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Procº nº 771/92 Rel.Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I- Relatório.
1. A. foi condenado, por Acórdão de 21 de Janeiro de 1992 do Tribunal Colectivo do 1º Juízo Criminal de Lisboa, como autor material de um crime previsto e punido pelos artigos 23º, nº 1, e 27º, alínea d), do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro, na pena de 8 anos de prisão, tendo-lhe sido perdoado 1 ano e 6 meses de prisão, nos termos do artigo 14º, nº 1, da Lei nº 23/91, de 4 de Julho.
Daquele aresto interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não suscitando, na respectiva motivação, a questão da inconstitucionalidade de qualquer norma.
2. Por Acórdão de 24 de Junho de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso interposto pelo arguido, mas concedeu provimento ao recurso do Ministério Público, na parte relativa ao mesmo, e, em consequência, decretou a sua demissão da função pública, nos termos do artigo 66º, nº 2, do Código Penal.
Requerida a aclaração daquele aresto, foi a mesma indeferida por Acórdão de 28 de Outubro de 1992.
3. Inconformado, interpôs o arguido recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 1992 para o Tribunal Constitucional, referindo, em síntese, que o direito ao duplo grau de jurisdição - que é direito interno, na medida em que Portugal ratificou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem - não desapareceu pelo facto de o novo Código de Processo Penal o não prever, sendo esta omissão violadora da Constituição da República Portuguesa.
Verifica-se que o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal não preenchia os requisitos elencados no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº
85/89, de 7 de Setembro), uma vez que:
- não indicava a alínea do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 ao abrigo da qual é interposto;
- não identificava precisamente a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie;
- a tratar-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) daquele preceito, não individualizava a norma ou princípio constitucional que considerava violado;
- nem a peça processual onde suscitou a questão de inconstitucionalidade.
Todavia, o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça não endereçou ao recorrente o convite previsto no nº 5 daquele artigo 75º-A, antes proferiu logo, em 28 de Outubro de 1992, despacho de não admissão do recurso, do seguinte teor:
'O arguido A. vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na aplicação do artigo 665º do Código de Processo Penal e na violação do 'duplo grau de jurisdição'.
Porém, verifica-se que se trata de questões novas, que não tinham sido levantadas no decurso do processo. E não pode haver recurso de decisões que não foram tomadas.
Por isso, não admito o recurso interposto'.
4. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, sustentando o reclamante, em suma, que:
- 'o requerimento de interposição de recurso pretendia ver declarado inconstitucional o artigo 433º do actual Código de Processo Penal' e não o artigo 665º do anterior Código;
- julga que, em última ratio, o seu pedido de interposição de recurso foi indeferido por não ter suscitado a inconstitucionalidade durante o processo, mas tal não colhe;
- na realidade, diz o artigo 70º, alínea f), da Lei nº 28/82 que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e);
- é verdade que o reclamante só veio invocar a inconstitucionalidade da norma a final;
- mas tal direito é um direito que lhe está garantido constitucionalmente, razão pela qual não tem que estar no elenco das nulidades previstas nos artigos 118º e seguintes do Código de Processo Penal;
- a violação de tal direito constitucional expresso constitui nulidade por inconstitucionalidade, sobre a qual o tribunal devia ter tomado posição;
- pelo que a mesma foi levantada antes de se esgotar o poder de análise do Supremo Tribunal de Justiça;
- e, assim, o recurso deve ser admitido.
5. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 18 de Novembro de
1992, manteve o despacho reclamado.
6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional emitiu parecer no sentido do indeferimento da presente reclamação.
7. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II- Fundamentos.
8. Adiantar-se-á que o recurso interposto pelo reclamante para este Tribunal era inadmissível, pelo que a reclamação deve ser indeferida. Vejamos porquê.
8.1. O reclamante refere-se à alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que declara recorríveis para o Tribunal Constitucional as decisões dos tribunais que apliquem normas cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e).
Mas, como bem realça o Exmº Procurador-Geral Adjunto, não consta dos autos, nem vem alegado pelo reclamante que, durante o processo, haja ele suscitado a ilegalidade:
- de norma constante de acto legislativo por violação de lei com valor reforçado [alínea c)];
- de norma constante de diploma regional, por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República [alínea d)]; ou
- de norma emanada de um órgão de soberania, por violação do estatuto de uma região autónoma [alínea e)].
Assim sendo, porque a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade [alínea a)], nem aplicou norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional [alínea g)] ou inconstitucional pela Comissão Constitucional
[alínea h)], e não estão em causa questões de natureza jurídico-internacional
[alínea i)], há que concluir, por exclusão de partes, que, in casu, só era cabível recurso ao abrigo da alínea b) do preceito citado.
8.2. A norma cuja inconstitucionalidade o reclamante pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse era, como ele próprio assinalou, a constante do artigo 433º do Código de Processo Penal de 1987. Ora, ainda que se considere que o acórdão recorrido aplicou aquela norma, a admissibilidade do recurso depende de a questão da sua inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo.
De acordo com a jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal, o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente em a inconstitucionalidade haver sido suscitada 'durante o processo', deve ser tomado 'não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)',mas num 'sentido funcional', tal que 'essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão'. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita'.
'[...] Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se - como tem este Tribunal entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade' [cfr., neste sentido, inter alia, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/85, in Diário da República, II Série, nº 157, de 11 de Julho de 1985; o Acórdão nº 94/88, in Diário da República, II Série, nº 193, de 22 de Agosto de 1988; o Acórdão nº
318/90, in Diário da República, II Série, nº 62, de 15 de Março de 1991; e o Acórdão nº 635/93 (ainda inédito)].
Ainda segundo a jurisprudência pacífica deste Tribunal, a referida orientação sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final (cfr. os arestos citados).
Com esta orientação jurisprudencial como ponto de referência, ter-se-á de concluir que, no caso dos autos, a questão de inconstitucionalidade não foi invocada 'durante o processo'. Na verdade, o ora reclamante teve oportunidade processual, designadamente na motivação do seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 433º do Código de Processo Penal de 1987 antes de esgotado o poder jurisdicional daquele Supremo Tribunal.
Não o tendo feito, perdeu a oportunidade de vir a interpor recurso de constitucionalidade, tendo por objecto tal norma, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso interposto era, pois, inadmissível, pelo que o despacho que recusou a sua admissão não merece qualquer censura.
III- Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 unidades de conta.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1994 Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa