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Procº nº 131/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A. - mais tarde B. - intentou no 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa uma acção com processo ordinário contra C., D. e mulher, E., F., G., H. e mulher, I., J. e marido, L., M., N. e mulher, O., P. e marido, Q., R. e S., pedindo que: a) - fosse reconhecido o direito de propriedade da autora sobre dois elevadores que ela forneceu à 1ª ré e instalou no edifício que esta então construía no lote ----- do -------------, em -------; b) - fossem os réus condenados a restituí-los à autora; c)- subsidiariamente, fosse a 1ª ré condenada a pagar à autora a quantia de 1.167.606$00, acrescida de juros de mora vincendos a 28% sobre 822.000$00; d) - cumulativamente, fosse a 1ª ré condenada a pagar à autora a quantia de 381.250$00, a actualizar de acordo com a taxa de inflação.
A autora fundou os três primeiros pedidos no facto de ter celebrado com a 1ª ré, em 23-3-1981, um contrato de fornecimento e instalação dos referidos elevadores no local acima indicado, pelo preço de 1.406.000$00, a pagar em quatro prestações, das quais a ré não pagou as 3ª e 4ª, nem a quantia referente à revisão do preço, sendo certo que havia sido estipulado que a autora permaneceria proprietária dos elevadores e respectivos acessórios até ao pagamento integral do preço.
Por outro lado, os restantes réus são condóminos do prédio onde aqueles foram instalados, sendo por eles utilizados.
O quarto pedido emerge de um outro contrato que a autora e a 1ª ré celebraram, com vista ao fornecimento de outros dois elevadores para um prédio que a segunda construía noutro lote, estando a autora autorizada contratualmente a rescindir o contrato devido a atraso verificado na obra e a pedir uma indemnização que montava a 381.250$00.
O Mmº Juiz do 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, por despacho saneador-sentença de 31 de Outubro de 1989, julgou a acção parcialmente procedente, abstendo-se de julgar a autora proprietária dos elevadores no condomínio dos autos, absolveu os réus condóminos do pedido e condenou a ré sociedade a apagar à autora a quantia de 822.000$00, acrescidos de juros vencidos à taxa legal no montante de 345.606$00 e dos vincendos até efectivo pagamento, e o montante de 381.250$00, actualizados de acordo com a inflação verificada pelo Instituto Nacional de Estatística desde 10 de Março de 1984.
2. Inconformada, recorreu a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença, 'na parte em que absolveu do pedido principal', sem que, nas respectivas alegações, tenha suscitado qualquer questão de constitucionalidade.
Com êxito, dado que aquele Tribunal, por Acórdão de 9 de Julho de
1991, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença apelada na parte em que se absteve de conhecer do pedido principal, absolveu os réus condóminos do pedido e condenou a ré sociedade no pedido subsidiário, reconhecendo o direito de propriedade da apelante sobre os dois elevadores que instalou no edifício construído pela ré sociedade e condenando os réus condóminos a restituí-los à recorrente.
3. Discordando daquele aresto, D. e outros interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este, por Acórdão de 7 de Maio de 1992, concedido a revista e revogado o acórdão recorrido para ficar a valer a sentença proferida na 1ª instância.
Fundamentando esta solução, referiu, em determinado passo, este aresto:
'3.- Aproximando o que acabamos de explicitar do caso dos autos, impõe-se a conclusão de que a autora, ao recorrer da sentença e ao limitar o objecto do recurso à distinta decisão da improcedência dos pedidos principais - os das als., a) e b) -, fez transitar, por não a ter impugnado, a também distinta decisão que julgara proceder em parte o pedido subsidiário - al. c).
Ora, tendo procedido, com trânsito, este pedido subsidiário, isso acarreta a inatacabilidade do julgado na parte em que decidiu da improcedência dos pedidos principais. É que, na verdade, segundo resulta do nº 1 do artigo
469º do CPC, o pedido subsidiário só pôde ter sido tomado em consideração e, consequentemente, proceder, por terem improcedido os pedidos principais.
Por outras palavras, a improcedência dos pedidos principais é uma inerência, isto é, uma fatal consequência da procedência do subsidiário. Se assim não se entendesse e viessem a proceder os pedidos principais, havia de improceder o subsidiário, o que não pode ser por, como vimos, a sua procedência, por não posta em crise na apelação, haver transitado.
Aliás, o caso dos autos é bem elucidativo deste desrespeito do caso julgado que se formara sobre a procedência parcial do pedido subsidiário, uma vez que, no acórdão recorrido, saltando do objecto da apelação, foi decidido
revogar 'a sentença apelada na parte em que ... condenou a ré sociedade no pedido subsidiário - al. c) da ... petição inicial'.
Decisão esta que, por violadora, como acabamos de ver, do caso julgado que vimos ter-se formado sobre a procedência parcial do pedido subsidiário, não pode ser acatada.
Passando a conhecer, nos termos do artº. 500º do CPC, oficiosamente, desta excepção, tendo em atenção o preceituado no nº 1 do art. 675º daquele mesmo Código, julgamos prevalecer sobre o julgado da Relação o decidido na sentença da 1ª Instância, ou seja, na parte ainda em discussão, improcederem, reportando-nos à petição inicial, os pedidos principais das als. a) e b) e proceder parcialmente o pedido subsidiário da al. c).
Claro que a procedência do pedido cumulado, formulado na al. d) da petição inicial, não vem discutida, pelo que também nesta parte, transitou em julgado a sentença proferida na 1ª Instância'.
4. Aquele aresto do Supremo Tribunal de Justiça foi objecto de um requerimento de aclaração apresentado pela sociedade B.. Nele a autora salientou, entre o mais, o seguinte:
'A autora (e o seu advogado) estava convicta de que o art. 3 CPC (e, no campo dos recursos, o art. 690-3) proibia as chamadas decisões-surpresa, isto
é, a decisão duma qualquer questão (de fundo ou processual) sem que ambas as partes fossem sobre ela previamente ouvidas.
O acórdão proferido, ao basear-se numa questão inteiramente nova no processo, ainda por cima com fundamento numa interpretação da vontade da autora
( ao interpor o recurso) sobre a qual não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar, parece interpretar o art. 3 CPC num sentido mais restritivo, imcompatível com a plena assunção do princípio do contraditório pela nossa lei ordinária'.
Por Acórdão de 8 de Outubro de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de aclaração.
5. Ainda inconformada, arguiu a mesma sociedade a nulidade do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1992, por violação dos artigos 668º, nº 1, alínea d), 716º e 732º do Código de Processo Civil.
No pedido realçou, inter alia, a reclamante que 'o princípio do contraditório, tal como hoje é também pacífico, significa mais do que apenas que o conflito de interesses que a acção pressupõe não pode ser resolvido sem que a parte contra a qual a pretensão é formulada seja chamada para deduzir oposição, como literalmente se diz no art. 3-1 CPC', preceito este que, 'sob pena de inconstitucionalidade, deve ser entendido como abarcando as várias vertentes do princípio do contraditório ...'. Nele referiu ainda a reclamante que 'o art.
690º CPC, nos seus nºs.1, 3 e 4, não pode deixar de ser interpretado no sentido de o tribunal de recurso não poder decidir senão com base nas alegações das partes, considerando tão-só os fundamentos que entre as partes tenham sido objecto de discussão (pela mesma razão, e por ferir o princípio da igualdade, é inconstitucional o nº 5 desse artigo) ...'.
Por Acórdão de 14 de Janeiro de 1993, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidade, com o fundamento de que o conhecimento oficioso pelo tribunal, nos termos do artigo 500º do Código de Processo Civil, da excepção de caso julgado, sem notificação às partes para se pronunciarem sobre a existência do caso julgado que determinou a concessão da revista, quando muito daria lugar a uma nulidade de processo e não a uma nulidade do acórdão, nulidade essa que, por não estar expressamente prevista na lei, deve ser havida como nulidade secundária. Ora, tratando-se de nulidade secundária, quando a autora a arguiu, já há muito tinha decorrido o prazo de cinco dias em que poderia utilmente exercitar tal faculdade.
5. Do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1992 interpôs a sociedade B. recurso para o Tribunal Constitucional, tendo no novo requerimento de interposição do recurso apresentado a convite do relator, indicado o seguinte: o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional; as normas cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie são as dos artigos 3º, 668º, nº 1, alínea d), e 690º, nºs. 1 e 2, do Código do Processo Civil; a norma constitucional violada é o artigo 20º da Constituição, integrado pelo artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e interpretado de harmonia com o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e com o artigo 14º, nº 1, parágrafo 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis Políticos; e, finalmente, a inconstitucionalidade começou por ser suscitada no requerimento de aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e foi-o mais explicitamente no subsequente requerimento de arguição de nulidade.
6. O relator no Tribunal Constitucional elaborou uma exposição, ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro), nela referindo o seguinte:
'3. Entendo que não deve tomar-se conhecimento do recurso, em primeiro lugar porque a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada
'durante o processo'.
Na verdade, a recorrente apenas suscitou a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 3º, 668º, nº 1, alínea d), e 690º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, primeiro (implicitamente) no requerimento de aclaração do aresto objecto de recurso e depois (explicitamente) no requerimento de arguição de nulidade do mesmo acórdão.
Ora, constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade, a não ser em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispunha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final (cfr., inter alia, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 90/85, 94/88 e 318/90, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985, 22 de Agosto de 1988 e 15 de Março de 1991, respectivamente).
Não se estando, in casu, perante uma situação excepcional, que justifique uma restrição àquela orientação jurisprudencial, deve concluir-se que não foi suscitada a questão de inconstitucionalidade 'durante o processo', pelo que não deve conhecer-se do recurso.
4. Mas, ainda que se estendesse que foi cumprido pela recorrente o
ónus de alegação de uma questão de inconstitucionalidade 'durante o processo', é seguro que as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada não foram aplicadas pelo acórdão recorrido.
Como resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Maio de 1992, as normas nele aplicadas foram as dos artigos 680º, nº1, e 684º, nº 2 e
4, do Código de Processo Civil e não as indicadas pela recorrente.
Também por esta razão, não deve conhecer-se do presente recurso, uma vez que constitui requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional que a norma ou normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelo recorrente 'durante o processo' hajam sido efectivamente 'aplicadas' pela decisão recorrida (ainda que de modo implícito), em termos de constituirem a sua ratio decidendi (cfr. os acórdãos acima citados)'.
Ouvida a recorrente, veio ela referir, inter alia, que se 'está perante uma situação excepcional em que a parte não podia ter suscitado a questão da inconstitucionalidade senão quando a suscitou, isto é, após a decisão da revista. Entendimento contrário levaria a que, preventivamente, se tivesse sempre, nas alegações de recurso, que alertar o tribunal de último recurso ordinário para a inconstitucionalidade que constituiria ele vir a conhecer de alguma questão ainda não levantada no processo (e impossível de identificar) sem previamente ouvir as partes ... Seria absurdo!'.
Por sua vez, os recorridos D. e outros manifestaram concordância com a exposição do relator.
7. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II- Fundamentos.
8. O relato anterior deixa imediatamente perceber que o presente recurso não reune os requisitos de admissibilidade constitucional e legalmente fixados. Com efeito, ainda que se admita que, in casu, se está perante uma situação excepcional ou anómala, na qual o interessado não dispôs, antes do pedido de aclaração do acórdão ou da reclamação da sua nulidade de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade, o certo é que as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente não foram efectivamente 'aplicadas' pelo acórdão recorrido.
A recorrente argumenta que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1992, ao conhecer oficiosamente de uma questão nova - a existência de caso julgado - sem observar o princípio do contraditório, isto é, sem dar oportunidade às partes de se pronunciarem sobre ela, deu uma interpretação inconstitucional aos artigos 3º, 668º, nº 1, alínea d), e 690º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Mas, apresentada a questão de inconstitucionalidade do modo que vem de ser assinalado, fica claro que aquelas normas não foram 'aplicadas' pelo aresto recorrido, antes foram por ele inobservadas. A norma efectivamente aplicada pelo acórdão objecto de recurso para este Tribunal foi, como ressalta da respectiva fundamentação, a do artigo 500º do Código de Processo Civil, que determina que 'o tribunal conhece oficiosamente do caso julgado'.
O que a recorrente deveria ter feito era suscitar a inconstitucionalidade da norma do artigo 500º do Código de Processo Civil, interpretada, tal como o fez o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1992, no sentido de a excepção peremptória de caso julgado ser conhecida pelo tribunal sem convidar as partes a discretearem sobre ela.
Não o tendo feito, não pode conhecer-se do recurso, uma vez que, tal como este Tribunal vem afirmando em jurisprudência uniforme e constante, constitui requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo
280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional que a norma ou normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelo recorrente 'durante o processo' hajam sido efectivamente 'aplicadas' pela decisão recorrida (ainda que de modo implícito), em termos de constituirem a sua ratio decidendi (cfr., inter alia, os citados Acórdãos nºs. 90/85, 94/88 e 318/90).
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 Unidades de Conta.
Lisboa, 4 de Novembro de 1993
Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa