargantes como litigantes de má fé.
Os embargantes apelaram então para o Tribunal de Relação de Lisboa que, começando por apreciar o agravo relativo às excepções, julgou os embargos procedentes e consequentemente extinta a execução, revogando a sentença recorrida.
A exequente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça; e o Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional, relativamente à questão da inconstitucionalidade do artigo 12º do Decreto-Lei nº
30.689. Nas alegações aqui produzidas, pronunciou-se, porém, pela confirmação da decisão em causa.
Corridos os vistos, a A. apresentou requerimento pedindo que o relator a admitisse como recorrida nos autos - o que foi indeferido.
Cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. O presente recurso foi interposto obrigatoriamente pelo Ministério Público, conforme estabelecido no artigo 280º, n.ºs 1, alínea a), 3 e
6, da Constituição, e artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
A decisão recorrida considerou contrárias ao disposto no artigo
205º da Constituição as normas ao abrigo das quais foi emitida a portaria que ordenou a liquidação da A.. Tais normas não foram expressamente identificadas na decisão. No entanto, o Ministério Público, no requerimento de interposição de recurso, indicou o artigo 12º do Decreto-Lei nº 30.689 e a portaria já referida; e nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, restringiu claramente o
âmbito do recurso à 'questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 12º do Decreto-Lei nº 30.689, na parte em que estabelece que a portaria que determina a liquidação do estabelecimento bancário constitui para todos os efeitos declaração de falência do mesmo estabelecimento'.
Assim - e ainda que outras normas tivessem sido desaplicadas pelo tribunal a quo, só sobre o mencionado segmendo normativo deste artigo 12º do Decreto-Lei nº 30.689 poderá o Tribunal Constitucional pronunciar-se, conforme resulta do disposto nos artigos 71º, nº 1, e 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e artigo 684º, nº 3, do Código de Processo Civil. Quanto à restrição do objecto do recurso decorrente das alegações das partes, já assim decidiu também o Tribunal Constitucional, entre outros casos, nos Acórdãos n.ºs 296/88 e
297/88, publicados no Diário da República, II série, de 11 de Abril de 1989.
Mas vejamos se tal segmento normativo foi desaplicado pela decisão recorrida.
3. De acordo com o regime legal instituído pelo Decreto-Lei nº
30.689, a partir da altura em que os estabelecimentos de crédito suspendem pagamentos, têm um prazo de 90 dias para se reconstituírem, sendo-lhes nomeado desde logo pelo Ministro das Finanças um comissário do Governo para intervir na administração até a situação ser resolvida. Mas se, decorridos esses 90 dias, o estabelecimento não retomar as condições normais de funcionamento, ser-lhe-á retirada a autorização para exercer o comércio bancário e ordenar-se-á a sua imediata liquidação, por portaria do Ministro das Finanças (hoje, por portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças - artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 23/86, de 18 de Fevereiro). A liquidação é promovida por uma comissão liquidatária constituída pelo delegado do Governo (na qualidade de presidente), e por dois vogais, representantes respectivamente dos credores, e do banqueiro ou sócios do estabelecimento (artigos 1º, 11º e 20º).
Os artigos 11º, 12º e 21º, nº 1º, do Decreto-Lei nº 30 689, de 27 de Agosto de 1940, estabelecem o seguinte:
Art. 11º. Não tendo o estabelecimento bancário podido restabelecer, dentro do prazo fixado no artigo 1º, as condições normais de funcionamento, o comissário do Governo dará conhecimento do facto à Inspecção do Comércio Bancário, para o efeito de, por portaria do Ministro das Finanças, lhe ser retirada a autorização de exercício do comércio bancário e ordenada a sua imediata liquidação, que abrangerá os bens presentes e os que ulteriormente lhe advenham e será da competência da comissão constituída nos termos do artigo 20º.
Art. 12º. A portaria que determina a liquidação do estabelecimento bancário constitui para todos os efeitos declaração de falência do mesmo estabelecimento e não admite impugnação ou recurso. Art. 21º. À comissão liquidatária compete, salvas as restrições constantes deste decreto, praticar todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa do estabelecimento bancário e especialmente:
1º Administrar a massa e representá-la activa e passivamente em juízo e fora dele; ...
4. Ora, quanto a estas normas, o Tribunal de Relação de Lisboa teceu as seguintes considerações:
«Se o Ministro das Finanças, juntamente com o Primeiro-Ministro (nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 23/86, de 18/2), podem retirar à instituição bancária a autorização para ela continuar a exercer o comércio bancário, o respectivo acto administrativo, consubstanciado na portaria que assim dispõe, não pode, só por si, declarar a instituição bancária dissolvida e, consequentemente, em liquidação, considerando-se a sociedade na situação de falência, porque a decisão sobre estas matérias só pode revestir a natureza de acto jurisdicional.
Porém, a sociedade exequente não está devidamente representada porque, para o estar, deveria sê-lo através da sua direcção ou conselho de administração (artº
20º, nº 1, do Dec.-Lei nº 136/79, de 18/5), e não através da comissão liquidatária nomeada em consequência da portaria inconstitucional que declarou em situação de falência a referida instituição de crédito. ...»
5. A dissolução é o processo (facto de execução continuada) que conduz à extinção da sociedade. A liquidação é uma operação que surge nesse processo, antes da extinção efectiva: é o complexo de actos que é necessário praticar para reduzir os valores da sociedade a uma massa partilhável entre os sócios, segundo ensinava José Tavares, Sociedades e Empresas Comerciais, pág.
661. Raul Ventura define a liquidação como o conjunto de actos realizados com o fim de dar ao património social uma constituição que, ressalvados os direitos de terceiros e tendo em conta as convenções entre os sócios, ou na falta delas, os critérios legais, permita atribuir individualmente aos sócios os elementos existentes (Sociedades Comerciais, Dissolução e Liquidação, vol I, pág. 30).
A falência é uma situação jurídica, em que o comerciante está impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações. Tal situação ou estado, uma vez declarada, produz efeitos relativamente ao falido, aos credores, e aos actos prejudiciais à massa falida. A declaração de falência é feita pelo tribunal, no processo especial previsto nos artigos 1135º e seguintes do Código de Processo Civil. Da declaração de falência decorre um conjunto de actuações que conduzem essencialmente à verificação do passivo e à liquidação judicial do activo, embora esta última possa ser suspensa se os credores nisso acordarem
(pois a liquidação faz-se aqui em benefício destes). Em relação às sociedades, a declaração de falência é uma causa de dissolução (artigo 141º, nº 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais).
Tradicionalmente, aponta-se como modalidades de liquidação a extrajudicial (assim se designando a liquidação consensual, feita por acordo unânime dos sócios) e a judicial (em que o tribunal intervém). A liquidação realizada no processo de falência é uma liquidação judicial em benefício dos credores, havendo porém outras possibilidades de liquidação judicial, em benefício dos sócios (há também casos de liquidação judicial de heranças, em benefício do Estado).
Assim, o processo de falência não se reduz à fase da liquidação propriamente dita. Nele, há uma primeira fase, que pode ou não culminar na declaração de falência; e só depois se abre a fase de liquidação judicial.
A estas modalidades de liquidação (judicial e extrajudicial), o Decreto-Lei nº 30.689 veio acrescentar, no que se refere aos estabelecimentos bancários, uma terceira modalidade, que é ordenada por uma portaria do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, a qual 'constitui para todos os efeitos declaração de falência'.
No entanto, nos presentes autos, o que importa apreciar não é, em rigor, o regime legal da liquidação constante do Decreto-Lei nº 30.689, ou a equiparação à falência do acto administrativo que ordena essa liquidação. O que importa apreciar é apenas a disposição que define quem é que representa em juízo o estabelecimento bancário depois de ter sido ordenada a liquidação.
Efectivamente, nos presentes autos, o tribunal a quo foi chamado a decidir uma excepção, deduzida nos embargos de executado, segundo a qual a A. não estava devidamente representada em juízo. E decidiu-a, com base nas considerações acima transcritas, no sentido de que efectivamente a A. não estava devidamente representada pela comissão liquidatária.
Ora, é certo que a comissão liquidatária havia sido nomeada pela decisão administrativa que ordenou a liquidação da A.. Mas a composição e os poderes de representação judiciária dessa comissão estão estabelecidos respectivamente nos artigos 20º e 21º, nº 1º, do Decreto-Lei nº 30.689 - e, se tais poderes têm a ver com o facto de ter sido ordenada a liquidação (artigo
11º), a verdade é que em nada dependem do valor jurídico (declaração de falência
- artigo 12º) que tal decisão administrativa possa ter.
Na verdade, o que está aqui em causa não são os poderes que a lei atribui à comissão liquidatária por equiparar essa decisão administrativa à declaração de falência - poderes que se traduziriam em subtrair ao tribunal a competência que este normalmente tem no âmbito do processo de falência. O que está em causa são a composição da comissão liquidatária e os poderes que a lei lhe atribui independentemente de tal equiparação e que poderia atribuir-lhe sem ela: os poderes de representação do estabelecimento bancário em juízo. Trata-se de poderes referentes a actos que o estabelecimento bancário pratica como parte em juízo, e que portanto a lei não subtrai ao tribunal, pois até prevê expressamente que só perante este podem ser exercidos - por exemplo, instaurar uma acção executiva contra os devedores da sociedade, como aconteceu no presente caso.
Assim, é claro que a decisão recorrida não desaplicou, nem podia desaplicar, a norma constante do artigo 12º do Decreto-Lei nº 30.689, apontada pelo Ministério Público.
Pelo que não pode conhecer-se do objecto do recurso, tal como ele foi delimitado pelo recorrente.
III - DECISÃO
Consequentemente, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Lisboa, 5 de Maio de 1993
Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa