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Proc. nº 96/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Por despacho do inspector delegado de Leiria da Inspecção-Geral do Trabalho de 31 de Janeiro de 1989, proferido por delegação do Inspector-Geral, foi aplicada à arguida A., a coima de 13.000$00, por haver cometido a contra-ordenação prevista no artigo 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº
491/85, de 26 de Novembro, conjugado com os nºs 1 e 2 do artigo 44º do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, e o Despacho Normativo nº 22/87, de 2 de Fevereiro, publicado no Diário da República, I série, nº 52º, de 4 de Março de 1987, e punível nos termos da alínea c) do nº 1 daquele artigo 15º, por, no dia 11 de Agosto de 1988, pelas 17h 2m, a arguida manter em circulação na Estrada Nacional nº --------, lugar da --------, concelho de -------------, a sua viatura pesada de passageiros nº --------------, na qual seguia em serviço a guia-intérprete B., sem que naquela viatura estivesse afixado qualquer mapa de horário de trabalho referente a essa trabalhadora.
Dessa decisão interpôs a arguida recurso para o Tribunal de Trabalho de Leiria, nos termos do artigo 57º do citado Decreto-Lei nº 491/85, sustentando, em síntese, que o contrato que a ligava à aludida guia-interprete era de prestação de serviço e não de trabalho, pelo que não cometeu a infracção em causa, devendo ser revogada a respectiva decisão e decretada a correspondente absolvição.
Por despacho de 27 de Fevereiro de 1989, foi designado para julgamento o dia 8 de Maio, havendo no dia 5 de Maio antecedente, o Sindicato C., requerido a sua admissão nos autos como assistente, nos termos do artigo 183º do Código de Processo do Trabalho, 'uma vez que a trabalhadora ofendida, B., é associada deste organismo sindical' e 'o direito violado é colectivo e indisponível, nos termos do artigo 6º do mesmo Código'.
Por despacho de 16 de Maio - após adiamento da audiência de discussão e julgamento -, foi o referido sindicato admitido a intervir no processo como assistente.
E, por sentença de 28 de Setembro do mesmo ano de
1989, foi concedido provimento ao recurso e, consequentemente, absolvida a arguida da infracção de que era acusada, em virtude de não existirem elementos suficientes para caracterizar o contrato existente entre ela e a trabalhadora B. como um contrato de trabalho.
Esta sentença veio a ser objecto, em 6 de Outubro imediato, de recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra e, em 9 desse mesmo mês, de reclamação por nulidade, por parte do sindicato assistente.
Mas, por despacho de 12 de junho de 1990, o senhor Juiz desatendeu a arguição de nulidade e não admitiu o recurso por ilegitimidade do recorrente, porquanto o mesmo 'não só não fez anteceder a interposição do recurso por um requerimento dirigido ao Tribunal da Relação onde justificasse a necessidade manifesta de recurso para melhor aplicação do direito ou uniformidade da jurisprudência (nº 2 do artigo 73º do Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro), como `in casu', carece o recorrente de legitimidade para recorrer, pois que tal faculdade assiste apenas ao Ministério Público e ao arguido'.
Contra este despacho, na parte em que o recurso não foi admitido, deduziu o sindicato assistente reclamação para o presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 668º do Código de Processo Civil, aduzindo, quanto ao primeiro fundamento ali invocado, que, no início da motivação, justificara a necessidade do recurso, e, no tocante ao segundo fundamento, que a sua legitimidade para recorrer deriva, quer do artigo 69º, nº
2, alínea c) do Código de Processo Penal, quer do artigo 56º, nº 1, da Constituição, no qual se atribui às associações sindicais competência para defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores. Ora, acrescenta aquele sindicato, tais faculdades das organizações sindicais e dos assistentes 'reduzir-se-iam a bem pouco caso não pudessem litigar em pé de igualdade com os demais intervenientes processuais', pelo que, 'a não se entender assim, a interpretação restritiva formulada pelo Mmº. Juiz revela-se material e formalmente inconstitucional' face ao disposto no já citado artigo
56º, nº 1, da Constituição.
