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Proc. nº 89/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A. celebrou com a Câmara Municipal de B., em 6 de Setembro de 1983, um 'contrato de prestação de serviços', 'além do quadro', pelo prazo de um ano renovável, para 'exercer as funções de técnico-auxiliar de museografia de segunda classe a que corresponde o vencimento mensal equivalente
à letra M, ficando sujeito a cumprir e observar todos os deveres fixados para idêntico pessoal do quadro permanente'.
Aquela Câmara Municipal, por deliberação de 13 de Maio de 1986, sob invocação do disposto no artigo 469º, §1º, alínea c), do Código Administrativo, veio a denunciar o referido contrato, operando a denúncia a partir do seu termo, em 6 de Setembro de 1986.
Desta deliberação foi interposto recurso contencioso para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, fundamentando o recorrente o pedido de anulação do acto em vício de forma, excesso ou desvio de poder, violação do princípio da justiça, violação de lei por erro de facto e vício de violação de lei constitucional.
Ao suscitar a questão da constitucionalidade da norma do artigo 469º, § 1º, alínea c) do Código Administrativo, o recorrente indicou como violadas as disposições dos artigos 17º, 18º, 53º e 168º, alínea b) da Constituição, referindo ainda que a alínea e) daqueles § e artigo - a qual deveria ter sido aplicada no caso dos autos - sofre também de inconstitucionalidade por afrontamento dos artigos 17º, 18º, 53º, 168º, alínea b) e 268º da Lei Fundamental.
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2 - O Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 29 de Janeiro de 1988, julgou procedente o recurso e anulou o acto administrativo impugnado, considerando para tanto ter-se verificado o vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto, basicamente por entender ter havido inexactidão na listagem das faltas ao serviço dadas pelo recorrente, tidas como índice de desinteresse e falta de produtividade, que serviram de justificação à proposta de denúncia do contrato.
O Ministério Público e a Câmara Municipal de B. interpuseram então recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 18 de Maio de 1989, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida.
Para tanto, suportou-se, além de outros, nos fundamentos seguintes:
'Face à decisão recorrida e às conclusões das alegações dos recorrentes, o objecto do presente recurso consiste em saber se, como foi entendido na sentença, a deliberação de 13-5-86 enferma de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, ou se, ao contrário, como sustentaram os recorrentes, tal vício não se verifica.
A resposta que temos por correcta é neste último sentido.
O erro invocado na sentença teria consistido em a deliberação de 13-5-86 se ter apoiado em dados factuais que não corresponderiam à realidade (listagem inexacta de faltas justificadas dadas ao serviço pelo recorrido).
Todavia não se explicitou na sentença qual o erro concretamente cometido.
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Não fornecendo os autos qualquer elemento que corrobore a afirmação constante da sentença de que as faltas dadas ao serviço pelo recorrido foram listadas em termos inexactos, não pode manter-se a decisão, assente nesse pressuposto'.
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3 - Deste acórdão, interpôs o agravado, recurso para o Tribunal Constitucional sob invocação do disposto nos artigos 49º, 69º,
70º, nºs 1, alínea b) e 2, 72º, nº 1, alínea b) e 2 e 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Porém, o senhor relator, por despacho de 14 de Junho de 1989, depois de ponderar que o recorrente, na petição para o Tribunal Administrativo de Círculo, havia suscitado a questão da constitucionalidade da norma do artigo 469º do Código Administrativo, considerou que esta norma não foi objecto de aplicação nem na sentença daquele tribunal nem no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, inexistindo assim um dos pressupostos necessários à admissibilidade do recurso.
Contra este despacho foi então apresentada reclamação para o Tribunal Constitucional que, por acórdão de 17 de Dezembro de
1991, lhe concedeu atendimento.
Neste aresto, tiveram-se 'por verificados os requisitos específicos de admissibilidade do recurso previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, na medida em que o acórdão reclamado aplicou implicitamente a norma do artigo 469º, §1º, alínea c) do Código Administrativo
(na redacção dada pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 30/70, de 16 de Janeiro, em vigor à data de 13 de Maio de 1986), cuja inconstitucionalidade fora suscitada em petição de recurso'.
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4 - Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, o recorrente produziu alegações em que concluiu do modo seguinte:
'No entender do Recorrente o douto Acórdão do STA, de fls. 95 e sgts., não se pronunciou sobre a alegada inconstitucionalidade do acto impugnado, por violação do princípio da justiça, e do artigo 469º do Código Administrativo
(vigente ao tempo, embora hoje já revogado, pelo artigo 65º, alínea d) do Decreto-Lei nº 247/87, de 17 de Junho) concretamente da alínea c) do § 1º por violação dos artigos 17º, 18º, 53º e 168º, alínea b), e da alínea e) do § 1º por violação dos artigos 17º, 18º, 53º, 168º, alínea b) e 268º, nº 3, todos da Constituição da República Portuguesa, pelo que requer que a mesma seja declarada com os efeitos previstos no artigo 85º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro'.
A Câmara Municipal de B., já para além do prazo que lhe havia sido concedido para alegar, veio oferecer contra-alegação, cuja junção aos autos, não foi porém admitida.
Corridos os vistos de lei, cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Como resulta da Constituição e da lei e constitui jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal (cfr. por todos os Acórdãos nºs 62/85, 123/89 e 169/92, Diário da República, II série, de, respectivamente, 31 de Maio de 1985, 29 de Abril de 1989 e 18 de Setembro de
1992), a fiscalização de constitucionalidade tem apenas por objecto normas jurídicas e não já decisões judiciais em si mesmas consideradas, no quadro global da sua estrutura decisória e da fundamentação de facto e de direito que lhes serviu de suporte.
E por outro lado, como se escreveu no Acórdão nº
169/92, cit., e agora se repete, 'só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela foi lançada) for relevante para a decisão da causa (isto é, só quando tal norma foi aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido) é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso'.
No caso sub judice, o acórdão do Tribunal Constitucional, que julgou a reclamação apresentada pelo ora recorrente, estabeleceu que 'a decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou aplicável ao caso dos autos a norma da alínea c) do §1º do art. 469º do Código Administrativo, não rejeita a sua aplicação por inconstitucionalidade, embora o recorrente sustentasse a respectiva inconstitucionalidade e, por
último, acabou por considerar que a autarquia agira em situação de erro por faltarem os pressupostos de facto que permitiram tal aplicação normativa'.
E a seguir, a propósito do âmbito de cognição, no caso concreto, do Supremo Tribunal Administrativo entendeu-se que no respectivo acórdão, se 'aplicou implicitamente a norma arguida de inconstitucional, embora sem fazer qualquer alusão à mesma, `apropriando-se' dos fundamentos da decisão recorrida não impugnados pelos recorrentes, por lhes terem sido favoráveis'.
E nesta linha de entendimento, o acórdão que julgou a reclamação teve 'por verificados os requisitos específicos de admissibilidade do recurso previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, na medida em que o acórdão reclamado aplicou implicitamente a norma do artigo 469º,
§1º, alínea c) do Código Administrativo (na redacção dada pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 30/70, de 16 de Janeiro, em vigor à data de 13 de Maio de 1986), cuja inconstitucionalidade fora suscitada pelo reclamante na petição de recurso'.
Deste modo, por força das razões expostas, pode dizer-se que no objecto do presente recurso não se compreende a apreciação da legitimidade constitucional do acto administrativo impugnado pelo recorrente, nem tão pouco da norma do artigo 469º, §1º, alínea e) do Código Administrativo, como se sustenta na alegação do recorrente, mas tão só da norma do artigo 469º
§1º, alínea c) deste mesmo Código, implicitamente aplicada no acórdão recorrido.
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2 - Inscrito na Parte II (Dos funcionários administrativos e dos assalariados), Título I (Dos funcionários de carteira das secretarias e tesourarias), Capítulo II (Do recrutamento e provimento), Secção II (Quadros privativos), Sub-secção I (Ingresso nos quadros), o artigo 469º do Código Administrativo, na versão estabelecida pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº
30/70, de 16 de Janeiro, dispunha assim:
Artigo 469º
(Provimento-Contrato)
O provimento faz-se por contrato.
§1º Os contratos de provimento, salvo se os preceitos especiais estabelecerem regime diverso, consideram-se celebrados com sujeição às seguintes normas gerais:
a) O contratado obriga-se a exercer as funções que regularmente lhe forem cometidas;
b) O contrato é válido pelo prazo de um ano, a contar da data da posse, considerando-se tácita e progressivamente prorrogado, por iguais períodos se não for denunciado;
c) A denúncia do contrato pode ser feita por qualquer das partes, com a antecedência mínima de sessenta dias em relação ao termo do prazo.
d) A entidade competente para o provimento poderá rescindir o contrato a todo o tempo, a pedido do contratado, se não resultar prejuízo para os serviços;
e) A mesma entidade poderá ainda rescindir o contrato a todo o tempo, por conveniência de serviço, desde que notifique o contratado com a antecedência mínima de sessenta dias ou lhe conceda indemnização correspondente à remuneração devida durante o mesmo período.
§2º A celebração do contrato, com a aceitação das normas gerais e das cláusulas especiais constantes do termo da posse, considera-se efectuada mediante a assinatura deste termo.
Esta norma, que veio a ser revogada pelo artigo
65º, alínea d) do Decreto-Lei nº 247/87, de 17 de Junho, vigorava ainda em 13 de Maio de 1986, data em que foi praticado o acto administrativo impugnado pelo recorrente, e integrava o sistema de recrutamento e provimento dos funcionários dos quadros privativos dos governos civis, administrações de bairro e câmaras municipais.
O recrutamento destes funcionários era feito por concurso, aberto, consoante os casos, pela Direcção-Geral da Administração Política e Civil ou pelos corpos administrativos (artigo 462º e 463º do mesmo Código Administrativo).
O provimento dos candidatos, a cargo do Ministério da Administração Interna ou dos corpos administrativos, em função do quadro a prover, era feito por contrato, processando-se o ingresso no quadro pelo cargo de escriturário-dactilógrafo de 2ª classe (artigo 470º, ainda daquele diploma legal).
Na versão originária do Código Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 31 095, de 31 de Dezembro de 1940, dispunha o artigo 469º que o provimento deste pessoal se fazia por nomeação, à semelhança do que acontecia com os funcionários do quadro geral administrativo (cfr. artigos 472º a 480º), revestindo o provimento carácter provisório durante dois anos, sempre que o mesmo desse lugar a ingresso no quadro, findos os quais o funcionário seria provido definitivamente ou demitido.
As alterações levadas ao normativo em causa pelo Decreto-Lei nº 30/70, foram ao encontro da orientação definida pelo Secretariado da Reforma Administrativa, nomeadamente, no Decreto-Lei nº 49 397, de 19 de Novembro de 1969.
Em conformidade com o disposto no artigo 3º deste diploma, os contratos de provimento haviam de ser celebrados em obediência, além de outros, às seguintes normas gerais: (a) O contratado obriga-se a exercer as funções que regulamentarmente lhe forem cometidas e fica sujeito ao estatuto legal e disciplinar dos serviços do respectivo organismo, excepto no que for incompatível com a natureza da situação contratual; (b) O contrato é válido pelo prazo de um ano, a contar da data da posse, considerando-se tácita e sucessivamente prorrogado, por iguais períodos, se não for oportunamente denunciado; (c) A denúncia do contrato pode ser feita por qualquer das partes, com a antecedência mínima de sessenta dias em relação ao termo do prazo.
Este regime, por força do disposto no artigo 4º do mesmo decreto-lei, era aplicável, com as devidas adaptações, aos contratos de pessoal além dos quadros, desde que feitos por tempo indeterminado, ou pelo prazo de um ano ou superior, prorrogável.
Todavia, mercê da limitação decorrente do seu artigo 20º, a estatuição relativa aos contratos de pessoal além dos quadros, versada no artigo 4º do Decreto-Lei nº 49 397, não era aplicável aos serviços dos governos civis, das autarquias locais e das administrações de bairros.
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3 - Como atrás se observou, o artigo 469º do Código Administrativo veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 247/87.
Este diploma procedeu à adaptação do Decreto-Lei nº
248/85, de 15 de Julho (regime geral de estruturação das carreiras da função pública) às carreiras de pessoal da administração local, dispondo nos artigos
41º a 45º sobre as respectivas formas de provimento.
O provimento do pessoal dos quadros passou a ser feito por nomeação provisória ou em comissão de serviço pelo período de um ano
(artigo 41º), sendo o desempenho de funções públicas que não correspondam a necessidades permanentes dos serviços assegurado por pessoal contratado a termo certo.
O contrato a termo certo, qualquer que seja a duração nele estabelecida, nunca se poderá converter em contrato sem prazo e caducará tácita e automaticamente no termo do prazo estabelecido, sem conferir direito a qualquer indemnização (artigo 44º).
Entretanto, o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, veio a ser definido no Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, aplicado à administração local, com algumas adaptações, pelo Decreto-Lei nº 409/91, de 17 de Outubro.
Em conformidade com aquele primeiro diploma, a relação jurídica de emprego na Administração Pública constitui-se por nomeação e contrato de pessoal.
A nomeação constitui um acto unilateral da administração pelo qual se preenche um lugar do quadro e se visa assegurar, de modo profissionalizado, o exercício de funções próprias do serviço público que revistam carácter de permanência (artigo 4º).
A nomeação reveste as modalidades de nomeação por tempo indeterminado e de nomeação em comissão de serviço (artigo 5º).
O contrato de pessoal só pode revestir as modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo (artigo 14º).
O contrato administrativo de provimento é um acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, a título transitório e com carácter de subordinação, o exercício de funções próprias do serviço público, com sujeição ao regime jurídico da função pública (artigo 15º).
Este contrato apenas pode ter lugar nos casos expressamente previstos na lei (serviços em regime de instalação, pessoal médico em regime de internato geral ou complementar, docente e de investigação, frequência de estágio de ingresso na carreira), considera-se celebrado por um ano, tácita e sucessivamente renovável por iguais períodos, se não for oportunamente denunciado, tendo a sua renovação como limite, consoante os casos, o termo do regime de instalação, o regime em vigor sobre a contratação de pessoal médico, docente e de investigação (artigos 15º e 16º).
O contrato de trabalho a termo certo é um acordo bilateral pelo qual uma pessoal não integrada nos quadros assegura, com carácter de subordinação, a satisfação de necessidades transitórias dos serviços de duração determinada que não possam ser asseguradas pelo recurso ao contrato administrativo de provimento (artigo 18º).
Por outro lado, o artigo 7º do Decreto-Lei nº
409/91, autoriza a celebração de contratos de tarefa e de avença, sujeitos ao regime previsto na lei geral quanto a despesas públicas em matéria de aquisição de serviços.
O contrato de tarefa caracteriza-se por ter como objectivo a execução de trabalhos específicos, de natureza excepcional, sem subordinação hierárquica, não podendo exceder o termo do prazo contratual inicialmente previsto. Por seu turno, o contrato de avença caracteriza-se por ter como objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal.
Extrai-se desta breve explanação sobre os modos de provimento dos agentes administrativos e sobre o contrato administrativo de provimento, quer no domínio da vigência do artigo 469º do Código Administrativo, quer após a sua revogação, que, muito embora o sistema actual imponha um tratamento mais exigente e rigoroso, existe em relação ao regime anterior, pesem embora as alterações terminológicas introduzidas, uma certa unidade conceitual que ilumina a compreensão dos respectivos textos.
Posto isto, cabe retomar a apreciação do tema a decidir.
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4 - O contrato celebrado entre a Câmara Municipal de B. e o recorrente - 'contrato de prestação de serviços, além do quadro, pelo prazo de um ano renovável, para exercer as funções de técnico-auxiliar de museografia de segunda classe a que corresponde o vencimento equivalente à letra M, com sujeição ao cumprimento e observância dos deveres fixados para idêntico pessoal do quadro permanente' - não se apresenta como um verdadeiro e próprio contrato de provimento, desde logo por não se reportar ao preenchimento de uma vaga dos quadros permanentes da Administração.
Não pode também configurar-se como um contrato de prestação de serviços propriamente dito (tarefa ou avença) pois que, ao contrário do que caracteriza essencialmente este tipo contratual, o recorrente achava-se hierarquicamente subordinado e sujeito ao cumprimento e observância dos deveres próprios do pessoal do quadro.
E não pode reconduzir-se a um contrato de trabalho a prazo sujeito à disciplina prevista no Decreto-Lei nº 781/76, de 28 de Outubro, por manifestamente lhe dever ser atribuída, dado o conteúdo das suas cláusulas, a natureza de um contrato administrativo.
Trata-se, verdadeiramente, de um contrato administrativo, além do quadro, celebrado sem suporte legal específico, para ocorrer à satisfação de necessidades eventuais e temporárias dos serviços.
Este tipo de contratos, também denominado 'contrato de prestação eventual de serviços', referenciado na doutrina (cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9ª ed., p. 658) e de uma forma implícita na Declaração do Secretariado da Reforma Administrativa de 18 de Março de 1970, acabou por ser consagrado na legislação posterior ao 25 de Abril, a partir do Decreto-Lei nº 656/74, de 23 de Novembro (cfr., nomeadamente, os Decretos-Leis nºs 342/78, de 16 de Novembro, 35/80, de 14 de Março, 138/80, de
20 de Maio, 140/81, de 30 de Maio e 166/82, de 10 de Maio), se bem que, por insuficiência de regulamentação, o seu regime tivesse de se encontrar na disciplina constante do Decreto-Lei nº 49397.
O já referido Decreto-Lei nº 247/87, cujo artigo
65º operou a revogação do artigo 469º do Código Administrativo, reporta-se no preâmbulo às situações criadas por uma certa prática da Administração, escrevendo-se ali, nomeadamente: 'Quanto ao pessoal fora do quadro, prevê-se um regime de contrato administrativo a prazo certo, aferido, sempre que possível, em função das necessidades transitórias dos serviços, disciplinando-se, assim, a diversidade de situações que, em muitos casos, não se mostravam conformes à legislação vigentes'.
No regime actual, aquele contrato, na impossibilidade de se concretizar através de um contrato administrativo de provimento, (cfr. artigos 15º e 16º do Decreto-Lei nº 427/89) haveria obrigatoriamente de revestir a forma de um contrato a termo certo.
Ora, como quer que seja, o contrato celebrado entre a Câmara Municipal de B. e o recorrente, foi denunciado pela autarquia, com base na invocação da norma do artigo 469º, §1º, alínea c) do Código Administrativo, norma esta que, como já se observou, veio a ser implicitamente aplicada, tanto na decisão do Tribunal Administrativo de Círculo, como no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Sustenta o recorrente que aquela norma viola o disposto nos artigos 17º, 18º, 53º e 168º, alínea b) da Constituição.
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5 - O contrato de provimento a que se reporta a norma do artigo 469º do Código Administrativo constituiu um dos modos de preenchimento dos lugares integrados em quadros da administração, concretamente dos quadros privativos a que se reportavam os artigos 457º e 462º e sgs. do Código Administrativo.
Contudo, aquela norma foi interpretada, na aplicação implícita do acórdão recorrido, por forma a compreender também no seu
âmbito de incidência, situações contratuais além do quadro, caracterizadas estas nos termos atrás assinalados (cfr., supra. II, 3 e 4).
Desta forma, importa apreciar a sua validade constitucional não já quanto à estatuição que directa e imediatamente logo se desprende da literalidade do seu texto, mas antes na particular dimensão interpretativa que a decisão sob recurso lhe conferiu, isto é, naquela dimensão que estende aos'contratos de provimento além do quadro' as regras gerais sobre denúncia dos contratos feita por qualquer das partes, com a antecedência mínima de sessenta dias em relação ao termo do prazo.
Vejamos então.
Por se reconhecer que a essência da questão posta pelo recorrente se centra na problemática da segurança do emprego passará a examinar-se, no particular domínio dos trabalhadores da função pública, o alcance do texto constitucional.
O princípio da segurança no emprego tem expressa consagração no artigo 53º da Lei Fundamental que garante aos trabalhadores a segurança no emprego e proíbe os despedimentos sem justa causa ou por motivos ideológicos.
No âmbito desta previsão normativa devem ter-se por incluídos os 'trabalhadores da Administração Pública', pese embora o particular estatuto funcional de que desfrutam, no qual se compreende um conjunto próprio de direitos, regalias, deveres e responsabilidades, e lhes empresta um figurino especial face à relação de emprego típica das relações laborais comuns, de raiz privatista.
Simplesmente, nem todos os 'trabalhadores da Administração Pública' (acepção muito ampla e despida de rigor conceitual, utilizada do artigo 269º da Constituição) beneficiam do estatuto específico dos funcionários públicos (stricto sensu), entendidos estes como 'agentes administrativos providos por nomeação vitalícia voluntariamente aceite ou por contrato indefenidamente renovável, para servir por tempo completo em determinado lugar criado por lei com carácter permanente, segundo o regime legal próprio da função pública' na definição proposta por Marcello Caetano, ob. cit., pp. 609 e 610.
Haverá assim que distinguir entre aqueles agentes que exercem a sua actividade como uma profissão certa e permanente e aqueles outros que apenas executam uma relação contratual a título precário e acidental, justificando-se plenamente que a lei estabeleça, consoante os casos, diferentes condições de segurança e da estabilidade na respectiva relação de trabalho.
Os funcionários públicos (stricto sensu) gozam do direito ao lugar, o que significa que, em regra, só possam dele ser privados mediante processo criminal ou disciplinar. Apenas certos factos, aqueles que revistam especial gravidade caracterizada por lei, e apurados em tais processos, são susceptíveis de constituir 'justa causa de despedimento' e poder, por isso, determinar a cessação do vínculo adquirido pelo funcionário aquando do seu ingresso nos quadros permanentes da administração.
Ao contrário, os agentes não funcionários, mais concretamente, no que aqui importa, os agentes contratados além do quadro, com provimento precário e temporalmente transitório (a permanência efectiva e a estabilidade são requisitos próprios dos provimentos definitivos em lugares dos quadros), achavam-se condicionados, à data da aprovação da deliberação impugnada, pelo facto de o contrato poder ser denunciado sempre que a sua continuação não conviesse à entidade administrativa e poder ser rescindido quando a prestação que formava o seu objecto não pudesse ser cumprida.
Nestas situações, os contratos administrativos de provimento assumiam-se como contratos a prazo certo, sem que a tanto obstasse a sua prorrogabilidade tácita por períodos sucessivos de um ano se entretanto não fossem denunciados.
Com efeito, o contrato de trabalho a prazo, então regulado no Decreto-Lei nº 781/76 (depois revogado pelo Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro) antes de se poder converter em contrato sem prazo (contrato individual de trabalho) findos que fossem três anos de sucessivas renovações, regia-se em termos paralelos aos do contrato administrativo de provimento, no respeitante à denúncia como forma de cessação do contrato. A circunstância de este último não se converter, após o decurso de um certo lapso temporal, em contrato administrativo sem prazo, resulta da especificidade e da peculiar natureza de que se revestem as relações de trabalho na Administração Pública.
Aliás, na actualidade, os contratos a termo certo celebrados pela Administração Local (artigo 44º do Decreto-Lei nº 247/87), qualquer que seja a duração neles estabelecida, nunca podem converter-se em contratos sem prazo e caducam tacita e automaticamente no termo do prazo estabelecido.
Não se vê assim qualquer impedimento a que o regime do contrato administrativo de provimento, além do quadro, contemple como forma de cessação contratual a denuncia invocada por parte da entidade administrativa, quando o mesmo instrumento de extinção da relação laboral se achava previsto na ordem laboral privada.
E não pode ser invocado em sentido contrário o princípio constitucional da segurança no emprego.
Este princípio, com efeito, não pode ser entendido em termos de significar para os 'trabalhadores da função pública' abrangidos por contratos desta natureza, a transformação de vínculos laborais precários e transitórios (assim contratualmente definidos e assumidos), destinados à execução de tarefas e actividades não permanentes da administração, em vínculos de efectividade permanente, como se decorressem de provimentos efectivos e definitivos em lugares dos quadros.
A relação laboral estabelecida naqueles contratos dispõe da duração de um ano, e durante este período o princípio constitucional garante ao trabalhador segurança no emprego em conformidade com os exactos termos contratuais.
A circunstância de a norma sob exame admitir prorrogações sucessivas do prazo inicial de um ano, não detém a virtualidade de alargar a protecção concedida por aquele princípio para além dos novos períodos de execução contratual que venham a ser efectivamente acordados.
Embora de modo implícito, este Tribunal adoptou entendimento similar ao que vem de ser exposto, nos Acórdãos nºs 154/86, 285/92 e 340/92, Diário da República, respectivamente, I série, de 12 de Junho de 1986, I série-A, de 17 de Agosto de 1992 e II série, de 17 de Novembro de 1992.
Afastada a violação do artigo 53º da Constituição, respeitante ao quadro próprio dos direitos, liberdades e garantias, deixa de ter sido a apreciação da norma controvertida à luz dos outros preceitos constitucionais invocados pelo recorrente.
*///* III - A decisão
Nestes termos, não se julgando inconstitucional a norma do artigo 469º, §1º, alínea c) do Código Administrativo, enquanto interpretada no sentido de ser aplicável a 'contratos de provimento além do quadro', decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido.
Lisboa, 12 de Maio de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes (vencido nos termos da declaração de voto junta)
Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos do Ex.mº Consº Armindo Ribeiro Mendes)
Proc. nº 89/92
1ª Secção
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Discordei da posição que fez maioria no Tribunal, por entender que a norma do art. 469º, § 1º, alínea c), do Código Administrativo, norma em vigor à data da denúncia do contrato administrativo de provimento que vinculava o recorrente e a câmara municipal recorrida, se achava afectada pelo vício de inconstitucionalidade, por violar o disposto no art. 53º da Constituição.
2. Segundo a tese que fez vencimento, o princípio constitucional da segurança do emprego só é aplicável a uma parte dos trabalhadores da função pública, aquela que inclui os funcionários públicos stricto sensu, isto é, na conhecida definição de Marcello Caetano, os 'agentes administrativos providos por nomeação vitalícia voluntariamente aceite ou por contrato indefinidamente renovável, para servir por tempo completo em determinado lugar criado por lei com carácter permanente, segundo o regime legal próprio da função pública'. Relativamente aos outros trabalhadores da função pública, ainda que contratados além do quadro para assegurar necessidades permanentes de serviço, os mesmos não beneficiarão da garantia constitucional da segurança no emprego.
3. Tenho por insustentável tal interpretação restritiva do art. 53º da Constituição, a qual leva a considerar constitucionalmente lícito o afastamento pela Administração Pública de um agente administrativo contratado além do quadro, ainda que haja desempenhado funções em certo serviço público durante quinze ou vinte anos. Não vejo como é constitucionalmente possível sustentar que o trabalhador da função pública, que não seja funcionário, possa ter um vínculo precário sem qualquer limite temporal, diferentemente do que sucede quanto aos trabalhadores a prazo de empresas privadas. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao sustentar que o âmbito de protecção do direito à segurança no emprego abrange todas as situações que se traduzam em precariedade da relação de trabalho:
'Este mesmo direito [à segurança no emprego] perderia qualquer significado prático se, por exemplo, a relação de trabalho estivesse sujeita a prazos mais ou menos curtos, pois nesta situação o empregador não precisaria de despedir, bastando-lhe não renovar a relação jurídica no termo do prazo. O trabalho a termo é por natureza precário, o que é o contrário da segurança. Por
isso, é necessário também um motivo justificado para a contratação a termo. O direito à segurança no emprego pressupõe assim que, em princípio, a relação de trabalho é temporalmente indeterminada, só podendo ficar sujeita a prazo quando houver razões que o exijam, designadamente para ocorrer a necessidades temporárias de trabalho ou a aumentos anormais e conjunturalmente determinados das necessidades da empresa' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 5ª ed., Coimbra, 1993, pág. 289; sobre a noção constitucional de trabalhadores da Administração Pública no art. 269º da Lei Fundamental, veja-se a mesma obra págs. 945-946).
4. A tese que fez vencimento discrimina negativamente um importante sector da função pública, o dos agentes não funcionários, aceitando um privilégio quanto ao Estado e ao restante sector público empregador, que não é reconhecido aos empregadores privados. Não se percebe por que há-de o Estado ou um Município poder denunciar contratos administrativos de provimento além do quadro (quando previstos na legislação ordinária) relativamente a agentes que se mantêm há longo tempo no exercício das funções (adiante-se que, no caso dos autos, o recorrente ainda não tinha completado três anos de serviço, o que poderia levar a considerar que ainda não dispunha de um vínculo não precário; mas tal questão, de carácter concreto, não tem a ver directamente com a tese acolhida em termos gerais pela maioria do Tribunal). Não se vê por que razão tal solução, para mim aberrante, há-de resultar de uma pretensa 'especificidade' ou de uma 'peculiar natureza', de que alegadamente se revestiriam as relações de trabalho na Administração Pública estadual ou local, as quais impediriam a 'virtualidade de alargar a protecção concedida por aquele princípio [o da segurança de emprego] para além de novos períodos de execução contratual que venham a ser efectivamente acordados'.
Tive ocasião já de criticar tal posição de princípio, em declaração de voto conjunta (subscrita também pelo Sr. Conselheiro Luís Nunes de Almeida), anexa ao Acórdão nº 340/92 do Tribunal (in Diário da República, II Série, nº 266, de 17 de Novembro de 1992). Remeto, assim, para a mesma Declaração, em especial para o seu número 5.
5. Por último, não deixarei de referir que o próprio legislador revogou em 1987 a norma aplicada pelo presente acórdão, seguramente por ter por constitucionalmente inadmissível a subsistência de uma solução tão gravosa para a segurança de emprego dos agentes administrativos para além do quadro ao serviço das autarquias locais.
Foi, assim, mais longe do que o Tribunal Constitucional no acatamento da ordem constitucional vigente...
Armindo Ribeiro Mendes