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Processo nº. 233/93 Plenário Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam no Tribunal Constitucional:
I Questão
1. No dia 7 de Abril de 1993, o Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 278º., nº. 2, da Constituição, e 57º. e seguintes da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhes foi dada pela Lei nº. 85/89, de 7 de Setembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 2º, 3º, nº. 2, e 4º. de um decreto sobre 'acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral'. Tal decreto foi aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores no dia 26 de Março de 1993 e foi recebido pelo requerente no dia 2 de Abril do mesmo ano.
2. As normas ora submetidas à fiscalização preventiva da constitucionalidade dispõem o seguinte:
Artigo 2º Acréscimo da lista de utentes
Considera-se aumento de lista a inscrição de utentes, a partir de 2000 até ao máximo de 2500.
Artigo 3º Remuneração
2 - O montante referido no número anterior poderá ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e Segurança Social, sempre que tal se justifique.
Artigo 4º Prestação de trabalho
1 - O aumento da lista de utentes implica, para além do horário de trabalho a que o médico está sujeito, a prestação de trabalho proporcional ao número de utentes inscritos, tendo como referência 6 horas semanais por 500 utentes.
2 - A prestação de trabalho acrescida ao horário a que o médico está sujeito não dá lugar ao abono de trabalho extraordinário.
3. O requerente entende que as normas transcritas são inconstitucionais, aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos:
a) O artigo 2º. será inconstitucional por contrariar o disposto na alínea a) do nº. 1 do artigo 59º da Constituição, que atribui a todos os trabalhadores o 'direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual'. É que o regime legal das carreiras médicas em vigor em todo o território nacional impõe o limite de 1500 utentes para cada médico de clínica geral (alínea a) do artigo 20º do Decreto-Lei nº. 73/90, de 6 de Março). Ora, a norma sub judicio determinaria que um médico de clínica geral que tivesse a seu cargo 1999 utentes recebesse, nos Açores, a mesma remuneração que lhe seria atribuída, no Continente, por prestar serviços a 1500 utentes. Mesmo que este acréscimo de utentes não implicasse alteração do período normal de trabalho, seria maior a intensidade do trabalho prestado e, nesse sentido, seria maior a sua quantidade.
b) Por seu turno, o nº. 2 do artigo 3º. será inconstitucional, em conjugação com o nº. 1 do mesmo artigo, que estabelece que
'o aumento da lista é remunerado por uma importância mensal fixa, por utente inscrito, cujo montante mínimo será de duzentos escudos'. A actualização deste montante mínimo por simples despacho conjunto de membros do Governo Regional dos Açores corresponderia a uma modificação da norma legal. Assim, seria violado o disposto no nº 5 do artigo 115º da Constituição (com a redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional nº. 1/82, de 30 de Setembro): 'Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos'.
c) Por fim, o artigo 4º implicaria o alargamento do período normal de trabalho dos médicos, previsto no nº. 3 do artigo 9º. do Decreto-Lei nº. 73/90, de 6 de Março, em 6 horas semanais. Ora, a previsão deste período normal de trabalho contraria o disposto na alínea b) do nº. 2 do artigo
59º. da Constituição, que atribui ao Estado 'a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho'. Violará, por outro lado, o disposto na alínea a) do artigo 230º da Constituição, que veda às regiões autónomas 'restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores'. E violará, ainda, o disposto nos artigos 115º., nº. 3, e 229º, nº 1, alíneas a), b) e c), da Constituição, por estar em causa matéria de direitos dos trabalhadores, que reclama a intervenção do legislador nacional e que é, portanto, reservada aos
órgãos de soberania.
4. Notificada para se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, nos termos do disposto no artigo
54º. da Lei nº. 28/82, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores sustentou que as normas em apreciação respeitam a Constituição, expendendo, em síntese, esta argumentação:
a) O artigo 2º não ofende o princípio de que a trabalho igual deve corresponder salário igual, porque a alínea a) do nº. 1 do artigo 20º. do Decreto-Lei nº. 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico, mas sim uma mera indicação legal, com o fim de promover a personalização das relações entre ele e os utentes, o que é documentado pela expressão 'de cerca'. Assim, a Administração de Saúde pode aumentar o número de utentes atribuídos a cada médico, tendo em conta, entre outras razões, os recursos existentes. Por outro lado, os clínicos da Região Autónoma dos Açores auferem um subsídio mensal referente ao número de utentes que tenham a se cargo para além de 1500, de acordo com a localização do concelho, tal como os clínicos dependentes da Administração Central, ao abrigo do nº 5 do artigo 11º do Decreto-Lei nº. 310/83, de 3 de Agosto, com o montante previsto na Portaria nº
796/91, de 9 de Agosto. Deste modo, a norma em apreciação instituiria uma remuneração suplementar, com o fim de aumentar a produtividade: os médicos da Região Autónoma dos Açores passariam, afinal, a auferir remunerações superiores aos seus colegas do Continente quando tivessem a seu cargo 2000 ou mais utentes e iguais nos casos restantes.
b) O nº 2 do artigo 3º não viola o disposto no nº 5 do artigo 115º da Constituição, por consagrar uma deslegalização parcial
(ulterior) do montante mínimo da remuneração a atribuir aos médicos (por cada utente a seu cargo a partir de 2000), a partir de uma definição legal inicial
(200$00).
c) O artigo 4º não altera os limites de duração do trabalho, normal ou extraordinário, definidos pelos artigos 9º. e 24º. do Decreto-Lei nº. 73/90. Com efeito o nº. 7 deste último artigo prevê a obrigação de os médicos prestarem até 6 horas de trabalho extraordinário por semana. O regime do decreto será menos gravoso do que este, na medida em que a prestação de trabalho dependerá do acordo do médico, nos termos do artigo 1º. Assim, não haverá violação do disposto nos artigos 59º, nº. 2, alínea b), e 229º, nº 1, da Constituição, porque não são alterados os limites máximos de duração do trabalho e porque é respeitada a lei geral da República aplicável ao caso (Decreto-Lei nº. 73/90, de 6 de Março).
II Fundamentação
A Artigo 2º do decreto
5. A exposição de motivos do decreto sobre
'acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral' identifica 'a falta de meios humanos (que) não tem permitido satisfazer, adequadamente, a procura da população', como ratio essendi do acréscimo da lista de utentes. Trata-se de medida que visa '... rentabilizar os recursos existentes', a que se pretende associar a '...concretização de medidas que incentivem o recrutamento e fixação de mais médicos ...'.
O autor da norma sustenta que ela não é inconstitucional, afirmando, desde logo, que a alínea a) do nº. 1 do artigo
20º. do Decreto-lei nº. 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico:
...
Artigo 20º Relação personalizada médico-utente
1 A personalização das relações do médico de clínica geral com os utentes é promovida principalmente da seguinte forma:
a) A cada médico é confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista;
...
Entende o Tribunal que a expressão 'cerca de', utilizada na norma, autoriza, com efeito, a ultrapassagem do número de 1500 utentes. No entanto, não se concebe que ainda admita um aumento em um terço desse número (para 2000 utentes). Literalmente, não é sustentável afirmar que
2000 utentes são 'cerca de 1500' utentes.
A fórmula utilizada pelo legislador deve ser entendida como um limite, mas não como um limite fixo. Do teor da norma decorre que se terá pretendido aceitar que a um médico seja atribuído um número ligeiramente inferior ou superior ao de 1500 utentes. O número de 2000 utentes traduz já uma alteração sensível do limite aproximado estatuído na norma.
6. A norma em apreço - o artigo 2º. do decreto - não regula, directamente, os direitos profissionais dos clínicos gerais. Ao aumentar de 'cerca de 1500' para 2000 a lista de utentes de cada médico, a norma reporta-se à ministração dos cuidados de saúde e disciplina o relacionamento - que se pretende personalizado (artigo 20º, nº 1, do Decreto-Lei nº.73/90) - entre médicos e utentes.
Desta sorte, o artigo 2º. do decreto modifica o regime fixado, a nível nacional, pela alínea a) do nº. 1 do artigo 20º. do Decreto-Lei nº. 73/90. E esse regime é aplicável nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, nos termos do disposto no nº. 2 do artigo 2º. do mesmo diploma legal, '... sem prejuízo das competências dos órgãos de governo próprio'.
7. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido, uniformemente, que o artigo 229º., nº. 1, alínea a), da Constituição consagra três requisitos - autónomos e cumulativos - a que deve obedecer a legislação emanada das regiões autónomas (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs.
92/92, 212/92, 220/92 e 328/92, todos proferidos em sede de fiscalização preventiva e publicados no Diário da República, I série-A, de 7 de Abril, 21 e
28 de Julho e 12 de Novembro de 1992, respectivamente):
a) As matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a região (limite positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (primeiro limite negativo);
c) Ao legislarem, as assembleias legislativas regionais não podem estabelecer disciplina que contrarie a Constituição e as leis gerais da República (segundo limite negativo).
8. O respeito pelas leis gerais da República constitui hoje um requisito negativo da competência legislativa das regiões autónomas, nos termos do disposto na alínea a) do nº. 1 do artigo 229º. da Constituição.
A inobservância deste requisito traduz-se, porém, em ilegalidade e não em inconstitucionalidade (cfr., a alínea c) do nº. 1 do artigo
281º. da Constituição; ver o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 133/90, Diário da República, II série, de 4 de Setembro de 1990, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p.
854). E, em sede de fiscalização preventiva, o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a inconstitucionalidade de normas - não a sua ilegalidade (cfr., para o caso em apreço, o nº. 2 do artigo 278º. da Constituição).
9. Mas a alínea a) do nº. 1 do artigo 229º. da Constituição consagra ainda como requisito negativo da competência legislativa das Regiões Autónomas, que as matérias a versar '... não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania'.
Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses reclamam que a legislação sobre matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs. 220/92, cit., e 91/84 e 256/92, Diário da República, I série, de 6 de Outubro de 1984, e I série-A, de 6 de Agosto de
1992, respectivamente). Tais matérias - e não apenas as expressamente previstas nos artigos 167º., 168º. e 201º. da Constituição - estão reservadas à competência dos órgãos de soberania.
10. Nas matérias 'com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos' inclui-se, seguramente, a definição das condições de acesso destes aos cuidados da medicina (cfr. o artigo 64º. da Constituição).Por conseguinte, é aos órgãos de soberania que compete tal definição. A norma constante da alínea a) do nº. 1 do artigo 20º. do Decreto-Lei nº. 73/90 constitui uma concretização do exercício dessa competência, que está vedada às regiões autónomas. E, como se viu, tal norma é aplicável a estas regiões, ressalvando-se apenas as competências dos seus órgãos de governo próprio (nº. 2 do artigo 2º. do mesmo diploma legal).
11. Deste modo - e abstraindo da questão de saber se são ou não (indirectamente) afectados direitos profissionais dos clínicos gerais
-, a norma sub judicio contraria o disposto na alínea a) do nº. 1 do artigo
229º., na medida em que respeita a matéria reservada à competência própria dos
órgãos de soberania. A esta luz, não pode relevar o alegado interesse específico da matéria regulada no artigo 2º. do decreto, visto que, pelo seu interesse nacional, ela está reservada aos órgãos de soberania da República.
E, embora o requerente não tenha invocado quanto ao artigo 2º. do decreto, a violação da alínea a) do nº. 1 do artigo 229º. da Constituição, o Tribunal Constitucional pode apreciar tal questão, nos termos do disposto no nº. 5 do artigo 51º.da Lei nº. 28/82.
12. Alcançada esta conclusão, inútil se torna ponderar a argumentação aduzida pelo requerente, segundo a qual um acréscimo não remunerado do número de utentes a cargo dos médicos de clínica geral, nos Açores, violaria a norma constante da alínea a) do nº. 1 do artigo 59º da Constituição, por postular que o trabalho não fosse pago segundo a sua quantidade.
Igualmente se dispensa discutir a argumentação contrária do autor da norma, segundo o qual a remuneração de 200$00 por utente a partir de 2000 (e até 2500) constituiria uma remuneração complementar de outra remuneração complementar já prevista; em suma: os clínicos gerais da Região Autónoma dos Açores seriam discriminados, mas positivamente.
B Artigo 3º, nº 2, do decreto
13. O nº 1 do artigo 3º do decreto legislativo regional estabelece que por cada utente inscrito a partir de 1999 o médico é remunerado ... por uma importância mensal fixa ... cujo montante mínimo será de duzentos escudos'. O nº 2 do mesmo artigo determina que este montante mínimo poderá ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social,
'... sempre que tal se justifique'.
Esta última norma constitui pois um desenvolvimento do regime consagrado no artigo 2º. do decreto. Deste modo, também a norma contida no nº. 2 do artigo 3º. é consequencialmente inconstitucional.
C Artigo 4º do decreto
14. O nº 1 do artigo 4º do decreto legislativo regional contém uma presunção (ilidível) de que o aumento da lista de utentes- de 2000 para 2500 - implica, no seu limite máximo, um acréscimo de 6 horas ao período normal de trabalho semanal. O nº 2 determina que 'a prestação de trabalho acrescida ao horário a que o médico está sujeito não dá lugar ao abono de trabalho extraordinário'.
Estas normas desenvolvem, igualmente, o regime previsto no artigo 2º. do decreto e também elas são consequencialmente inconstitucionais.
III Decisão
15. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2º. do decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovado em 26 de Março de 1993 sobre
'acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral', por violar o disposto no artigo 229º., nº. 1, alínea a), da Constituição e, em consequência, das normas dos artigos 3º., nº. 2, e 4º., do mesmo decreto.
Lisboa, 19 de Maio de 1993 José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração que junta).
António Vitorino (vencido nos termos da declaração junta).
Bravo Serra (vencido, de harmonia com a declaração de voto, que junto). José Manuel Cardoso da Costa
Tem voto de conformidade do Cons. Mário de Brito, que não assina por não estar presente. José de Sousa e Brito
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido no presente Acórdão pelas razões que, muito sinteticamente, passarei a expôr.
Assim:
1. Como claramente se extrai da norma constante do artº 1º do decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovado em 26 de Março do corrente ano, naquela Região, caso o número de clínicos gerais o permita, a ratio entre o clínico geral e o número de utentes haverá que obedecer ao número fixado na legislação em vigor para todo o território nacional [número esse que, mercê do estatuído no artº 20º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 73/90, de 6 de Março, é de «cerca de 1.500»].
Anteriormente à vigência daquele D.L. nº 73/90, dispunha-se no Decreto-Lei nº 310/82, de 3 de Agosto [cfr. seu artº 20º, nº 3, alínea a)], que a 'personalização das relações' do médico de clínica geral 'com os assistidos' era 'promovida principalmente', de entre o mais, de forma a que a 'cada médico em exercício de funções de clínica geral' fosse 'confiada uma população definida não inferior a 1500 utentes, nominalmente designados em lista'.
Se é certo que o diploma de 1990, mercê da matéria de que cura, aponta para que o regime das carreiras médicas constante do D.L. nº 310/82 tivesse sido substituído por aquele sobre o qual incide o aludido diploma de 1990, o que não
é menos certo é que o indicado decreto-lei de 1982 não foi objecto de expressa revogação.
Essa não expressa revogação não obstaria, todavia, a que o intérprete entendesse que o D.L. nº 310/82 estaria derrogado face à vigência de um novo diploma que veio regular o regime das carreiras médicas.
Contudo, mesmo depois de entrar em vigor o D.L. nº 73/ /90, surgiram a lume, por um lado, a Portaria nº 796/91, de 9 de Agosto - que veio, ao abrigo do nº 5 do artº 11º do D.L. nº 310/ /82, a rever, para os anos de 1984 a 1991, os quantitativos correspondentes ao subsídio adicional mensal atribuídos aos médicos da carreira de clínica geral -, e o Decreto-Lei nº 171/90, de 28 de Maio, o qual, por entre o mais, veio a estabelecer novas remunerações a abonar mensalmente aos médicos abrangidos pelo dito D.L. nº 310/82.
Significa isto, no meu entender, que, perante os diplomas atrás referidos (D.L. nº 171/90 e Portaria nº 796/91), o legislador nacional aceitou estar ainda em vigor - ao menos em certa parte - o D.L. nº 310/80.
E nessa parte, ainda no meu entendimento, não pode deixar de ser incluído o subsídio adicional mensal concedido «em função do concelho em que estiver colocado e do número efectivo de utentes inscritos a seu cargo» (cfr. artº 39º do D.L. nº 310/82), a que se reporta o quadro II anexo ao citado diploma.
Na verdade, só assim, na minha óptica, se consegue racionalmente explicar a razão de ser do Decreto-Lei nº 171/91 e da Portaria nº 796/91, emitidos, como se viu, após a vigência do D.L. nº 73/90.
Perguntar-se-á como é possível que, dispondo este último decreto-lei sobre uma matéria sobre a qual regia o D.L. nº 310/82 - aí se incluindo o que concerne à razão entre o médico de clínica geral e o número de utentes e às remunerações (cfr. artigos 11º e 20º do D.L. nº 73/90) - mantenha ainda eficácia o sistema previsor do subsídio adicional mensal, constante daquele D.L. nº
310/82, o qual, claramente, pressupõe que ao médio de clínica geral seja confiada uma população de utentes que pode alcançar um número que se situa já para além de «cerca de 1.500».
A meu ver, a resposta a uma tal questão - que, à primeira vista, poderia ser considerada ilógica - baseia-se na circunstância de a realidade fáctica nacional não ter, em concretos casos, permitido, face ao número de médicos de clínica geral e à população existente, que se viesse a concretizar a ratio médico de clínica geral/população de cerca de 1.500 utentes, desejada pelo D.L. nº 73/90.
Ora, perante essas concretas situações de impossibilidade de concretização da ratio estabelecida no D.L. nº 73/90, a fim de se poder assegurar a saúde pública, creio que foi intenção do legislador não afastar totalmente o regime instituído no D.L. nº 310/82 e segundo o qual a um médico de clínica geral poderia vir a ser confiada uma população de utentes que ultrapassasse o número de «cerca de 1.500».
A ser assim, e porque, nessas situações, em abstracto, o médico de clínica geral via o seu trabalho acrescido, tornava-se, mesmo após a vigência do D.L. nº 73/90, necessário assegurar-lhe a necessária compensação remuneratória; daí que, em tais casos, continuasse o médico de clínica geral ao qual estava confiada uma população de utentes em número superior ao de «cerca de 1.500», a vencer o subsídio a que se reporta o quadro II anexo ao D.L. nº 310/82.
Na minha perspectiva, só assim se explica e adquire coerência a sucessão no tempo dos diplomas a que acima fiz referência (D.L. nº 310/82, D.L. nº 72/90, D.L. nº 171/90 e Portaria nº 796/91) e a constância de dois diferentes sistemas no que concerne à razão médico de clínica geral/população de utentes, consoante as situações concretas encontradas no País - aqui se incluindo, como me parece óbvio, as Regiões Autónomas.
Se, de facto, como entendo, assim se passam as coisas, então há que concluir que o decreto da Assembleia Legislativa Regional em apreço em nada inova no tocante à relação médico de clínica geral/população de utentes. Na realidade, o artº 1º daquele decreto aprovado em 26 de Março de 1996, como se viu, aponta, em primeiro lugar, para que a inscrição da população em lista de utentes é assegurada de acordo com o número legalmente fixado, ou seja, o número de «cerca de 1.500» consagrado no D.L. nº 73/90; prevê, porém, que tal número,
«quando o número de clínicos gerais não permita» tal asseguramento, possa ser aumentado pelos concelhos de administração dos Centros de Saúde, com o acordo do médico, aumento que, em meu modo de ver, em algumas situações específicas, ocorre e está coberto pelo sistema legislativo existente, tal como deve ser perspectivado e atrás referi.
As diferenças que, no fundo e bem vistas as coisas, se deparam entre o consagrado nos artigos 1º e 2º (e apelando ainda ao seu artº 3º, nº 1) do decreto em análise e o sistema que a nível nacional deve ser entendido como regulando a relação médico de clínica geral/número de utentes - naqueles casos específicos em que a realidade fáctica não consegue o asseguramento de uma ratio médico/utentes na ordem de 1 para «cerca de 1.500» - são que, no decreto, por um lado, se prevê, garantisticamente, que tal relação não pode, em caso algum, ultrapassar o máximo de 2.500 utentes - garantia que não é, por qualquer forma, alcançada, em tais específicos casos em que, então, rege o sistema instituído pelo D.L. nº 310/82, uma vez que, como se alcança do quadro II anexo a este diploma, não se fixa um limite máximo acima de 2.000 utentes - e, por outro, que, quando o número de utentes ultrapasse este número, o médico de clínica geral, para além do subsídio adicional mensal previsto no artº 39º, nº 1, do D.L. nº 310/82 e no aludido quadro II a ele anexo, tem ainda direito, na Região Autónoma dos Açores, a uma outra remuneração 'complementar' de Esc. 200$00 por utente, sendo certo que esta última diferença é que explica o conceito de
«aumento de lista» - conceito esse inexistente na legislação vigente - usado no artº 2º do decreto.
Este, pois, na minha perspectiva, o entendimento a conferir, quer ao que se consagra no decreto sub specie, quer à legislação que, a nível nacional, regula a relação médico de clínica geral/população de utentes e remuneração devida àquele nas situações em que as condições existentes não permitam que tal relação se não estabeleça em 1 para «cerca de 1.500».
Nesta postura, então, não se pode dizer, na minha óptica, que o estabelecimento das assinaladas diferenças seria vedado ao legislador regional.
Neste particular, cumpre-me assinalar que é profunda a minha dissenção com a tese seguida no Acórdão de que a presente declaração faz parte integrante e que, aliás, representa a reedição de uma tese seguida maioritariamente pelo Tribunal.
Na verdade, segundo a fundamentação que se pode deduzir do Acórdão, as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem unicamente àquelas a que a Lei Fundamental reserva à competência legislativa da Assembleia da República e do Governo nos seus artigos 167º, 168º e 201º, antes abarcando, para além dessas, todas aquelas matérias que reclamam a intervenção do legislador nacional, atento o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses, o que implica que, nesses campos, ou seja, nas matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos, as Regiões Autónomas, em nenhum caso, possam desfrutar de poder normativo, porquanto este deve, e tão só, ser produzido pelos falados órgãos de soberania.
Pois bem.
Conforme já tive ocasião de realçar na declaração de voto aposta ao Acórdão nº 220/92 (publicado na 1ª Série-A, do Diário da República de 28-JUL-92) e, também como ressalta do que consta do Acórdão nº 256/92 (publicado na 1ª Série-A do jornal oficial de 6-AGO-92), de que fui relator, partilho da opinião segundo a qual a posição assumida pelo Tribunal quanto à questão da delimitação de competência do poder legislativo das Regiões Autónomas e que, uma vez mais, ficou retratada no presente Acórdão, 'deixa nas mãos dos aplicadores do direito um verdadeiro «cheque em branco» para definir' quais as 'matérias, não reservadas constitucionalmente de modo expresso aos órgãos legiferantes da República, sobre as quais há um interesse nacional obstaculante à edição normativa regional, podendo, por isso, paralizar, perante tal definição casuística, a produção de efeitos resultantes dessa edição eventualmente produzida'.
Significa isto que tenho para mim que só ali onde o Diploma Básico reserve expressamente aos órgãos de soberania a produção legislativa sobre certas matérias, é que sobre elas não pode haver intervenção legislativa das Regiões Autónomas, sendo certo que, na minha perspectiva, fora dessas matérias, não veda a Constituição tal intervenção, respeitadas que sejam esta e as leis gerais da República, e desde que exista um interesse específico regional que justifique a citada intervenção, sendo certo que, na minha óptica, aquela reserva expressa se reporta, quer às matérias elencadas nos ditos artigos 167º,
168º e 201º do Diploma Básico, quer a matérias que, concreta e especificamente, sejam detectadas em preceitos constitucionais que expressamente sejam postulantes da intervenção do legislador nacional.
Vale isto por dizer que, na minha maneira de ver, não será da natureza das matérias que se extrairá o limite negativo dos poderes legiferantes das Regiões Autónomas quando em causa não estiverem as matérias constantes dos citados artigos 167º, 168º e 201º da Constituição (e, claro, não haja ofensa desta e das leis gerais da República e esteja presente um interesse específico regional), mas sim, no fundo, da existência de concretas e expressas disposições constitucionais que, quanto à matéria de que curam, impõem, especificamente, o seu tratamento legislativo pelos órgãos de soberania dotados de poder legislativo.
Este posicionamento, por mim seguido, conduzirá a que o preceituado no decreto em apreciação - sabidas que são as difíceis e específicas condições geográficas da Região Autónoma dos Açores e a carência de médicos de clínica geral ali sediados, é amplamente justificado pela especificidade da Região Autónoma em causa, sendo certo que, in casu, a matéria objecto de tratamento em tal decreto não consta, concreta e expressamente, de disposição constitucional que exija o seu tratamento legislativo por parte dos órgãos legiferantes da República.
É certo que no presente Acórdão se faz uma referência extremamente vaga, para pretender explicar que a matéria em causa é 'de relevo imediato para a generalidade dos cidadãos', à 'definição das condições de acesso destes aos cuidados da medicina', para tanto se aludindo globalmente ao artigo 64º do Diploma Básico.
Simplesmente, penso, a referência a tal artigo que, em si, contém várias normas - umas consagradoras do direito social de protecção, defesa e promoção da saúde, outras definidoras das condições em que esse direito é realizado e outras meramente definidoras das incumbências que a esse propósito recaem sobre o Estado - , não basta para do mesmo se extrair que ali se abarca uma expressa reserva constitucional aos órgãos de soberania da produção legislativa tocante à matéria de que esse artigo trata.
Fazer uma alusão tal como a que, neste particular, é feita no Acórdão, aponta, a meu ver sem grandes dúvidas, para que se possa extrapolar que, para a maioria do Tribunal, as matérias concernentes aos direitos sociais devem ser perspectivadas como unicamente podendo sofrer tratamento legislativo pelos
órgãos de soberania, assim se vedando aí qualquer intervenção aos órgãos de governo próprio das Regiões. Ora isto, para mim, é, no mínimo, impensável, pois que, seguramente, nunca teria sido essa a intenção do legislador constituinte.
Vale isto por dizer que a maioria do Tribunal, pela postura jurisprudencial que tem assumido e que, neste ponto, até pretende ir mais além, vai, uma vez mais e com maior acentuação, restringindo a intervenção dos órgãos de governo próprio das Regiões, postura da qual, novamente o sublinho, frontalmente dissento.
2. Face à conclusão acima alcançada, torna-se evidente que, porque entendo que a norma constante do artº 2º do decreto em questão não padece de inconstitucionalidade por ferimento da alínea a) do nº 1 do artigo 229º da Lei Fundamental, não teria um tal vício (inexistente na minha óptica), que acarretar, «consequencialmente» ou «por arrastamento», a inconstitucionalidade das normas ínsitas no nº 2 do artº 3º e do artº 4º do mesmo decreto.
De todo o modo, afastando essa consequência ou esse arrastamento, ainda assim poder-se-ia pôr a questão de saber se aquelas normas, ou sejam, as normas do nº 2 do artº 3º e do artº 4º, eram, por si, portadoras de vícios a que se refere o requerente.
A resposta a uma tal questão deve, para mim, sofrer resposta negativa, convindo fazer, neste ponto, uma abordagem muito perfunctória de cada norma de per si.
3. O nº 2 do artº 3º do decreto, segundo o meu modo de ver, não viola o artigo 115º, nº 5, da Constituição.
Na realidade, tenho para mim que aquela norma consagra uma regra segundo a qual a 'remuneração complementar' a abonar aos médicos de clínica geral que, mercê das circunstâncias concretas das situações deparadas, tenham a seu cargo uma população de mais de 2.000 utentes ('remuneração' essa a acrescer
àquela a que se refere o quadro II anexo ao D.L. nº 310/82), é fixada por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social, não podendo, porém, ser inferior a Esc. 200$00 por utente.
Lida assim, como o faço, a norma do nº 2 do artº 3º do decreto em apreço, claramente, na minha opinião, não poderá violar o artigo 115º, nº 5, do Diploma Básico, já que, segundo uma tal leitura, ela não deixa de ser entendida como contendo um reenvio normativo não proibido para um acto que, desta arte, funciona como um «regulamento integrativo».
Logo, também não seria por esta via que a norma do nº 2 do artº 3º do decreto padeceria de vício de inconstitucionalidade.
4. Resta a norma ínsita no artº 4º do decreto aprovado em 26 de Março
último.
Na minha maneira de encarar a questão, e uma vez que admito a plena conformidade constitucional da norma do artº 2º - o que, logo, não consequencia ou arrasta a inconstitucionalidade da norma agora em causa - o disposto nesta
última não pode ser considerado, minimamente que seja, como violador da alínea a) do nº 1 e da alínea b) do nº 2 do artº 59º da Lei Básica.
Efectivamente, do disposto no nº 3 do artº 9º e no nº 5 do artº 24º, um, e outro do D.L. nº 73/90, resulta, inquestionavelmente a meu ver, que o horário de trabalho dos médicos da carreira de clínica geral é de 35 horas (ou de 42 horas, se assim o solicitarem), a que acresce um máximo de 6 horas (ou 12 horas, quanto a estes últimos) a prestar em serviço de urgência ou de atendimento permanente (convertíveis, por conveniência de serviço e de acordo com o médico, no dobro de horas em prevenção). Essas 6 horas (ou 12) fazem, porém, parte do horário normal e, tanto quanto se sabe, não são consideradas como correspondendo a trabalho extraordinário e como tal remunerado.
Vale isto por dizer que o horário normal destes médicos (e deixando agora de parte a opção, feita pelos médicos em regime de dedicação exclusiva, no sentido de solicitarem um horário de 42 horas) é de 35 horas semanais, mais 6 em serviço de urgência ou de atendimento permanente (convertíveis em 12 horas de prevenção).
Sendo assim, como entendo que é, então a presunção de que o acréscimo de trabalho pelos 500 utentes além dos 2.000 corresponde a 6 horas de trabalho ( e isto para aquelas situações a que acima fiz referência), não vai desencadear um acréscimo do horário normal de trabalho dos médicos em questão.
A isto é de aditar que, de todo o modo, mesmo que fosse entendível constituírem aquelas 6 horas trabalho extraordinário, o que é facto é que o nº 2 do artº 4º do decreto em causa não vai estatuir uma não remuneração por esse trabalho extraordinário. De facto, há que atentar que não são essas hipotéticas
(utilizada esta expressão no sentido de que, por vezes, pode o estado de saúde dos 500 utentes a mais de 2.000 não demandar um acréscimo de trabalho do médico e, logo, de horas de labor desenvolvido por este) horas de trabalho que são objecto de remuneração, mas sim o número de utentes - cuja mera existência, independentemente de acarretarem ou não concretamente um maior desenvolvimento de trabalho do médico - que dá lugar a uma 'remuneração complementar'.
Pretender ainda, para além da atribuição desta 'remuneração', o pagamento de trabalho extraordinário concretamente realizado e referente às 6 horas (se assim ele fosse considerado, e para mim não deve ser) seria, ao fim a ao resto, pretender uma dupla remuneração que, afinal, não tem consagração nos preceitos constitucionais apelados pelo requerente (cuja tese, reconheço, não se apresenta desprovida de lógica para quem, como ele, defende ser ilegítima a regulação constante da norma do artº 2º do decreto, o que, nessa tese, levaria a que o «acréscimo» de «cerca de 1.500» utentes para 2.000, não seria passível de compensação remuneratória).
(Bravo Serra)