O senhor presidente da Relação, por despacho de 29 de Outubro de 1990, indeferiu a reclamação, basicamente por o artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, apenas atribuir legitimidade para recorrer ao arguido e ao Ministério Público.
Deste despacho pretendeu o sindicato assistente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'por inconstitucionalidade da norma contida no artigo 73º, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na parte em que impede a interposição de recurso ao assistente, cuja inconstitucionalidade foi suscitada na reclamação para o Ex.mo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, pois viola as normas constantes dos artigos
13º, 20º e 56º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'.
Como esse requerimento de interposição de recurso era dirigido ao juiz do Tribunal do Trabalho de Leiria, este magistrado, invocando o artigo 687º, nº 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual os recursos se interpõem no tribunal que profere a decisão recorrida, considerou-se incompetente em razão da matéria para admitir o recurso interposto pelo sindicato assistente da decisão do presidente da Relação de Coimbra.
Veio então o sindicato requerer, nos termos do artigo 105º, nº 2, do Código de Processo Civil, a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra a fim de o seu presidente se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Deferido tal requerimento e remetido o processo para a Relação de Coimbra, o respectivo presidente, por despacho de 22 de Fevereiro de 1991, com base na invocação do artigo 72º, alínea b) da Lei nº
28/82, declarou não admitir o recurso, por o recorrente não ter legitimidade para recorrer.
Contra este despacho de rejeição do recurso foi deduzida pelo sindicato assistente a reclamação a que se refere o artigo 76º, nº
4 da Lei nº 28/82, acabando os autos por ser remetidos ao Tribunal Constitucional, que, pelo Acórdão nº 16/92, de 15 de Janeiro, lhe concedeu deferimento.
O recurso de constitucionalidade interposto pelo sindicato assistente foi então recebido pelo presidente da Relação de Coimbra, sendo depois os autos remetidos a este Tribunal.
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2 - Nas alegações entretanto produzidas o recorrente sustentou, em síntese, o entendimento seguinte:
a) Ao recorrente, enquanto sindicato, assiste o direito fundamental de defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores;
b) Nessa qualidade e até porque decaiu no pleito, tem um interesse legítimo e acrescido em interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da sentença que lhe foi desfavorável, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito;
c) Por outro lado, se esse direito de recurso é explicitamente reconhecido a uma das partes processuais, isto é, à arguida no caso de ter decaído (artigo 73º, nº
2 do Decreto-Lei nº 433/82), então, em homenagem aos princípios da equidade processual, da proporcionalidade, da igualdade de tratamento e de oportunidade, implicitamente contidos no direito constitucionalmente reconhecido às associações sindicais de defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representa, também assiste tal direito de recurso ao recorrente (cfr. artigos 13º, 20º, nº 1 e 56º, nº 1 da Constituição, 68º a 70º do Código Penal, 1º, 6º, 183º e 195º do Código de Processo de Trabalho e 41º e
66º do Decreto-Lei nº 433/82);
d) Caso contrário, tais direitos fundamentais das organizações sindicais e dos assistentes reduzir-se-iam a bem pouco, caso não pudessem litigar em pé de igualdade com os demais intervenientes processuais.
e) Nesta conformidade, o artigo 73º, nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82, na parte em que não reconhece legitimidade ao assistente para interpor recurso para a Relação, revela-se materialmente inconstitucional por violar as normas contidas nos artigos 13º, 16º, 20º, nº 1, e 56º, nº 1, da Constituição e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Por seu turno, na contra-alegação a seguir oferecida pelo senhor Procurador-Geral Adjunto, formulou-se o seguinte quadro de conclusões:
1º - O regime do processo de contra-ordenação - mesmo no âmbito laboral - não comporta a possibilidade de intervenção de assistentes: daí que o artigo 73º, nº
2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, apenas atribua legitimidade para recorrer a dois sujeitos do processo: o Ministério Público e o arguido;
2º - Tal regime não enferma de nenhuma inconstitucionalidade, designadamente, não ofende os princípios da igualdade de armas, do acesso à justiça ou de defesa dos direitos dos trabalhadores pelas respectivas organizações sindicais.
Passados que foram os vistos legais, importa agora passar à apreciação e decisão da causa.
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II - A fundamentação
1 - O desenvolvimento argumentativo da recorrente e o vício de inconstitucionalidade assacado à norma sob controvérsia, assentam, embora de modo apenas implicíto, na consideração de que o ilícito de mera ordenação social dispõe de natureza similar à do ilícito criminal, devendo assim valer quanto a ele um quadro de princípios e garantias constitucionais e legais idênticos aos que são próprios do direito e do processo criminal.
Todavia, como a seguir se observará, semelhante entendimento não tem razão de ser.
Vejamos.
Atendendo a que 'a necessidade de dotar o nosso país de um adequado `direito de mera ordenação social' vem sendo, de há muito e de muitos lados, assinalada', e porque 'tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionário alternativo e diferente do direito criminal', o Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, aprovado sob o impulso do Prof. Eduardo Correia, Ministro da Justiça do IV Governo Constitucional, veio instituir no nosso ordenamento jurídico o regime do ilícito de mera ordenação social.
E logo houve ensejo, no respectivo texto preambular, de se deixarem assinalados alguns traços essenciais, caracterizadores da natureza própria do direito de mera ordenação social, especialmente no plano da sua relaçionação com o direito criminal.
A este respeito, ali se escreveu:
'Sabe-se, por outro lado, como o direito de mera ordenação social tem sido, na
última década, objecto de cuidada e persistente reflexão tanto por parte da doutrina estrangeira como da doutrina portuguesa. Por isso é que, a par de alguns pontos de controvérsias que persistem, se registam já consideráveis áreas de consenso ou mesmo de unanimidade. Como acontece, manifestamente, quanto à distinção entre o direito de mera ordenação social e o direito penal.
Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação `é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal' (Eduardo Correia, Direito penal e direito de mera ordenação social, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p.
268)'.
Entretanto, porque o Presidente da Assembleia da República e o Procurador-Geral da República solicitaram, nos termos do artigo
281º, nº 1, da versão originária da Constituição, ao Conselho da Revolução a apreciação e declaração da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 232/79 (o qual, aliás, foi parcialmente revogado pelo Decreto-Lei nº 411-A/79, de 1 de Outubro), veio aquele diploma a ser objecto de um parecer da Comissão Constitucional, concretamente o Parecer nº 4/81, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, 14º vol., pp. 205 a 272, no qual se tratou longamente daquele tema, fazendo-se minuciosa referência às posições mais significativas da doutrina portuguesa e estrangeira.
E, na linha de orientação já traçada no preâmbulo do respectivo diploma, a Comissão Constitucional, a propósito da natureza do ilícito de mera ordenação social, ponderou o seguinte:
'Historicamente, a designação e regulamentação das contra-ordenações e do chamado ilícito de mera ordenação social tem a sua origem na evolução da dogmática penal alemâ e da evolução legislativa no período subsequente à II Guerra Mundial, coroando a teorização que vinha sendo feita desde o início do século, em matéria do chamado direito penal administrativo. Como escreve Jescheck: `Depois de 1945 surgiu, ao lado dos crimes, delitos e contravenções, uma quarta categoria de violações, que são cominadas com sanção estadual repressiva: as contra-ordenações. Estas retomam o velho direito penal administrativo de uma forma mais alargada e adequada às exigências do Estado de Direito'.
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As observações sumárias que deixámos acima referidas acerca da evolução legislativa e doutrinal alemãs, ajudam-nos a encarar a natureza do ilícito de mera ordenação social entre nós.
Para o legislador português - ao que parece único legislador europeu que seguiu até agora a solução germânica - o direito de mera ordenação é um aliud relativamente ao direito penal, um ramo diverso, um `ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal'.
Como se afirma em múltiplos passos do preâmbulo do Decreto-Lei nº 232/79, as infracções às leis vigentes nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura e ambiente normalmente não atingirão relevo penal, antes configurando `uma forma autónoma de ilicitude que reclama um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo'.
Para o legislador português, as contravenções 'tradicional e indevidamente integradas no ordenamento jurídico-penal', deverão passar a ter a sua sede natural no direito de mera ordenação social. Quer dizer, com a instituição do ilícito de mera ordenação social visou-se descriminalizar muitas infracções, apontando-se para a aplicação administrativa das sanções pecuniárias cominadas para as contravenções. Repare-se que doutrinalmente, mesmo antes da publicação do Decreto-Lei nº 232/79, já era corrente o ensinamento de que as contravenções pertenciam substancialmente ao direito de mera ordenação.
Em vez das sanções administrativas - vulgarmente entendidas como as `reacções impostas sem quaisquer garantias processuais, independentemente de toda a ideia de culpa, de tipicidade ou de ponderação de circunstâncias que possam excluir a ilicitude ou a censura, mesmo social, de um comportamento humano' - as coimas ou sanções pecuniárias correspondentes às contra-ordenações pressupõem uma censura social a qual não implica na sua expressão `um sentido de retribuição ou expiação ética, ligado a uma finalidade de recuperação do delinquente, mas exprime, apenas, uma advertência de que está ausente o pensamento de qualquer mácula ético-social'.
Com o material carreado podemos formular o juízo de que o direito de mera ordenação social pretende ser entre nós um ramo de direito sancionatório público com autonomia legal'
Entretanto, e porque após a publicação do Decreto-Lei nº 411-A/79, o regime das contra-ordenações introduzido pelo Decreto-Lei nº 232/79, havia ficado desprovido de qualquer eficácia directa e própria, tornou-se mais instante a necessidade de reafirmar a vigência do direito de mera ordenação social, introduzindo-se, do mesmo passo, algumas alterações no respectivo regime.
Em ordem á prossecução deste objectivo, foi publicado o Decreto-Lei nº 433/82, revogando o Decreto-Lei nº 232/79, e instituindo o quadro geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, que ainda hoje se mantém essencialmente em vigor, pese embora as alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro.
E, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 433/82, de novo se reafirmam as grandes linhas de separação e distinção entre os crimes e as contra-ordenações, no plano da sua regulamentação substantiva e processual.
Esta progressiva autonomização do direito de mera ordenação social, em termos de lhe ser conferida efectividade distinta e autónoma do direito penal, veio a ser confirmada no novo Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, no qual se aderiu decididamente
'ao movimento de descriminalização', projectando-se, por fim, num conjunto de transformações do próprio quadro jurídico-constitucional.
Com efeito, na sequência da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, a Constituição acolheu expressamente o direito das ordenações e o ilícito contra-ordenacional, em termos de se poder dizer que o ilícito criminal, stricto sensu e o ilícito contra-ordenacional, passaram a ser os únicos ilícitos sociais constitucionalmente referidos [cfr. os artigos 168º, nº 1, alínea d), 229º, alínea m) e 282º, nº 3, da versão de 1982, artigos 168º, nº 1, alínea d), 229º, alínea p) e 282º, nº 3, da versão actual].
Nesta linha de continuidade da crescente institucionalização do direito de mera ordenação social, a revisão constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, veio assegurar aos arguidos, nos processos por contra-ordenação, os direitos de audiência e defesa, em termos similares aos que já eram garantidos nos processos disciplinares instaurados no âmbito da função pública (cfr. artigos 32º, nº 8 e
269º, nº 3 da Constituição).
De tudo o exposto pode dizer-se, acompanhando Figueiredo Dias 'Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social', Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, 1983, p. 328, que são diferentes, com efeito, os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra-ordenações (cfr. sobre este tema, Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, vol. I, Barcelona, 1981, p. 78 e ss).
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2 - Aqui chegados e adquirido que está a distinta e diversa natureza do ilícito criminal e do ilícito de mera ordenação social, há-de dizer-se, que semelhante distinção não deixará de se reflectir no regime processual próprio de cada um desses ilícitos, bem como no 'estatuto' dos sujeitos processuais que neles podem intervir.
Em conformidade com o disposto no nº 1, do artigo
73º do Decreto-Lei nº 433/82, pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 50.000$; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias, salvo se estas consistirem em prestações pecuniárias inferiores a 50.000$; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a
50.000$ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
E, no nº 2 do mesmo artigo 73º, estatui-se assim:
'Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência'
No entendimento do recorrente, porque lhe assiste
'o direito fundamental de defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representa (artigo 56º, nº 1, da Constituição)', não só
'tem legitimidade para se constituir assistente nos autos de transgressão em causa, bem como possui o legítimo direito fundamental de defesa contra actos jurisdicionais que afectam os direitos e interesses dos trabalhadores que representa e que lhe cumpre defender e/ou promover a defesa, o qual, obviamente, só é exercível mediante recurso para outro(s) tribunal(ais), mesmo que o Ministério Público o não tenha feito [artigo 69º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal]'.
E nesta linha de raciocínio, conclui no sentido da inconstitucionalidade material da norma do nº 2 do artigo 73º do Decreto-Lei nº
433/82, 'na parte em que não se reconhece legitimidade ao assistente para interpor recurso para o Tribunal da Relação, por violação das normas contidas nos artigos 13º, 16º, 20º, nº 1 e 56º, nº 1 da Constituição e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem'.
Mas não tem razão.
Com efeito, e desde logo, deve assinalar-se que as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta esgotam-se de modo directo e imediato no processo a que respeitam e são indissociáveis do âmbito e dimensão da questão de constitucionalidade objecto da sindicância do tribunal. Tal questão há-de resultar rigorosamente demarcada pelo seu enquadramento material no caso concreto e há-de coincidir com a moldura factual considerada a esse respeito na decisão recorrida.
Quer isto dizer que a fiscalização constitucional neste tipo de processos há-de incidir sobre a situação material, nas suas implicações jurídico-constitucionais, com que o tribunal 'a quo' foi confrontado e sobre a qual proferiu o juízo entretanto sujeito a impugnação.
Ora, como bem salienta o senhor Procurador-Geral Adjunto, 'o objecto do presente processo não se traduz em definir o tipo de relação jurídica existente entre a trabalhadora, filiada na organização sindical recorrente, e a arguida, sua pretensa entidade patronal - mas tão somente decidir da aplicação ou não aplicação de uma coima àquela arguida, em consequência dos factos relatados no auto de notícia'.
Na verdade, a qualificação daquela relação contratual (existente entre a guia-intérprete B. e a arguida A.) surge, não como objecto da causa, mas como mera questão prejudicial de natureza não penal, sendo manifesto que a decisão a proferir por este Tribunal não se projectará sobre os direitos daquela trabalhadora, na eventualidade de os pretender fazer valer através da acção civil ou laboral adequada.
De todo o modo, o princípio consagrado no artigo
56º, nº 1, da Constituição, segundo o qual 'compete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representam' não pode ser entendido em termos de atribuir aos sindicatos um poder processual que a lei quadro reguladora do regime geral do processo contra-ordenacional não prevê nem admite, nem sequer parece impôr esse poder no domínio do próprio processo penal.
A distinção entre crime e contra-ordenação não esquece que estas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas, tal distinção terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal.
Ora, mercê da índole própria do ilícito contra-ordenacional, o processo que lhe serve de suporte não pode deixar de reflectir essa peculiar configuração aparecendo estruturado de modo diverso daquele com que se apresenta o processo penal: não existe assim entre ambos uma necessária e automática simetria no quadro do estatuto dos seus diversos sujeitos que aliás, exceptuando por força da própria natureza das coisas, o arguido e o Ministério Público, podem nem ser inteiramente coincidentes.
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3 - Como é sabido, pertence em regra ao Ministério Público a promoção do processo penal (artigo 48º do Código de Processo Penal), comportando porém este princípio geral algumas restrições de que cabe agora assinalar aqueles casos em que o procedimento criminal depende da acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, sendo então necessário que tais pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular
(artigo 50º do Código de Processo Penal).
Mas, para além desta situação de legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, outras hipóteses se verificam em que é legalmente autorizada a constituição de assistente em processo penal, desde logo a que respeita aos ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação desde que maiores de dezasseis anos [artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal].
Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei, competindo-lhes em especial: a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurem necessárias; b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente da acusação particular, ainda que aquele a não deduza; c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito (artigo 69º do compêndio normativo que se vem citando).
Por seu turno, os artigos 6º e 183º do Código de Processo de Trabalho concedem legitimidade para intervir como assistentes em processo penal do trabalho aos ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesse que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, e aos organismos sindicais nos mesmos casos em que tenham legitimidade para a acção cível (acções respeitantes aos interesses colectivos cuja tutela lhes esteja atribuída por lei).
O recorrente, como suporte da sua alegação, abonou-se, além de outras, nas normas atrás citadas, todas elas, como se viu, respeitantes ao instituto do assistente no domínio do processo penal ou do processo penal do trabalho.
Simplesmente, o regime geral do processo contra-ordenacional definido na lei quadro desta matéria - o Decreto-Lei nº
433/82 - não prevê o instituto da assistência no domínio deste processo, devendo entender-se o silêncio da lei sobre tal figura como uma clara opção do legislador e não já a tradução de uma mera lacuna a preencher por via do recurso
à analogia; é que, na linha lógica de desenvolvimento dos princípios caracterizadores deste regime processual, semelhante sistema parece impor-se por mais adequado à natureza jurídica do ilícito contra-ordenacional e do respectivo processo.
E assim sendo, a norma do artigo 73º, nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82, ao conceder legitimidade para interpor recurso da decisão do juiz da comarca para a Relação apenas ao arguido e ao Ministério Público e não já ao assistente, limita-se a respeitar a arquitectura lógico-processual definida no todo do articulado daquele diploma onde tal figura não se acha contemplada.
Mas, e como quer que seja, a não concessão da faculdade de recorrer para a Relação a um assistente já constituído no processo,
(não cabe no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal pronunciar-se sobre o rigor legal do despacho que concedeu ao recorrente a qualidade de assistente) não afronta qualquer preceito constitucional, nomeadamente os que são invocados pelo recorrente.
Com efeito, na norma do artigo 20º, nº 1, da Constituição garante-se, desde logo, a tutela jurisdicional mínima, isto é, a legislação ordinária terá de assegurar a todos sem discriminações de ordem económica, a via judiciária correspondente a um grau de jurisdição.
Aquela norma não faz qualquer expressa referência a sucessivos graus de jurisdição, assegurando-se apenas, num campo de estrita horizontalidade, o acesso aos tribunais para se obter decisão definitiva de um litígio.
Acresce que, anteriormente à Constituição de 1976, o recurso aos tribunais para defesa de direitos vinha a ser tradicionalmente exercido em função de um quadro jurídico preestabelecido, delineado pelo legislador ordinário, e variável em função da natureza desses direitos e das circunstâncias e condições desse exercício. E o sistema de graus de recurso era diverso de jurisdição para jurisdição: enquanto na jurisdição civil, na jurisdição do trabalho e na jurisdição administrativa se consentia, em regra, que os feitos, conforme a sua importância, fossem definitivamente julgados em um, dois ou três graus de jurisdição, já na jurisdição penal, a regra era a de permitir sempre o recurso da decisão final até um segundo grau de jurisdição e, nos casos de maior relevo, até mesmo a um terceiro grau de jurisdição.
Ora, nesta perspectiva histórica, é lícito afirmar que se o preceito do nº 1 do artigo 20º da versão originária da Constituição
(artigo 20º, nº 2, da versão saída da revisão de 1982 e novamente artigo 20º, nº 1, da versão actual se bem que com reformulação do texto) visasse e erradicação daquele regime do nosso sistema jurídico e, simultaneamente, pretendesse garantir, em termos absolutos, o acesso a um segundo ou até a um terceiro grau de jurisdição, não deixaria por certo de, por forma directa e explícita em tal sentido se manifestar, o que, como já se viu, não veio a suceder (cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 155/92, Diário da República, II série, de 2 de Setembro de 1992, bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob cit, p. 181 e Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, edição da A.A.F.D.L., vol, III, pp. 124 e 125).
Pode pois dizer-se, que o princípio constitucional contido no artigo 20º, nº 1, imperativamente, apenas garante um grau de jurisdição, o que no regime do processo contra-ordenacional se acha desde logo assegurado pela norma do artigo 59º da respectiva lei quadro que garante a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa perante o juiz de direito da comarca em cuja área territorial se tiver praticado a infracção.
E por outro lado, a não concessão a um assistente constituído em processo contra-ordenacional do direito de recurso para a Relação
(atribuindo a lei tal faculdade ao arguido e ao Ministério Público), também não se traduz em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
A caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material bastante, isto é, de falta de consonância e razoabilidade com o sistema jurídico.
A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da proibição do arbítrio, não elimina porém a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto e as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
Só que as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em razões constitucionalmente impróprias (cfr. neste sentido a jurisprudência do Tribunal Constitucional, citando-se por todos o Acórdão nº 48/84, Diário da República, II série, de 11 de Julho de 1984, e a generalidade dos autores, citando-se por todos, Jorge Miranda 'O regime dos direitos, liberdades e garantias', Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 50 e ss., Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, pp. 380 e ss. e Lívio Paladin, Il princípio costituzionale d'eguaglianza, Milão, 1965).
Ora, a não recorribilidade da decisão do juiz da comarca por parte do assistente constituído quando contraposta à recorribilidade dessa mesma decisão por parte do arguido e do Ministério Público, não envolve, no quadro próprio do processo contra-ordenacional, violação do princípio consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
A peculiar natureza jurídica do ilícito contra-ordenacional e, consequentemente, do sistema processual que serve de suporte ao seu sancionamento público, como já atrás se referiu (cfr. supra, II,
2)) não exige um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador, uma maior ou menor intensidade interventora deste hipotético sujeito processual (todo este discurso parte do pressuposto, puramente argumentativo, de que a lei consente em processo contra-ordenacional a figura do assistente).
As posições processuais do arguido e do Ministério Público, por um lado, e do assistente, por outro, não são idênticas, revelando, ao contrário, fortes elementos de dissemelhança não sendo assim constitucionalmente exigível, por parte do legislador, um tratamento idêntico e uma solução coincidente para esta e para aquelas posições processuais.
Aliás, mesmo no domínio do processo penal este Tribunal, a propósito da norma do artigo 390º, nº 2, segunda parte, do Código de Processo Penal de 1929, teve ensejo de sustentar um entendimento similar ao que atrás se deixou exposto (cfr. Acórdãos nºs 118/90, Diário da República, II série, de 4 de Setembro de 1990 e 189/92, de 21 de Maio de 1992, ainda inédito).
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Lisboa, 12 de Maio de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida