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Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, que formulou as seguintes conclusões:
1º. O nº 2 do artigo 26º da lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho) limitando-se a prescrever que determinado acto processual - a resposta ao recurso pela autoridade recorrida - reveste carácter estritamente pessoal devendo ser praticado necessariamente pelo próprio autor do acto recorrido, não sendo admitido, consequentemente, a sua prática através de mandatário, não ofende qualquer preceito ou princípio constitucional, designadamente o constante do artigo 20º da Lei Fundamental.
2º. Tal regime não colide com o estatuído no artigo 54º do Estatuto da Ordem dos Advogados (constante do Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março), já que não inviabiliza o patrocínio judiciário das autoridades recorridas nos recursos contenciosos, em nada afectando as garantias do exercício da advocacia enquanto forma de defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos - tratando-se, em consequência de disposição da lei processual situada fora do
âmbito da reserva de competência da Assembleia da República, emergente do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea u), primeira parte, da Constituição.
3º. Deve, pois, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber se a norma do nº 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. O Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, aprovou a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Prescreve o seu artigo 26º:
1 - A autoridade recorrida pode produzir alegações e exercer quaisquer outros poderes processuais correspondentes aos dos demais recorridos, incluindo o de impugnar as decisões proferidas no recurso contencioso, desde que os respectivos actos processuais sejam praticados por advogado constituído ou por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico designado para aquele efeito.
2 - A resposta ao recurso só pode ser assinada pelo próprio autor do acto recorrido ou por quem haja sucedido na respectiva competência.
De acordo com o que preceitua a norma que acaba de transcrever-se, para produzir alegações no recurso e, bem assim, para exercer quaisquer outros poderes processuais correspondentes aos dos demais recorridos
(maxime, para impugnar as decisões proferidas no recurso contencioso), a autoridade recorrida tem que constituir advogado ou que fazer-se representar por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico designado para o efeito (nº
1). Quando, porém, se trate de responder ao recurso, tem ela que, enquanto autora do acto recorrido, assinar pessoalmente a resposta ( cf. nº 2).
A resposta ao recurso é, assim, um acto processual que o autor do acto recorrido tem que praticar pessoalmente.
Isso mesmo põem em destaque, ARTUR MAURÍCIO, DIMAS LACERDA e SIMÕES REDINHA (Contencioso Administrativo, Lisboa, 1987, p. 141/2), que citam, para o efeito, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de Fevereiro de 1987. Escrevem eles:
O legislador estabeleceu o formalismo da 'resposta' prevista no artigo 26º, nº
2, do DL nº 267/85, como articulado formal, devidamente e só assinado pelo autor do acto recorrido ou seu sucessor na respectiva competência, excluindo as fórmulas burocráticas do tipo 'visto' ou 'concordo' apostas sobre informações ou pareceres. Tal exigência funda-se na protecção e defesa de valores do maior relevo e revela a importância que foi atribuída a essa peça processual e o carácter 'pessoal' que se quis imprimir a esse dever processual das autoridades recorridas.
Os mesmos autores sublinham, de resto, que 'a circunstância de a resposta não ser assinada' pelo próprio autor do acto recorrido (ou por quem haja sucedido na respectiva competência) 'equivalerá, naturalmente, a falta de resposta, com as consequências estabelecidas no artigo
50º' - o que significa que 'o tribunal aprecia(rá) livremente essa conduta, para efeitos probatórios'.
5. A exigência, feita pelo nº 2 do artigo 26º, consistente no facto de a resposta ao recurso ter que ser assinada pela própria autoridade recorrida (ou pelo sucessor na respectiva competência) será, então, inconstitucional, como se decidiu na sentença recorrida?
Para fundamentar a conclusão da inconstitucionalidade, escreveu o juiz a quo:
O art. 26º, nº 2, do Dec.-Lei nº 267/85, ao impedir que o advogado constituído pela entidade recorrida subscreva a resposta ao recurso, colide com o nº 1 do art. 54º do EOA. Esta norma é relativa a associação pública. Na verdade, é da própria natureza da associação que o seu elemento essencial, caracterizador, seja o pessoal, o das pessoas que a constituem, já que a Ordem dos Advogados é a instituição representativa dos licenciados em Direito que exercem a advocacia (art. 1º, nº 1 do EOA). O art. 54º do EOA é uma norma essencial do estatuto dos advogados. É, pois, matéria relativa a associação pública. O Dec.-Lei nº 84/84 foi aprovado ao abrigo de autorização legislativa face ao que então dispunha o art. 168º, nº 1, alínea t) da CRP (hoje, trata-se de matéria da exclusiva competência da Assembleia da República, de acordo com o disposto no art. 167º, alínea h) da CRP). O Dec.-Lei nº 267/85 não é matéria reservada da Assembleia da República e não foi aprovado ao abrigo de autorização legislativa, pelo que não poderia contrariar o Dec.-Lei nº 84/84, já que carecia de autorização legislativa. Nem se diga que a reserva da Assembleia da República apenas abrangeria as bases gerais ou o regime geral da matéria relativa às associações públicas. Não é assim, como decorre do confronto entre o disposto na alínea t) do nº 1 do art.
168º da CRP, na redacção da revisão constitucional de 1982 e o estabelecido nos arts. 167º, alínea e) e 168º, nº 1, alíneas d), e), f), g), h), n), p) e u) da CRP, na mesma redacção. A norma do art. 26º, nº 2 do Dec.-Lei nº 267/85, na medida em que não permite que os advogados constituídos subscrevam as respostas aos recursos, sofre de inconstitucionalidade orgânica, por violação do art. 168º, nº 1, alínea t) da CRP, na redacção da Revisão Constitucional de 1982.
De acordo com a sentença recorrida, pois, a norma sub iudicio (dito nº 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho) - ao exigir que a resposta ao recurso seja assinada pela própria autoridade recorrida
(e, assim, ao proibir que a mesma seja subscrita por advogado por ela constituído) - viola a alínea t) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1982, que estabelece ser da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo, que, no caso, não existiu) 'legislar sobre [...] associações públicas'.
É que - diz - a Ordem dos Advogados é uma associação pública e o artigo 54º dos respectivos Estatutos - que é 'uma norma essencial do estatuto dos advogados' versando 'matéria relativa a associação pública' - prescreve que são sempre admissíveis a representação e a assistência por advogado perante qualquer jurisdição, não podendo a sua escolha ser impedida, nem limitada.
Não tem, porém, razão o juiz a quo, como vai ver-se.
6. O artigo 168º, nº 1, alínea t), da Constituição
(versão de 1982, no domínio da qual foi editada a norma sub iudicio) prescrevia:
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo:
t). Associações públicas [...].[Cf., agora, na versão de 1989, a alínea u) do nº 1 do mesmo artigo 168º].
Dúvidas não restam de que a Ordem dos Advogados é uma associação pública [cf., neste sentido: Acórdãos nº 46/84, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume (1984), páginas 275 e seguintes) e nº 497/89 (Diário da República, II série, de 1 de Fevereiro de 1990); ROGÉRIO E.SOARES, 'A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública', Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 124º, páginas 161 e seguintes; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1987, páginas 366 e seguintes; JORGE MIRANDA, As Associações Públicas no Direito Português, Lisboa, 1985).
A Ordem dos Advogados é, com efeito, um ente jurídico de base associativa, criada pelo Estado e por ele chamada a colaborar na realização do interesse público, para o que a dotou de certos poderes públicos (maxime, do poder de impor a todos quantos pretendam exercer a advocacia a obrigação de nela se inscreverem; o de lhes exigir o pagamento de quotas; e o de exercer poderes disciplinares sobre eles).
Trata-se de uma forma de descentralização ou de administração mediata do Estado [sobre associações públicas, cf. os Acórdãos nºs
46/84 e 497/89, já citados, e nºs 472/89 e 347/92, publicados no Diário da República, II série, de 22 de Setembro de 1989, e I série-A, de 3 de Dezembro de
1992, respectivamente; cf. também o Parecer da Comissão Constitucional nº 1/78, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, volume 4º, páginas 139 e seguintes].
Pois bem: como se viu, é do estatuto constitucional das associações públicas ter que ser a Assembleia da República a produzir a legislação que lhes defina o regime jurídico.
A este propósito, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º volume, Coimbra, 1985,página
202) escrevem:
Em matéria de associações públicas [...] cabe à AR definir o seu regime (forma e condições de criação, atribuições típicas, regras gerais de organização interna, controlo da legalidade dos actos, etc.); problemática é a questão de saber se também cabe só à AR a própria criação (e a extinção) das associações, bem como a aprovação dos respectivos estatutos (quando se entenda que as associações públicas não gozam de autonomia estatutária).
'Seja como for - escreveu-se no Acórdão nº 283/91
(Diário da República, II série, de 24 de Outubro de 1991) - há-de seguramente incluir-se na reserva parlamentar a definição das profissões cujo exercício obriga a inscrição em associação profissional; e incluir-se aí, bem assim, a definição de quem nessas associações pode - e deve - inscrever-se'.
E acrescentou-se nesse acórdão:
As associações profissionais são - já se disse atrás - o meio 'mais idóneo' para assegurar a defesa dos interesses públicos que a regulamentação da respectiva profissão postula. Por isso, a definição de quem nelas se pode inscrever - e, assim, exercer determinada profissão - é matéria com relevo bastante para exigir a intervenção parlamentar. Assim, não pode deixar de entender-se que a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores - ou seja: dizer quem pode exercer a profissão de solicitador - se inclui na reserva parlamentar, havendo, por isso, que constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo emitido mediante prévia autorização parlamentar. [Cf., no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 464/91 e 175/92 (ambos por publicar) e o nº 347/92, já citado].
Simplesmente, a norma sub iudicio não versa sobre o regime jurídico da corporacão pública que é a Ordem dos Advogados. Versa, antes, sobre a prática de um acto processual - um acto que, recorda-se, o legislador concebeu como acto pessoal. De facto - depois de preceituar, no nº 1, que, para produzir alegações no recurso (e, em geral, para praticar nele outros actos processuais), a entidade recorrida tem que constituir advogado (salvo se nele for representado por licenciado em Direito que, pertencendo aos seus quadros, aí desempenhe funções de mera consulta jurídica) - o artigo 26º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho, acrescenta, no nº 2 aqui sob exame, que a resposta ao recurso, essa tem a entidade recorrida que assiná-la, ela própria.
A norma sub iudicio, excluindo a possibilidade de a resposta ao recurso ser assinada por mandatário, impede, é certo, que a entidade recorrida pratique esse acto processual por intermédio de advogado - o que, obviamente, limita a intervenção deste no processo.
Daí, porém, não decorre que ela deva considerar-se norma relativa ao estatuto do advogado. Tal norma tem, antes, simples carácter processual, semelhantemente ao que acontece com as normas do Código de Processo Civil que regulam a prestação de depoimento de parte - depoimento que no processo administrativo se não admite (cf. artigo 12º, nº 2, do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho).
O depoimento de parte é, na verdade, um depoimento pessoal, no sentido de que é prestado pela pessoa de quem for exigido, e não, claro é, pelo advogado que a representar no processo. O advogado pode assistir ao depoimento e deduzir oposição às perguntas que o juiz fizer, mas não pode, sequer, fazer perguntas ao depoente (cf. artigos 559º a 562º do Código de Processo Civil).
Ora, a produção das normas que regulam o processo administrativo não se acha reservada à Assembleia da República; pertence, antes, ao domínio em que também o Governo pode legislar [cf. artigo 168º, nº 1, alíneas c) e d), da Constituição].
Recorda-se que a Lei do Processo nos Tribunais Administrativos não impede que a autoridade administrativa recorrida seja patrocinada por advogado nos recursos contenciosos (cf. supra, 4.). Impede, tão-só - insiste-se - que a resposta ao recurso seja subscrita por mandatário.
Não é, por isso, sequer, ajustado concluir - como faz a sentença recorrida - que, com a norma sub iudicio, se viola o artigo 54º dos Estatutos da Ordem dos Advogados. Ao que acresce que o alcance da reserva de lei relativa às associações públicas não tem por que coincidir com o teor dos estatutos desta ou daquela associação pública, pois que, para se decidir se determinada norma legal versa ou não matéria incluída na reserva parlamentar, o referente é a Constituição, e nunca, obviamente, uma lei ordinária, ainda que parlamentarmente autorizada, relativa a essa matéria.
Tudo isto para concluir que a norma do nº 2 do artigo
26º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, não viola a alínea t) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1982.
7. A norma em causa também não viola qualquer outro preceito constitucional - maxime o artigo 20º, que assegura a todos 'o acesso
[...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos [...]'.
De facto e desde logo, a norma dirige-se à Administração, e não aos cidadãos; e, depois, ela não coarcta arbitrariamente a intervenção de advogado nos processos administrativos - intervenção, em muitos casos, necessária para que os cidadãos possam fazer valer os seus direitos em juízo, com eficácia. O que a norma faz é, tão-somente, impor à autoridade recorrida que se pronuncie, pessoalmente, sobre as questões colocadas pelo recorrente, responsabilizando-se pelos esclarecimentos que prestar
(designadamente, estando em causa actos discricionários) e dando-lhe oportunidade de revogar o acto recorrido (cf. o artigo 141º, nº 1, do Código de Procedimento Administrativo e artigo 4º da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos). Para tanto, exige-lhe que assine, ela própria, a resposta ao recurso. No mais (maxime, para apresentar alegações), pode ela fazer-se representar por advogado, como já se viu.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade, devendo, por isso, a mesma ser reformada em conformidade com o aqui decidido sobre essa questão.
Lisboa, 1 de Março de 1994
Messias Bento Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca (dispensado o visto) Luís Nunes de Almeida