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Proc. nº 61/90 Plenário Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I
1. O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do nº 4 do artigo 11º do REGIME JURIDICO DAS INFRACÇÕES FISCAIS NÃO ADUANEIRAS (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, 'na parte em que prescreve que a prisão alternativa será imediatamente cumprida quando o condenado, com trânsito em julgado, não pagar voluntariamente a multa no prazo legal, afastando expressamente a aplicação do disposto nos artigos 47º do Código Penal, 26º e 27º do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro, e 488º do Código de Processo Penal'.
O requerente, fundamentando o seu pedido, depois de historiar a evolução legislativa e jurisprudencial quanto ao sistema da conversão da pena de multa em prisão, quer no tocante à legislação penal e à justiça comum, quer no concernente à justiça constitucional, sintetiza da seguinte forma o sistema do novo Código Penal (de 1982) e respectiva legislação adjectiva:
'O regime do novo Código e da respectiva legislação complementar é sinteticamente o seguinte:
a) - quando o tribunal aplicar a pena de multa - que é fixada em dias, no mínimo de 10 e no máximo de 300 -, será sempre fixada na sentença prisão em alternativa pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (artigo
46º, nºs 1 e 3, do Código Penal);
b) - a multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nela fixado, não podendo ser acrescido de quaisquer adicionais, sendo o prazo de pagamento de dez dias, a contar da notificação para o efeito (artigo 487º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal);
c) - sempre que a situação económica e financeira do condenado o justifique, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a
última delas ir além dos dois anos subsequentes à data da condenação, mas podendo ser alterados, dentro dos limites referidos e quando motivos supervenientes o justifiquem, os prazos e os planos de pagamento inicialmente estabelecidos (artigo 46º, nº 5, do Código Penal);
d) - findo o prazo do pagamento da multa ou de algumas das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado (o que, no último caso, importa o vencimento de todas as restantes prestações - artigo 46º, nº 6, do Código Penal), procede-se a execução patrimonial (artigos 488º, nº 1, do Código de Processo Penal e 47º, nº 1, do Código Penal);
e) - tendo o condenado bens suficientes e desembaraçados de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue nos termos da execução por custas
(artigo 488º, nº 2, do Código de Processo Penal);
f) - se a multa não for paga ou executada, mas o condenado estiver em condições de trabalhar, será total ou parcialmente substituída pelo número correspondente de dias de trabalho em obras ou oficinas do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público (artigo 47º, nº 2, do Código Penal);
g) - para o efeito, o tribunal indaga, junto do condenado, das suas habilitações literárias e profissionais, da sua situação familiar e profissional e do tempo de que dispõe, e junto dos serviços de reinserção social, do possível local de trabalho e do salário respectivo, devendo a decisão que substituir a multa por dias de trabalho indicar o número de dias de trabalho correspondente aos dias de multa, calculado em função do vencimento base que corresponder à respectiva actividade (artigo 489º do Código de Processo Penal);
h) - o agente que se coloque intencionalmente em condições de não pagar, total ou parcialmente, a multa, ou de não poder ser ela substituída por dias de trabalho, será punido com a pena prevista no nº 3 do artigo 388º do Código Penal para o crime de desobediência qualificada (artigo 47º, nº 5, do mesmo Código);
i) - quando a multa não for paga nem puder ser executada ou substituída por dias de trabalho, será cumprida a pena de prisão aplicada em alternativa na sentença (artigo 47º, nº 3, do Código Penal);
j) - todavia, se o condenado alegar e provar que a razão do não pagamento da multa ou da não prestação do trabalho lhe não é imputável, após as diligências de prova que se revelem necessárias e mediante parecer do Ministério Público pode a prisão alternativa ser reduzida até 6 dias ou decretar-se a isenção da pena (artigos 47º, nº 4, do Código Penal e 27º, nº 2, do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro).'
Após esta descrição, o Procurador-Geral da República fundamenta nos seguintes termos o pedido que formulou:
'A norma cuja constitucionalidade se questiona afasta-se radicalmente deste regime, na medida em que pura e simplesmente elimina as fases da execução da multa e da tentativa da sua substituição por dias de trabalho, passando automática e directamente do não pagamento voluntário da multa para a execução da prisão alternativa, sem tolerar, no caso de o não pagamento não for imputável ao condenado, que a prisão alternativa seja reduzida na sua duração ou que seja mesmo decretada a sua isenção.
Este regime, tendo em conta casos em que o condenado, devido à sua situação económica, não está em condições de pagar a multa, é gerador de uma desigualdade de tratamento não constitucionalmente fundada, violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº 2, da Constituição, que expressamente proíbe que alguém seja privado de qualquer direito (no caso, o direito à liberdade, consagrado no artigo 27º) em razão da sua situação económica.
Noutra perspectiva, a norma impugnada é susceptível de gerar situações próximas da de prisão por dívidas, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, que é um dos princípios estruturantes do Estado de direito democrático (artigos 1º e 2º da Constituição).
Não se ignora que, em jurisprudência contrária à dominante nos tribunais judiciais, a Comissão Constitucional viria a julgar não inconstitucionais os artigos 123º, nº 1 e § único, do Código Penal de 1886 e
640º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1929, na redacção de 1972 (cfr., por todos, o acórdão nº 149, de 13 de Março de 1979, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 285, pág. 135); mas fê-lo no quadro de um regime que fazia preceder a conversão da multa em prisão da tentativa de execução patrimonial e que colocava ao condenado, como alternativa, a substituição da multa por prestação de trabalho.
E, por outro lado, não foi seguramente irrelevante para o facto de a jurisprudência dos tribunais comuns ter passado a julgar não inconstitucionais as apontadas normas, na redacção que lhes foi dada em 1977, a circunstância de o regime então instituído prever a redução e mesmo a isenção da prisão alternativa para os condenados que, por facto que não lhe fosse imputável, não estavam em condições de pagar a multa ou de trabalhar.
Todas estas cautelas foram ignoradas na norma ora impugnada; ela faz executar a prisão alternativa logo a seguir ao não pagamento voluntário da multa no prazo legal, sem tentar primeiro a execução patrimonial nem a substituição por dias de trabalho, e não previne, para situações de não pagamento não imputável ao condenado, a redução da duração ou mesmo a isenção da prisão alternativa.
Quadro este que é agravado pelo facto de o limite máximo da pena de multa ter sido exasperado de 300 para 1000 dias (artigo 11º, nº 1), o que tem por consequência que o limite máximo da prisão alternativa salta de 200 para 666 dias.'
2. Convidado a pronunciar-se, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro juntou à sua resposta três pareceres jurídicos e concluiu com o seguinte quadro argumentativo:
'a) Foi requerida a inconstitucionalidade do nº 4 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, pelo Senhor Procurador-Geral da República.
b) De acordo com o pedido de declaração de inconstitucionalidade a indicada norma violaria o artigo 13º da Constituição porque cria um regime de conversão de multa em prisão que não acautela as desigualdades.
c) Ainda segundo o aludido pedido seria violado o artigo 1º da Constituição já que não está assegurado devidamente a tutela da dignidade humana. Contudo,
d) O sistema de conversão da multa em prisão não viola, ainda que em si mesmo considerado, o princípio de igualdade.
e) de qualquer forma, encontrando-se acolhido no Código Penal o sistema de dias de multa, que não foi objecto de qualquer juízo de desvalor jurídico- constitucional, o sistema acolhido no RJIFNA, que consagra idêntico mecanismo, não poderá deixar de ser considerado constitucionalmente conforme.
f) Sendo certo a proibição da desigualdade, do arbítrio e da irrazoabilidade não há qualquer argumento de natureza constitucional ou de política criminal que imponha como única forma de concretizar a conversão da multa em prisão o sistema conceptual instituído no Código Penal.
g) Não se verifica, consequentemente, qualquer violação do artigo
13º da Constituição da República Portuguesa.
h) O princípio da dignidade da pessoa humana impõe um direito penal da culpa pelo qual se tenha em atenção na aplicação da pena a concreta culpabilidade do agente de infracção e, bem assim as suas condições concretas.
i) Ao consagrar o sistema de dias de multa o legislador realizou um tal desiderato que completou, ainda, com a indicação de necessidade de consideração das condições económicas do agente.
j) Não foram, assim, objecto de qualquer violação os artigos 1º e
2º da Constituição da República Portuguesa.'
3. O preceito colocado em crise pelo Procurador-Geral da República tem a seguinte redacção (artigo 11º, nº 4, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro):
'Não é aplicável o disposto nos artigos 47º do Código Penal, 26º e
27º do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro, e 488º do Código de Processo Penal, devendo, na sentença condenatória, fixar- se logo a prisão alternativa, pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, a qual sem prejuízo do disposto no nº 6, será imediatamente cumprida quando o condenado, com trânsito em julgado, não pagar voluntariamente a multa no prazo legal.'
Resulta, pois, do pedido que o requerente entende que a norma impugnada, ao estabelecer expressamente um regime de conversão da multa em prisão distinto do regime constante da legislação penal e processual penal, contém uma afronta, desde logo, ao princípio da igualdade consagrado no nº 2 do artigo 13º da nossa Lei Fundamental.
Contudo, a norma em causa já se encontra neste momento revogada.
Com efeito, através da Lei nº 61/93, de 20 de Agosto, a Assembleia da República autorizou o Governo a 'rever o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, adiante abreviadamente designado por RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro' (artigo 1º), autorização essa que comportava, nos termos do artigo 5º do diploma em causa, a alteração do regime das penas, definindo-se na respectiva alínea c), enquanto seu sentido e extensão nesta específica vertente, a 'aplicação em caso de falta de pagamento dentro do prazo legal do disposto nos artigos 47º do Código Penal, 26º e 27º do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro, e 488º e 489º do Código de Processo Penal'.
No uso desta autorização viria a ser emitido pelo Governo o Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, onde se pode ler no respectivo preâmbulo:
'O fenómeno [da evasão e fraude fiscal] constitui inaceitável violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade contributivas, pelo que, não sendo combatido de forma eficaz, criará nos contribuintes uma sensação de impunidade que um Estado de direito não pode permitir.
Esta necessidade de consciencialização do cidadão é reforçada pela certeza de que o imposto justo é condição essencial para a prossecução dos objectivos da comunidade em que se insere.
Daí que agora o RJIFNA venha prever a pena de prisão a título principal até cinco anos. De qualquer modo, o juiz pode em regra aplicar a multa desde que esta seja suficiente para satisfação do interesse de recuperação do delinquente e das exigências de prevenção e repressão do crime.
Deixa assim de vigorar o sistema da mera multa criminal de acordo com o sentido ético que cada vez mais impregna o ordenamento jurídico-tributário.
Característica do novo sistema é a abolição da conversão imediata de multa em prisão em caso de falta de pagamento.'
Neste contexto, o artigo 11º passou a ter a seguinte redacção:
' Artigo 11º
(Pena de prisão ou multa. Suspensão)
1 - A pena de prisão é fixada até cinco anos.
2 - A pena de multa é fixada em dias, de 10 até 360 dias para as pessoas singulares e de 20 até 1000 dias para as pessoas colectivas.
3 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 2000$ e
100.000$, tratando-se de pessoas singulares, e 5000$ e 500.000$, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades fiscalmente equiparadas, que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
4 - (Anterior nº 3).
5 - Na sentença condenatória de pessoas singulares deve fixar-se desde logo a prisão em alternativa pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, sendo aplicável, em caso de falta de pagamento no prazo legal, o disposto nos artigos 47º do Código Penal, 26º e 27º do Decreto-Lei nº 402/82, de
23 de Setembro, e 488º e 489º do Código de Processo Penal.
6 - ...........................................
7 - ...........................................
8 - ...........................................
9 -............................................
10-............................................
(sublinhado nosso).'
Nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei nº 394/93, as alterações introduzidas por este diploma ao RJIFNA e ao Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, salvo quanto à revogação do artigo 4º deste último diploma, entraram em vigor em 1 de Janeiro de 1994.
4. Da redacção acabada de transcrever resulta, pois, que o legislador adoptou uma solução de uniformização entre o regime sancionatório das infracções fiscais não aduaneiras e da legislação penal e processual penal geral quanto à conversão da multa em prisão, reenviando expressamente, no quadro de aplicação do RJIFNA, para os correspondentes preceitos da legislação criminal. Ou seja, adoptou uma solução que, sendo exactamente a contrária à da redacção inicial do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, corresponde precisamente à intenção do pedido do Procurador-Geral da República, que visava eliminar a discrepância existente entre os dois regimes de conversão da pena de multa em prisão.
Assim sendo, parece legítimo interrogarmo-nos àcerca da utilidade no conhecimento do pedido formulado pelo Procurador- Geral da República.
Na realidade, o Tribunal tem entendido que a revogação de uma norma não obsta, por si só, à eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pois que, enquanto a revogação tem, em princípio, uma eficácia ex nunc, a declaração de inconstitucionalidade, pelo contrário, produz efeitos ex tunc (artigo 282º, nº 1 da Constituição). Daí que se possa entender haver interesse na destruição dos efeitos produzidos pela norma medio tempore
(cfr., entre outros, o Acórdão nº 238/88, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Dezembro de 1989).
Esse interesse estará presente sempre que a declaração se mostrar indispensável para eliminar efeitos produzidos pela norma em crise durante o tempo em que esteve em vigor, e desde que se reconheça relevância constitucional
à destruição de tais efeitos (cfr. Acórdãos nº 103/87, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de Março de 1987, nº 238/88 atrás citado, nº 73/90, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1990, nº 135/90, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1990 e nº
465/91, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992).
No caso vertente resulta claro que, quanto às infracções fiscais não-aduaneiras que ocorram posteriormente a 1 de Janeiro de 1994, será, pois, aplicado inequivocamente o regime introduzido pelo Decreto-Lei nº 394/93, conforme resulta do disposto no seu artigo 6º, pelo que a questão do interesse no conhecimento do pedido reporta-se essencialmente às situações pendentes a que ainda se aplique o RJIFNA com a redacção decorrente do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro.
Ora quanto a estas, a admitir que algumas haja pendentes de decisão
- o que, aliás, parece não acontecer - tem pleno cabimento a aplicação retroactiva do regime da conversão da multa em prisão consagrado no nº 5 do artigo 11º do RJIFNA na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, quando lido à luz do disposto no artigo 29º, nº 4, parte final, da Constituição, pois que a eliminação da discriminação que funda o pedido do Procurador-Geral da República operada pelo diploma de 1993 faz com que este se apresente inequivocamente como revestindo um conteúdo mais favorável aos arguidos, razão que retira, de todo em todo, interesse jurídico relevante ao conhecimento do pedido tendo em vista a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do preceito impugnado.
Inexiste, assim, interesse relevante para que se conheça do pedido.
III
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 4 do artigo 11º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, por inutilidade superveniente.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 1994
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Luís Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Guilherme da Fonseca
Vítor Nunes de Almeida
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Armindo Ribeiro Mendes
Bravo Serra
Antero Alves Monteiro Dinis
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa