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Processo nº 364/91
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Procurador-Geral da República veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 46º, nº 4, da Constituição da República e dos artigos 1º e 8º da Lei nº 64/78, de 6 de Outubro, bem como do artigo 10º da Lei do Tribunal Constitucional, a declaração de extinção da organização denominada MOVIMENTO DE ACÇÃO NACIONAL - M.A.N., por se tratar de uma 'organização que perfilha a ideologia fascista'.
A fundamentar o pedido, aduz-se, no requerimento introdutório da instância, um extenso rol de factos, os quais, todavia, podem reconduzir-se, no essencial, ao seguinte:
a) No ano de 1985, em data anterior a 25 de Junho, um grupo de jovens residentes na área da Amadora, entre os quais A., B., C., D. e E., decidiu conjugar esforços para criar uma estrutura ou organização de âmbito nacional e carácter de permanência, a que deram a designação de 'Movimento de Acção Nacional', com a sigla 'M.A.N.';
b) Visavam, com essa estrutura, intervir activamente na vida política nacional, desencadeando um processo revolucionário que culminaria com o derrube do sistema político-constitucional vigente e a instauração de um outro modelo de Estado, designado de 'Estado Nacionalista';
c) Por escritura outorgada em 25 de Junho de 1985, no Cartório Notarial da Amadora, pelas cinco pessoas referidas na alínea a), foi constituída uma associação sem fins lucrativos, denominada 'Associação Cultural Acção Nacional', tendo por objectivo declarado '... a defesa e promoção dos valores nacionais, culturais, éticos, étnicos e espirituais' - associação que não era senão o suporte institucional para viabilizar o prosseguimento de, pelo menos, parte da actividade do M.A.N.;
d) A definição dos objectivos e da filosofia que norteiam o
'Movimento da Acção Nacional' foi sendo feita, nomeadamente, no periódico 'HH.'
- 'jornal nacionalista de combate ao sistema', propriedade do M.A.N. e seu
'órgão de expressão', cujo primeiro número foi publicado em Janeiro de 1986 - e, para além dele, noutras publicações do Movimento, como o jornal 'II.' (que substituiu o 'HH.'), o 'Manifesto', os 'Pontos Programáticos' e os 'Estatutos', e o boletim 'NN.';
e) De textos publicados nos lugares indicados [de que se fazem abundantes transcrições no requerimento inicial], resulta que o M.A.N., auto-definindo-se como 'uma organização cultural e política caracterizada por uma Terceira Atitude que se coloca em oposição ao Capitalismo e Socialismo de
'esquerda', se perfila, em síntese, como um movimento anti-democrático, evidenciando, em particular, uma clara aversão ao regime democrático instaurado em Portugal após 25 de Abril de 1974 e às suas instituições (em especial, os partidos políticos);
f) Daí que o M.A.N. se proponha justamente como objectivo
(como tal consagrado nos seus 'Estatutos') empreender o derrube, por via revolucionária, desse regime, para em seu lugar ser instaurado um 'Estado nacionalista';
g) Para tanto, o M.A.N. empenha-se na formação política dos seus militantes, aos quais incute a exaltação da colectividade nacional, a sobreposição dos interesses desta aos dos indivíduos, o culto da pureza da raça e do corpo, da ordem, da disciplina e da hierarquia;
h) Assim, por um lado, os militantes e apoiantes do M.A.N. reclamam-se de 'nacionalistas', reconduzindo-se o seu nacionalismo, não simplesmente, como pretendem, à defesa da integridade cultural, étnica e política da Nação, mas entroncando na concepção do Estado nacionalista por cuja instauração propugnam, e que tem como modelos inspiradores a Alemanha sob a direcção de Hitler, a Itália sob a direcção de Mussolini e Portugal sob a direcção de Oliveira Salazar;
i) O pensamento e acção destas figuras são exaltados, quer de viva voz por membros da comissão política do Movimento, quer em literatura cuja venda e distribuição o M.A.N. promove, como é o caso, em particular, de publicações das denominadas 'OO.';
j) A par disso, o M.A.N. e os seus militantes utilizam e difundem símbolos que a generalidade das pessoas alia aos regimes de Hitler e Mussolini - como são a saudação de braço ao alto, a cruz céltica e a cruz suástica -, bem conhecendo o seu significado histórico e as suas conotações actuais;
l) Por outro lado, os militantes e apoiantes do M.A.N. reclamam-se de 'racialistas' - o que se traduz na defesa de uma concepção impeditiva da coexistência de várias raças no mesmo espaço territorial e da miscigenação, que é tida como uma forma de degradação das raças;
m) Tal concepção espelha-se em vários slogans utilizados pelo M.A.N. e pintados pelos seus militantes em paredes do País, slogans que encontram explicitada a sua fundamentação em textos do Movimento, e que reflectem uma atitude de intolerância e rejeição relativamente a elementos não brancos da comunidade portuguesa - a qual se estende nesses textos, de resto, igualmente aos judeus;
n) A defesa dos valores nacionais feita pelo M.A.N. tem também uma dimensão que o Movimento qualifica de ética, a qual se prende com a condenação activa e intransigente de comportamentos diferenciados, nomeadamente o consumo de drogas, a prostituição e a homossexualidade - feita em nome de um modelo de homem simultaneamente político e soldado activo, à imagem da juventude hitleriana e dos guardas de ferro de Corneliu Codreanu;
o) O M.A.N. defende a postura agressiva dos seus membros e a utilização de métodos violentos como os únicos aptos a permitir a realização dos objectivos que se propõe - sendo que, nos seus textos, se exortam os militantes
à prática da violência (nomeadamente através da exaltação de agressões contra membros de grupos sociais que o movimento rejeita) e se apela, 'quer expressa quer subliminarmente, à revolta permanente e à agressão';
p) Nos anos de 1985 e 1986 a actividade do M.A.N. não foi significativa: com um número de militantes relativamente reduzido e uma implantação territorial localizada (circunscrita de início à Amadora, mas depois alargada a Lisboa, Castelo Branco, Porto e Queijas), o Movimento estruturava-se em pequenos grupos - 'Grupos de Acção'-, cuja actividade se limitava à realização de reuniões de preparação política e à difusão de propaganda em acções de rua, grupos que agiam sob a coordenação e orientação de um 'núcleo central', integrado pelos dirigentes, ao qual cabia a definição da política do Movimento, a elaboração de material de propaganda política e a sua distribuição pelo correio e a organização administrativa e financeira. Foi constituído ainda, para garantir a viabilidade financeira do projecto, um 'Grupo de Apoio Militante';
q) Mas já em 1987 o M.A.N. veio a conhecer um período de notória expansão, quer em número de aderentes, quer nas realizações levadas a cabo;
r) É por essa época - e na concretização do propósito que os dirigentes do M.A.N. haviam formado de fazer integrar nas suas fileiras o maior número possível de aderentes do movimento 'Skin Head', no intuito de aproveitarem a apetência destes para actos violentos - que vêm a aderir ao M.A.N. elementos preponderantes desse outro movimento (o primeiro deles, aliás, já em 1986), o que foi determinante para a captação deste último;
s) Concomitantemente o M.A.N. veio a apoiar o lançamento de uma publicação com o título 'MM.', que tem como objectivo - de acordo com o editorial do seu primeiro e único número conhecido, de 5 de Julho de 1987 - 'a organização do movimento Skin português', a qual (segundo o mesmo editorial) se inscreveria num processo mais vasto que aglutinaria os 'Skin Head', 'todos os autónomos nacionais revolucionários e nacionais socialistas' e ainda 'aqueles que militam em organizações que perfilham este ponto de vista'. Nessa publicação, além de se lançar o apelo a uma campanha de inscrições murais que deveriam ser acompanhadas da cruz céltica e das iniciais do M.A.N., inseriu-se - para mais facilmente atrair elementos do movimento 'Skin' - um historial deste movimento a nível europeu (historial caracterizado pelo incentivo e exaltação das acções violentas praticadas por grupos 'Skin Head') bem como a divulgação das publicações por ele editadas e grupos musicais nele inseridos;
t) Ainda no ano de 1987, o M.A.N. decidiu editar uma publicação dirigida ao movimento 'Skin Head' do Norte do país, a que deu a designação de 'LL.', e que teve por conteúdo essencial textos de divulgação ideológica e propaganda do M.A.N., em associação com propaganda relativa ao movimento 'Skin Head' nacional e internacional. Nessa publicação englobava-se, nomeadamente, vasta informação sobre grupos musicais e catálogos de cassetes audio de música 'nacionalista' comercializadas pelo M.A.N., procurando assim este, através do processo já adoptado pelo 'MM.', atrair uma vasta camada de aderentes do movimento 'Skin Head';
u) Na tentativa de enquadramento do movimento 'Skin Head' português, o M.A.N. utilizou ainda as páginas do periódico 'HH.', em cujo nº 4 foi publicado um artigo sobre 'Música Nacionalista', de carácter apologético, subscrito por F.;
v) Também no ano de 1987, o M.A.N. relançou o periódico
'JJ.', o qual, no seu quarto número, assumiu um carácter claramente instrumental, relativamente ao projecto de intervenção política do Movimento - como decorre do espaço que nele foi dedicado ao balanço das posições até então por aquele assumidas e aos novos rumos a trilhar;
x) Para além de todas as publicações já referidas, o M.A.N. procedia ainda à divulgação da sua propaganda e à difusão das suas propostas, concepções, referências e símbolos noutras publicações que editou, como os
'PP.' (publicitados no referido número da 'JJ.'), os 'QQ.' e as brochuras 'RR.';
z) Por outro lado, o M.A.N. procedia à venda postal dessas publicações, ou de algumas delas, através de um denominado 'SS.' do 'TT.'
(igualmente publicitado no mesmo número da 'JJ.'), o qual procedia também à venda de publicações das 'OO.';
aa) O rápido crescimento do M.A.N. nos finais de 1987 e no primeiro semestre de 1988 originou uma crise no Movimento, a qual impôs a clarificação e formalização da sua estrutura originária, o que veio a culminar numa aprovação de 'estatutos' - os quais definem, desde logo, as condições de adesão à organização;
bb) De acordo com essa estrutura orgânica, os aderentes do M.A.N. são agrupados em categorias diferenciadas - 'Amigos do Movimento',
'Apoiantes do Jornal', 'Candidatos a Quadros' e 'Quadros' - correspondendo a cada uma delas um diferente grau de responsabilidade e de acesso à informação interna;
cc) Esta estratificação de categorias, correspondendo a uma optimização dos meios humanos do Movimento, corresponde igualmente à vocação para o secretismo de que o M.A.N. rodeou as suas estruturas e actividades - também traduzida, de resto, quer nos deveres de sigilo, vigilância e recolha de informações impostos estatutariamente aos seus aderentes, quer nas instruções sobre segurança e repressão elaboradas pelo presidente do Movimento, na sequência de actos de violência em que intervieram militantes;
dd) Por outro lado, os membros do M.A.N. - cujo número, em
1989, ultrapassava seguramente uma centena - integram-se em estruturas de base territorial - núcleos territoriais, secções de freguesia, delegações concelhias e federações distritais - que se articulam através de responsáveis locais e regionais, nomeados pela Comissão Política nacional. Tudo indica, porém, que esta definição estatutária da organização regional do Movimento nunca foi integralmente cumprida;
ee) Mas já os órgãos nacionais - que são o Conselho Nacional, a Comissão Política e o Secretariado - têm existência prática e exercitam as competências que lhes estão atribuídas. Assim:
ff) Ao Conselho Nacional - no qual têm assento o Presidente do M.A.N., os membros das Comissão Política e do Secretariado e os responsáveis pelas estruturas locais - cabe a coordenação da actividade do Movimento a nível nacional, de acordo com as linhas de orientação propostas pela Comissão Política e pelo Secretariado nacional. Este Conselho, se bem que devesse, segundo os estatutos, reunir trimestralmente, realizou apenas três reuniões - a primeira, na Amadora, a 22 de Março de 1986; a segunda, em Lisboa, no Hotel G., a 27 de Maio de 1989; e a terceira, também em Lisboa, no Hotel H., a 28 de Junho de
1990 - reuniões nas quais participaram, pelo menos, os membros conhecidos da Comissão Política e do Secretariado;
gg) À Comissão Política nacional - integrada por cinco elementos e tendo um presidente que é, por inerência, o presidente do M.A.N. - está cometida a direcção do Movimento, a definição das suas linhas de orientação política e a organização territorial, administrativa e financeira. Além do presidente do Movimento, dela faziam parte, em 1988, F., I. e J., e, em 1990, L., M., N. e O.. Os membros deste órgão reúnem-se com uma periodicidade pelo menos quinzenal e na residência do presidente do Movimento, para além de promoverem reuniões com outros militantes na área da grande Lisboa;
hh) Entretanto, a presidência do M.A.N. - e, portanto, a presidência da sua Comissão Política - foi sempre assumida por A., elemento integrante do núcleo fundador do Movimento. Além de proprietário do jornal
'II.', último órgão oficial do M.A.N., e de director político do 'HH.' (onde colaborou com vários artigos), é ele o titular dos apartados (Apartados nºs.
------ e ------da Amadora) utilizados pelo M.A.N. para correspondência e difusão de material de propaganda, e foi ele, nomeadamente, quem formou o desígnio de integrar no M.A.N. aderentes do movimento 'Skin Head', tendo agido activamente no sentido de alcançar o objectivo pretendido. Ainda na qualidade de presidente do M.A.N. é ele quem centraliza, na sua residência, os ficheiros e pelo menos parte dos arquivos do Movimento, e na mesma tem instalado o computador por este adquirido e utilizado na respectiva actividade;
ii) Por último, o Secretariado nacional - que é integrado, por inerência, pelos membros da Comissão Política e por mais sete quadros do Movimento recrutados pelos primeiros - tem a seu cargo a execução da política do Movimento, bem como a responsabilidade pela área administrativa e financeira, sendo a sua actividade estruturada por pelouros (cerca de doze) distribuídos pelos respectivos membros. Concretamente: para além dos membros da Comissão Política fazem parte do Secretariado, pelo menos, P. (que é simultaneamente aderente do movimento 'Skin Head') e Q., sendo a distribuição de pelouros, por outro lado, a seguinte: - A.: sector financeiro, elaboração de propaganda e sua difusão pelos núcleos, organização destes e relações internacionais; - L.
(membro influente do grupo 'Skin Head' da margem sul e um dos responsáveis pelo núcleo do M.A.N. de Almada): formação e contactos com grupos estrangeiros congéneres; - M.: correspondência e tesouraria; - N.: relações públicas; - O.: orientação política e propaganda; - P.: segurança; - Q.: organização de conferências;
jj) O M.A.N. tem núcleos activos pelo menos na região de Lisboa e no Norte do país, nomeadamente no Porto, em Braga, em Aveiro e em Matosinhos, sendo que, em especial: - no conjunto das actividades da região de Lisboa tem particular peso o contributo dos membros do núcleo de Almada, integrados, na sua grande maioria, no movimento 'Skin Head' nacional; a intervenção do M.A.N. na região Norte é quase totalmente desenvolvida por dois dos seus membros (R. e S., este último activista do movimento 'Skin Head'), os quais coordenam a actividade dos respectivos núcleos e actuam sob orientação directa do presidente do Movimento;
ll) As receitas do M.A.N. provêm das quotizações dos respectivos membros, de donativos, da venda de material de propaganda e de publicações e ainda de financiamentos de organizações congéneres estrangeiras com as quais mantêm contactos (como a organização inglesa 'National Front' e o
'Partido Nacional Democrata' alemão);
Finalmente:
mm) Os sucessivos apelos à violência feitos pelo M.A.N. vieram a produzir como resultado o desencadear de acções violentas por parte de membros do Movimento, tal como a respectiva direcção sempre previra e quisera. Assim:
- nos finais de Novembro de 1988, no Largo -----------------, em Lisboa, um grupo de indivíduos não identificados, dirigido por dois membros do M.A.N. (T. e U.), envolveu-se em confronto físico com cidadãos cabo-verdianos, tendo desse confronto resultado a lesão física daqueles dois militantes do Movimento. A actuação destes foi apoiada expressamente pela direcção do M.A.N., tendo a ela sido dedicado o Editorial do nº 3 do 'LL.', o qual igualmente inseriu um poema da autoria de V., dedicado aos dois intervenientes no incidente referido, em que se exalta a coragem dos 'Skin Head' (poema e dedicatória que foram igualmente publicados no nº 5 do jornal 'HH.');
- Em 27 de Outubro de 1989, na Rua ---------------, em Lisboa, um grupo de indivíduos no qual se integravam X. e U., militantes do M.A.N., envolveu-se num conflito diante da sede do Partido Socialista Revolucionário - P.S.R., do qual veio a resultar a morte de Z.;
- no dia 18 de Novembro de 1989, pelas 23 horas, no Parque
-------------, na cidade do Porto, um grupo no qual se integravam pelo menos três militantes do M.A.N. (S., K. e W.) agrediu dois cidadãos de nacionalidade espanhola, sob o pretexto de que estes se encontrariam a consumir substâncias estupefacientes;
- no dia 19 do mesmo mês e ano, o mesmo grupo, com outros indivíduos, agrediu na Avenida -------------, também no Porto, um indivíduo de raça negra, atirando-o, propositadamente, já semi-inconsciente, a uma linha de caminho de ferro;
- no dia 31 de Dezembro de 1989, ainda no Porto, na Rua ---------------, um grupo, no qual se integravam S. e K., agrediu dois casais de raça negra;
- no dia 1 de Dezembro de 1990, do decurso de uma acção policial levada a efeito pela PSP no ---------------, em Lisboa, foi encontrado T. com um grupo de cinco indivíduos (no qual se incluíam Y. e AA., intervenientes nos acontecimentos da Rua --------------- que culminaram com a morte de Z.), sendo todos portadores de instrumentos de agressão;
nn) As reacções negativas da opinião pública e o receio de intervenção das autoridades levaram o Presidente do M.A.N. a determinar a suspensão das acções violentas, bem como a proibição de entrevistas - determinações, aliás, que não foram integralmente acatadas, nomeadamente por alguns militantes do Norte do País;
oo) Por outro lado, as instruções sobre a suspensão dos actos de violência deram origem a uma cisão no Movimento, tendo um grupo de militantes
- no qual se integravam T., BB., CC. e P. - constituído uma nova organização, com princípios norteadores e métodos idênticos aos do M.A.N., à qual deram a designação de 'Frente para a Defesa Nacional', e passado a editar um boletim com a denominação de 'UU.'.
O Procurador-Geral da República instruiu o seu requerimento com cópia dos autos de Inquérito nº 1990/90, que correu termos na Direcção Central de Combate ao Banditismo, da Polícia Judiciária, em três volumes e com vinte apensos, e arrolou 34 testemunhas.
2. Autuado o requerimento do Procurador-Geral da República em
10 de Julho de 1991, seguiu-se despacho do presidente do Tribunal, proferido após audição prévia deste, de 28 de Novembro do mesmo ano, no qual foram resolvidas as dúvidas relativas à forma de processo a observar no caso e à respectiva tramitação. Essas dúvidas emergiam: - por um lado, do desaparecimento, no novo Código de Processo Penal, da específica modalidade processual do artigo 613º, combinado com os artigos 596º e seguintes, do Código de Processo Penal de 1929 (relativa às infracções praticadas por magistrados do Supremo Tribunal de Justiça), que o artigo 8º da Lei nº 64/78 mandava justamente aplicar para a extinção duma organização tida como perfilhando ideologia fascista; - por outro, da circunstância de a competência para o decretamento dessa extinção haver passado do Supremo Tribunal de Justiça (como aquela lei inicialmente previa) para o Tribunal Constitucional, entretanto instituído, funcionando em plenário (Lei do Tribunal Constitucional, artigos 10ºe 104º, nº
2).
Assim, determinou-se em tal despacho que a forma de processo a seguir seria a do processo penal comum, com as adaptações exigidas, seja pela natureza do tribunal competente no caso e do modo da sua intervenção, seja pelo carácter específico da providência judiciária requerida. Daí que - como expressamente ficou decidido no mesmo despacho - não houvesse lugar, por um lado, a qualquer fase prévia de 'inquérito' ou 'instrução'; e, por outro lado, devesse proceder-se de imediato à 'citação' da organização requerida, para contestar e oferecer as suas provas (nomeadamente o rol de testemunhas) - neste ponto, de resto, como expressamente dispunha já o artigo 10º, nº 3, da Lei nº 64/78.
3. Nesta conformidade - e uma vez obtida informação complementar da entidade requerente sobre as pessoas que, por se tratar de uma organização de facto, haviam de ser consideradas como representantes em juízo dessa organização, nos termos do artigo 22º do Código de Processo Civil, e também do artigo 10º, nº 2, da Lei nº 64/78 - foi o MOVIMENTO DE ACÇÃO NACIONAL citado, nas pessoas desses seus representantes, para o efeito indicado.
4. Assumindo inequivocamente essa qualidade de representantes da organização requerida, vieram então A. e O. apresentar oportunamente a contestação de fls. 122 e seguintes - contestação na qual rebatem o requerimento inicial, em termos que, também no essencial, se podem reconduzir ao seguinte:
a) O Movimento de Acção Nacional - M.A.N., ao falar de 'processo revolucionário' e de 'derrube do sistema político-constitucional', queria referir apenas uma revolução de mentalidades e de modos de intervir na política, preconizando a criação de um país diferente - sendo essa mudança de ideias que teria como consequência a alteração do sistema político vigente;
b) Uma tal acção, ao nível da mudança de ideias, sempre foi desenvolvida dentro das leis do sistema e respeitando as suas regras;
c) Assim, e nomeadamente, o M.A.N. não propugnava o recurso à força, a intervenção pelas armas ou a violência, nem fazia a apologia desta, nunca tendo feito a exaltação de práticas violentas e actos de agressão;
d) O apelo à revolução constante de alguns textos transcritos no requerimento inicial não é um apelo à força e à violência, mas só à revolução das mentalidades;
e) Esta posição e atitude do M.A.N. foi clarificada em várias entrevistas dadas por militantes do Movimento à imprensa [das quais se transcrevem diversos excertos na contestação];
f) O Movimento não considerava Hitler, Mussolini ou Salazar, e as suas políticas, como modelos inspiradores: o que pretendiam era algo de novo e não o regresso ao passado e a essas políticas;
g) Se é certo que o contestante A. proferiu as afirmações, transcritas no requerimento inicial, de exaltação do Doutor Oliveira Salazar, a verdade é que elas se inscrevem num contexto em que o que é defendido é o espírito da Revolução de 1926;
h) As publicações denominadas 'OO.' (em que é feita a exaltação de figuras do nacional-socialismo alemão) não eram da responsabilidade do M.A.N., nem por ele eram divulgadas, limitando-se os militantes deste a informar os interessados onde podiam adquirir tais publicações;
i) O M.A.N. não usava a cruz suástica, nem jamais vendeu símbolos dos quais ela constasse; usava apenas a cruz céltica, a qual nunca foi utilizada pelos regimes fascistas;
j) A defesa da pureza da raça, feita pelo M.A.N., traduzia apenas a ideia da existência de características próprias, mais espirituais que físicas, de cada raça, que devem ser preservadas;
m) O 'racialismo', de que efectivamente os militantes do M.A.N. se reclamavam, não constituía uma forma de racismo, justificadora de atitudes violentas de discriminação ou segregação das diferentes raças, pois não é outra coisa senão uma doutrina que postula a diferença entre as raças e a necessidade da conservação das mesmas, reconhecendo que a coexistência de diferentes raças no mesmo espaço geográfico é potenciadora de conflitos sociais e que a miscigenação é uma forma de mistura que tem como consequência a degradação da cultura própria de cada raça;
n) Embora se sabendo da utilização dos slogans e pinturas murais referidos no requerimento inicial, alguns dos aí transcritos não eram usados pelo M.A.N.;
o) De todo o modo, não era intenção nem interesse do M.A.N., ou dos seus dirigentes, criar, por essa forma, um clima de discriminação racial - sendo que determinados textos invocados no requerimento inicial nada têm a ver com as pessoas em si e a côr da sua pele, mas com a contestação da prática de certos factos e situações e certos costumes de outras culturas;
p) Quanto aos judeus, o que o M.A.N. considerava era que, tendo em conta a sua história antiga e moderna, são um povo altamente racista e não nacionalista;
q) O M.A.N. e os seus dirigentes jamais pretenderam integrar o maior número de militantes do movimento 'Skin Head' - no intuito de aproveitar a apetência destes para a violência - e captar esse movimento: não foi com elementos 'Skin Head' que o M.A.N. cresceu. O que sempre defenderam era que o M.A.N. estava aberto a todos os que quisessem participar.
r) Quanto aos contestantes, em particular, ignoravam, seja o ingresso no M.A.N., seja a circunstância de pertencerem ao movimento 'Skin Head', de diversos elementos referenciados no requerimento inicial como preponderantes neste segundo movimento;
s) A eventual utilização pelos 'Skin Head' de símbolos do M.A.N. era inteiramente alheia à vontade dos militantes deste último;
t) O 'MM.' e o boletim 'LL.' não foram publicações editadas pelo M.A.N., nem este promoveu a sua propaganda através delas;
u) O contestante A., nomeadamente, não era colaborador desta segunda publicação, sendo que um texto seu, aí publicado, o foi abusivamente;
v) O artigo, publicado no nº 4 do jornal 'HH.', da autoria de F., foi da responsabilidade individual deste, e não do M.A.N.;
x) O jornal 'II.' não veio substituir o 'HH.' como órgão do M.A.N., pois tinha um âmbito mais alargado, nele sendo publicados artigos de opinião de pessoas não ligadas ao Movimento;
z) A publicação 'JJ.' nada tinha a ver com o M.A.N., sendo da exclusiva responsabilidade do contestante A. e de outra pessoa;
aa) Não é exacto que o M.A.N. difundisse a sua doutrina, referências e símbolos através de todas as publicações indicadas no requerimento inicial, pois a única publicação por ele verdadeiramente utilizada foi o jornal 'HH.';
bb) O M.A.N. nunca chegou a dispor de 'estatutos', pois o documento como tal referenciado não era mais do que um projecto dactilografado. O que existia era uma brochura explicativa da estrutura do Movimento;
cc) É falso que o agrupamento dos aderentes do M.A.N. em diferentes categorias tivesse alguma ligação a uma pretensa vocação do Movimento para o secretismo, pois toda a actividade e estruturas do M.A.N. eram públicas; como falso é, também, que os militantes do M.A.N. estivessem adstritos a um dever de sigilo; ou que o presidente do Movimento tivesse emitido quaisquer instruções sobre segurança e repressão;
dd) A estrutura regional do M.A.N. - e nomeadamente os 'núcleos territoriais' do Movimento - foi algo que nunca existiu, pois não passou de projecto nunca posto em prática. O que existiam, apenas, era elementos do Movimento em certas localidades, que asseguravam tarefas de distribuição de prospectos, jornais e propaganda;
ee) Não podendo assim falar-se de 'núcleos territoriais' do M.A.N., como tal constituídos, tão pouco é exacto que, na zona de Lisboa, o grupo de militantes de Almada tivesse especial peso (sendo certo que os elementos que o integravam tinham deixado de ter actividade há cerca de três anos); ou que o presidente do Movimento, contestante A., dirigisse, pelo modo indicado no requerimento inicial, os grupos de militantes do Norte do país (sendo certo que são desconhecidos dos contestantes os factos reportados nesse requerimento a tais grupos de militantes);
ff) É verdade que o contestante A. era o presidente do M.A.N., mas só enquanto existiu tal cargo; que era titular do Apartado ----- da Amadora; e que tinha em sua casa o ficheiro do M.A.N., por não haver outro local para colocá-lo. Já não é, porém, verdade: que fosse o titular de outros apartados postais; que tenha alguma vez formado o desígnio de integrar no M.A.N. aderentes do movimento 'Skin Head' e tomado iniciativas nesse sentido; que centralizasse os ficheiros do M.A.N., pois estes não existiam; que o computador existente em sua casa tivesse sido adquirido pelo Movimento, pois foi simplesmente emprestado ao contestante;
gg) Nunca chegou a existir um Secretariado do M.A.N., sendo que, a tal respeito, tudo não passou de mero projecto - nomeadamente a distribuição de tarefas reportada no requerimento inicial. Aliás, vários dos elementos aí referidos, a esse propósito, haviam deixado o M.A.N. há algum tempo (quando se iniciou a investigação que abrangeu o Movimento);
hh) Da Comissão Política do M.A.N. nunca fez parte L., que era simples militante do Movimento, e relativamente ao qual, de resto, era desconhecida, pelo contestante A., a alegada circunstância de ser membro dos
'Skin Head';
ii) O M.A.N. jamais recebeu financiamento ou apoio monetário de organizações estrangeiras; o que apenas existiu, por vezes, foram alguns assinantes estrangeiros das publicações;
ll) Não foi da responsabilidade do M.A.N., nem dos contestantes, o desencadeamento das acções violentas referidas no requerimento inicial - sendo que os contestantes desconhecem o modo como ocorreram tais factos e nem sabem se os indivíduos que neles participaram alguma vez foram membros do M.A.N.;
mm) A publicação (no jornal 'HH.') de um poema de V. alusivo a um desses incidentes foi feita a pedido e por vontade do autor;
nn) Não é verdade que o contestante A. tenha ordenado a suspensão de acções violentas, pois nunca teve a ver com elas, já que o M.A.N. não permitia nem apoiava a violência. E, quanto à suspensão de entrevistas, o que aconteceu foi os dirigentes do M.A.N. terem deixado de prestá-las, para evitar a sua utilização deturpada por órgãos de comunicação social que pretendiam
'incriminá-los';
oo) A cisão que ocorreu no M.A.N. deveu-se à discordância manifestada por certos militantes relativamente à condenação, pelos contestantes e pelo próprio M.A.N., de actos de violência que estavam a ser praticados.
Conclui-se - assim - que o M.A.N. nunca perfilhou ou fez a apologia da ideologia fascista, nem apoiou qualquer grupo responsável por atitudes de agressão e violência - o mesmo acontecendo com os contestantes. E nestes termos se requer 'que não seja proibido o exercício de qualquer actividade política aos contestantes', visto que - acrescenta-se - 'a organização de que faziam parte se encontra extinta por natureza por não ter actividade'.
Com a contestação foram arroladas treze testemunhas.
5. Junta a contestação, e atenta a natureza e complexidade do caso sub judice, foi ordenado que os autos fossem com vista a todos os juízes do Tribunal, de harmonia com o previsto no artigo 314º, nº 3, do Código de Processo Penal - só após o que foi proferido o despacho do artigo
312º do mesmo Código, a marcar a realização da audiência de discussão e julgamento.
6. Realizou-se esta audiência com observância do disposto nos artigos 321º e seguintes do Código de Processo Penal, tendo, durante ela, sido produzida a prova atinente aos factos alegados pela entidade requerente e pela organização requerida, e produzidas bem assim, a final, alegações orais pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em representação daquela entidade, e pelos Exmºs Advogados constituídos pelos representantes daquela organização.
7. Posto isto, porque entretanto não se suscitaram, nem agora se suscitam quaisquer questões prévias que obstem a um conhecimento de mérito, cumpre decidir .
II. Fundamentos
II. I. Os factos
8.Face à prova produzida em audiência - única que pode ter-se como relevante - o Tribunal considera provada a seguinte matéria de facto, com interesse para a decisão:
a) No ano de 1985, em data anterior a 25 de Junho, um grupo de jovens residentes na área da Amadora, entre os quais A., B., C., D. e E., decidiu conjugar esforços e criar uma estrutura de âmbito nacional e carácter de permanência, à qual deu a designação de 'Movimento de Acção Nacional' e atribuiu a sigla 'M.A.N.';
b) Em 25 de Junho de 1985, os mesmos outorgaram no Cartório Notarial da Amadora a escritura de constituição de uma associação sem fins lucrativos, que recebeu a denominação de 'Associação Cultural Acção Nacional' e que, tendo como objectivo declarado '...a defesa e promoção dos valores nacionais, culturais, éticos, étnicos e espirituais', não era senão o suporte institucional que os fundadores do 'Movimento de Acção Nacional' decidiram utilizar para viabilizar o prosseguimento de, pelo menos, parte da actividade a que se propunham;
c) A partir do núcleo inicial referido na alínea a), circunscrito à
área da Amadora, o M.A.N. fez um percurso de crescimento que veio a traduzir-se pela existência de grupos de militantes em várias localidades ou zonas do país - como a grande Lisboa, Almada, Porto, Matosinhos, Aveiro e Braga - militantes esses cujo número, por 1989, terá ultrapassado uma centena;
d) De acordo com um documento intitulado 'Estruturas do Movimento', que este tentou levar à prática, os aderentes do M.A.N. seriam agrupados nas categorias de 'amigos do Movimento', 'apoiantes do jornal', 'candidatos a quadros' e 'quadros políticos' - correspondendo, cada uma dessas categorias, a um diferente grau de responsabilidade e de acesso à informação interna;
e) O M.A.N. dispunha de um núcleo dirigente ou estrutura directiva - núcleo ou estrutura de que fez sempre parte A., o qual, desde o início, se assumiu como líder do Movimento e funcionou, na prática, como seu 'presidente';
f) Essa estrutura directiva compreendia, por outro lado, uma Comissão Política e um Conselho Nacional;
g) A Comissão Política existiu, de facto, como 'órgão' de direcção nacional do Movimento, tomando as decisões relativas à gestão quotidiana deste, e dela faziam parte, além do presidente do M.A.N., um número restrito de militantes, que foram variando ao longo do tempo;
h) Quanto ao Conselho Nacional, foram realizadas três reuniões - que foram reuniões alargadas de militantes do Movimento -, respectivamente em 22 de Março de 1986, na Amadora, 27 de Maio de 1989, no Hotel G., em Lisboa, e 28 de Junho de 1990, no Hotel H., também em Lisboa;
i) A actividade dos militantes do M.A.N. desenvolvia-se em ligação, se bem que não formalmente estruturada, com os órgãos centrais deste, e traduzia-se na angariação de assinaturas e venda do jornal, bem como na venda e difusão de material de propaganda do Movimento, e ainda em acções de rua, como distribuição de panfletos, colagem de cartazes e elaboração de pinturas murais;
j) As receitas do M.A.N. provinham das quotizações dos respectivos membros, de donativos e da venda de material de propaganda e de publicações;
l) O M.A.N. empenhou-se na formação política dos seus militantes e utilizou variadas publicações como veículo de difusão das suas propostas, concepções, referências e símbolos;
m) A linha ideológica do Movimento foi definida em dois documentos intitulados 'Manifesto' e 'Pontos Programáticos', os quais vieram a ser difundidos, nomeadamente, através do jornal 'HH.';
n) O jornal 'HH.' era propriedade do Movimento de Acção Nacional e tinha a sua redacção e administração no Apartado -------- - 2700 Amadora - apartado este de que era titular A. e que era referenciado, por outro lado e ainda, em propaganda inserta nesse periódico, como o endereço postal do Movimento;
o) Definia-se esse periódico como 'Jornal Nacionalista de Combate ao Sistema' e 'órgão de expressão' do M.A.N., tendo sido nos seus vários números, nomeadamente, que foi sendo feita a definição dos objectivos e da filosofia que norteavam aquele Movimento;
p) Além do periódico referido, o M.A.N. promoveu a edição de outras publicações ou escritos, como as brochuras 'RR.' e os 'QQ.', directamente destinados à divulgação da sua doutrina;
q) A difusão da doutrina e das concepções do M.A.N. foi ainda feita através do jornal 'II.', o qual, não sendo formalmente um órgão do Movimento, nem por ele editado, era todavia publicado por iniciativa e sob a direcção de militantes do M.A.N., e nomeadamente do presidente deste, A., que era o seu proprietário - nessa medida se achando ligado ao Movimento;
r) Também o denominado boletim 'LL.' e a publicação denominada 'MM.' eram, respectivamente, elaborado (o primeiro) e divulgado (o segundo) por militantes do M.A.N.;
s) E tanto uma como outra dessas publicações, bem como o periódico denominado 'JJ.', serviram indirectamente de veículo à difusão, seja da doutrina, seja, pelo menos, das referências e símbolos do M.A.N.;
t) O denominado 'SS.' do 'TT.', com endereço no Apartado nº ------
- 2700 Amadora, já referido [supra, alínea n)], constituía a vertente editorial do Movimento de Acção Nacional - o qual, através dela, se propunha proceder à venda postal de diversas publicações, entre as quais se incluiram, nomeadamente, os 'PP.' e publicações das 'OO.';
u) No jornal 'HH.', o M.A.N. auto-definiu-se como 'uma organização cultural e política caracterizada por uma Terceira Atitude que se coloca em oposição ao Capitalismo e Socialismos de 'esquerda';
v) Na sua origem esteve o descontentamento com o regime democrático instaurado em Portugal na sequência do movimento militar de 25 de Abril de 1974
- regime relativamente ao qual se evidencia uma clara aversão em textos vindos a lume em publicações editadas pelo M.A.N. (como o 'Manifesto', os 'Pontos Programáticos' e o jornal 'HH.') ou a ele ligados (como o jornal 'II.'), e de que é exemplo o artigo 'Daqui para a frente lutar para vencer', subscrito por A., e publicado no nº 1 do 'HH.', no qual se lê, nomeadamente, o seguinte: Para que queremos eleições quando os nossos interesses não são salvaguardados. Para que queremos viver em democracia se a ela corresponde a miséria, a corrupção e o terrorismo (...) aliado ao facto de ela nos ter sido imposta contra nossa vontade. Claro está que os que lutam pela revolução não querem viver em democracia, ou em algo semelhante. Queremos um Estado Nacionalista;
x) Nesses escritos, nomeadamente, assimila-se a democracia à instabilidade, à desordem, à corrupção e à ditadura, e responsabiliza-se o regime democrático pelo terrorismo, pela falta de condições de vida e por todos os males que afectam a sociedade portuguesa - como se evidencia pelos seguintes excertos, que se transcrevem: O sistema-regime que se impôs no 25 de Abril quebrou a unidade, subverteu a ordem, ditou a sua presença e domínio sugadores, pervertedores e arrogantes (no 'II.', nº 1); Tenho dito e escrito muitas vezes que a democracia é apenas a ditadura dividida por muitos - uma espécie pífia de ditadura com alvará (ainda no nº 1 do 'II.'); A democracia é a revolta legalmente estabelecida, é o rebaixamento, é a dispersão, é a instabilidade, é a desordem. A democracia destrói o Estado, corrói a Nação, desorganiza o Povo. Somos contra a democracia (nos 'Pontos Programáticos');
z) Nos mesmos escritos, a contestação do regime democrático traduz-se ainda em ataques desferidos às respectivas instituições, designadamente os partidos políticos, a respeito dos quais se escreveu no nº 4 do jornal 'HH.': 'os partidos, quer sejam de esquerda, do centro ou de direita, apenas estão interessados em subir ao poder mas nenhum deles vai mudar a nossa sociedade onde o poder do dinheiro é o centro de tudo'. Por outro lado, no nº 2 do mesmo jornal já se havia escrito: 'a principal função deste jornal é combater o sistema de partidos que se instalou em Portugal';
aa) Assim, tinha o M.A.N. como objectivo intervir activamente na vida política nacional e desencadear um processo revolucionário que culminaria com o derrube - por via não eleitoral - do sistema político-constitucional democrático vigente em Portugal, e a instauração, em seu lugar, de um outro modelo de Estado, designado de 'Estado Nacionalista';
bb) A proposta e o apelo à revolução resultam de vários textos imputáveis ao Movimento, como se vê, nomeadamente, através do seguinte, publicado numa das brochuras 'RR.': 'pretendem uma Revolução Nacional que transforme, de forma categórica, o mundo decadente em que vivemos';
cc) A concepção que o Movimento de Acção Nacional tem da sua intervenção política e da missão dos seus militantes envolve uma ideia de transcendência e sacralidade, ligada e decorrente da missão transcendente da Pátria - como se vê pelo 'Discurso acerca do Nacionalismo Português', publicado num dos 'QQ.';
dd) Na formação política dos seus militantes, o M.A.N. incute-lhes a exaltação da colectividade nacional e a sobreposição dos interesses desta aos dos indivíduos e, bem assim, o culto da pureza da raça, da ordem, da disciplina e da hierarquia;
ee) Os militantes e apoiantes do M.A.N. reclamam-se de
'nacionalistas' - sendo que tal nacionalismo entronca na concepção do 'Estado Nacionalista' por cuja instauração propugnam;
ff) Nesta concepção de Estado Nacionalista convergiam militantes com diferente formação ideológica;
gg) O M.A.N., embora sem repudiar os regimes políticos que vigoraram na Alemanha, sob a direcção de Adolfo Hitler, na Itália, sob a direcção de Benito Mussolini, e em Portugal, sob a direcção de Oliveira Salazar, considerava-os modelos historicamente datados;
hh) Em publicações cuja venda e divulgação o M.A.N. promovia - e concretamente nas denominadas 'OO.' - exaltam-se figuras ligadas ao Nacional Socialismo alemão, em particular Adolfo Hitler e Rudolf Hess, bem como a figura histórica de Mussolini;
ii) Em alocução proferida no jantar comemorativo do 64º aniversário do 28 de Maio de 1926, A., 'presidente' do M.A.N., exaltou a figura histórica do Doutor Oliveira Salazar e exprimiu 'a sua adesão e fidelidade para com o espírito da Revolução que eclodiu e triunfou em 1926, acabando com o regime de partidos então existente';
jj) O M.A.N. e os seus militantes utilizavam e difundiam os símbolos da saudação de braço ao alto e da cruz céltica - bem conhecendo o significado da utilização histórica do primeiro pelos regimes nacional-socialista alemão e fascista italiano, e a conotação actual do segundo com os movimentos
'nacionalistas' e a representação da raça e da cultura portuguesa e europeia;
ll) O M.A.N. e os seus militantes reclamam-se de 'racialistas' - defendendo assim uma concepção não favorável à coexistência de diferentes raças no mesmo espaço territorial e contrária à miscigenação , tida como uma forma de mistura que acarreta a degradação da cultura própria de cada raça;
mm) O jornal 'HH.', órgão do M.A.N., publicou no seu nº 4 um artigo intitulado 'Elogio da Raça', onde se escreve o seguinte: 'A Raça é o coro das raízes./ Sempre que os arcanos e arquétipos de um povo perduram intactos no tempo e no espaço, então a Raça subsiste como tal, ascende à dignidade de Ideal hereditário./ Afirmamos que a raça é tudo o que impede que o Povo decaia, degenere e se degrade numa massa disforme, desgarrada e caótica';
nn) Entre os slogans utilizados pelo M.A.N., e pintados pelos respectivos militantes em paredes do país, conta-se o seguinte: 'Portugal aos Portugueses';
oo) Tanto no jornal 'HH.' (órgão do M.A.N.), como no 'II.' (ligado ao Movimento), foram publicados textos onde claramente se defende o repatriamento dos 'negros, indianos e outros de origem não europeia', para assegurar 'a sobrevivência da Nação, da cultura e da identidade do nosso povo' e
'manter puro o corpo biológico da Nação Portuguesa' ('HH.', nº 2); ou se combate
'a entrada de imigrantes de cor no nosso País e nos restantes Países Europeus', por se não poder aceitar que 'gente de outras raças ocupe os nossos postos de trabalho' e nos 'obrigue a seguir os seus próprios costumes tribais', nem que
'os culpados pelo envenenamento e assassinato de uma juventude da nossa raça, através do tráfico de droga e da retransmissão do vírus da SIDA, circulem à vontade nas ruas das nossas cidades' ('II.', nº 2);
pp) Por outro lado, no mesmo número do jornal 'II.' foi publicado um artigo, intitulado 'A ocupação da Palestina e os meios de desinformação', de que constam as seguintes passagens, de cunho claramente anti-semita : 'Diz a lenda que por onde passava o Cavalo de Átila, nem a erva daninha voltava a crescer. Coisa semelhante tem-se passado, durante milénios, com os judeus: por onde têm passado, imposto a sua presença, a sua 'civilização' de usura e ódio (...) jamais alguém deixou de sentir repulsa'.(...) ' A tara judaica para se infiltrar nas sociedades humanas motivou sempre movimentos de defesa e foi fonte de conflitos gravíssimos'. Ou ainda esta outra, justificativa das acções cometidas pela Alemanha nacional-socialista contra os judeus: 'Quando a Alemanha Nacional-Socialista teve de defender o seu povo e a sua história, numa altura de grave crise provocada pelo domínio judaico sobre a economia e a vida da Nação...';
qq) A defesa dos valores feita pelo M.A.N. tem ainda uma dimensão que o Movimento qualifica de ética, a qual se prende com a condenação de comportamentos diferenciados, nomeadamente o consumo de droga, a prostituição e a homossexualidade;
rr) Em 1986 inscreveu-se no M.A.N. T., de alcunha 'T.', elemento do movimento 'Skin Head' da margem Sul do Tejo;
ss) Pela mesma época os dirigentes do Movimento de Acção Nacional formaram a decisão de integrar nas suas fileiras o maior número possível de aderentes do movimento 'Skin Head';
tt) Na sequência desse desígnio vários elementos deste movimento vieram efectivamente a filiar-se no M.A.N., entre eles se destacando F. e L., ambos da margem Sul do Tejo, sem que daí, porém, se haja seguido uma captação global do movimento 'Skin Head' pelo M.A.N.;
uu) No nº 5 do órgão oficial do M.A.N. - o jornal 'HH.' - foi publicado um poema, da autoria de V., dedicado aos elementos do M.A.N. T. e U., envolvidos num confronto físico com cidadãos cabo-verdianos, ocorrido em Novembro de 1988, em Lisboa, de que resultou a sua lesão - poema esse em que se exalta a coragem dos 'Skin Head';
vv) A dada altura verificou-se uma cisão no seio do Movimento.
9. O Tribunal considerou ainda provado:
- que a cisão verificada no seio do M.A.N. ficou a dever-se ao facto de haver um grupo de militantes que pretendia uma maior clarificação organizativa e ideológica do Movimento;
- que, na sequência de diligências de busca realizadas no âmbito do inquérito e da investigação policial que abrangeu o M.A.N. e a actuação dos seus militantes, as quais ocorreram em Fevereiro de 1991, os dirigentes do Movimento decidiram dissolvê-lo, pondo termo a toda a sua actividade;
- que o conteúdo dessa decisão foi o de cessar definitivamente tal actividade, sem intenção de retomá-la ulteriormente:
- que a actividade do M.A.N. cessou efectivamente em data indeterminada do ano de 1991, mas seguramente antes do mês de Julho desse ano;
- e que a mesma actividade se não reiniciou entretanto, seja através da realização de reuniões de formação ou outras, seja através da edição de quaisquer publicações ou textos, seja através de iniciativas de outro tipo, como acções de rua.
10. Diversamente - e também com interesse para a decisão - não considerou o Tribunal provado:
a) que, enquanto teve a sua implantação territorial localizada na
área da Amadora, o M.A.N. se haja estruturado com base em pequenos grupos, denominados 'Grupos de Acção', agindo sob a coordenação e direcção de um núcleo central;
b) que o crescimento do Movimento haja sido acompanhado pela clarificação e formalização de uma estrutura orgânica, com a correspondente definição de responsabilidades, competências e meios, culminando numa definição estatutária;
c) que os denominados 'Estatutos', constantes do documento de fls.
86 a 98 do Apenso 7-A dos autos cuja cópia foi junta com o requerimento inicial, hajam chegado a ser aprovados e a valer e vigorar como efectivos 'estatutos' do M.A N.;
d) que a estrutura orgânica nesse documento prevista para o Movimento haja chegado a ser formalmente implantada;
e) que, nomeadamente, os militantes do M.A.N. estivessem formalmente organizados em 'núcleos territoriais', 'secções de freguesia' e 'delegações concelhias' (estas duas, com responsáveis nomeados pela Comissão Política nacional) e 'federações distritais', articulando-se a partir da base para o topo;
f) que os órgãos centrais do M.A.N. correspondessem formalmente, no seu desenho, composição, estruturação interna e competências à definição constante do mesmo documento antes referido;
g) que, designadamente, entre esses órgãos centrais se contasse um Secretariado;
h) que a distribuição dos aderentes do M.A.N. por quatro categorias, com informação e responsabilidade diferenciadas, previsto no documento intitulado 'Estrutura do Movimento', haja tido prática concretização;
i) que essa estratificação por categorias dos militantes do Movimento correspondesse a uma vocação deste para o secretismo;
j) que a essa vocação de secretismo correspondessem, do mesmo modo, um pretenso dever estatutário de sigilo, vigilância e recolha de informações, e alegadas instruções sobre segurança e repressão elaboradas pelo presidente do Movimento;
l) que as receitas do M.A.N. tenham provindo igualmente de financiamentos de organizações congéneres estrangeiras, com as quais mantinha contacto, e, designadamente, que o Movimento haja recebido apoio monetário da organização inglesa 'National Front' ou da organização alemã denominada 'Partido Nacional Democrata';
m) que o periódico 'II.' tenha substituído o jornal 'HH.', como
órgão do M.A.N.;
n) que o M.A.N. tenha apoiado o lançamento da publicação 'MM.', em concretização da decisão de integrar no Movimento aderentes do movimento 'Skin Head';
o) que o denominado boletim 'LL.' fosse uma publicação que o M.A.N. decidiu editar, dirigida ao movimento 'Skin Head' do Norte do país;
p) que o M.A.N. haja relançado o periódico 'JJ.', e que este haja assumido, no seu quarto número, um carácter claramente instrumental, relativamente ao projecto de intervenção política do 'Movimento de Acção Nacional';
q) que o derrube por via revolucionária do regime democrático vigente em Portugal haja sido consagrado pelo M.A.N. em quaisquer estatutos;
r) que o M.A.N. e os seus militantes hajam utilizado e difundido o símbolo da cruz suástica;
s) que o processo revolucionário desejado pelo M.A.N. houvesse de revestir-se de carácter violento;
t) que o M.A.N. defendesse a postura agressiva dos seus membros e a utilização de métodos violentos como os únicos aptos a permitir a realização dos objectivos que se propõe;
u) que o M.A.N. exortasse os seus membros à prática de actos violentos, nomeadamente através da exaltação de actos de agressão contra grupos sociais que rejeita, e fizesse apelo, quer expressa quer subliminarmente, à revolta permanente e à agressão;
v) que a decisão, tomada em determinada época pelos dirigentes do M.A.N., de integrar nas fileiras do Movimento o maior número de aderentes do movimento 'Skin Head' teve o intuito de se aproveitar a apetência destes para actos de violência, no desenvolvimento do projecto que aqueles haviam concebido;
z) que, pois, os actos violentos descritos no requerimento inicial - e que ocorreram nos finais de Novembro de 1988, no Largo ---------, em Lisboa; em 27 de Outubro de 1989, na Rua ---------------, também em Lisboa, estes culminando com a morte de Z.; em 18 e 19 de Novembro de 1989, no Parque
-------------- e na Avenida -----------------, respectivamente, no Porto; e no dia 31 de Dezembro do mesmo ano, na Rua -------------, ainda no Porto -, actos esses em que intervieram ou terão intervindo militantes do M.A.N., hajam sido o resultado de apelos à violência feitos pelo M.A.N. ou respectivos dirigentes, ou hajam sido previstos e desejados por este últimos.
11. O Tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos que vem de considerar provados, com base nos depoimentos prestados na audiência de julgamento, com especial destaque para os seguintes: - das testemunhas DD., EE., S., R., FF., Q., L., F., T., I., GG. e BB., que foram todos militantes do M.A.N. e revelaram, por isso, possuir particular conhecimento dos factos; - e dos representantes do Movimento de Acção Nacional, e nessa qualidade contestantes, A. e O., em especial do primeiro.
Tais depoimentos e declarações, relativamente aos quais se verificou uma básica convergência, foram valorados, quer em si mesmos, quer conjugadamente com os documentos exibidos ou referidos no decorrer da audiência a várias das mencionadas testemunhas e aos referidos declarantes, documentos esses que constam de diversos apensos aos autos de inquérito nº 1190/90, cuja cópia foi junta com o requerimento inicial.
Nesse confronto e conjugação assentou, nomeadamente, a convicção que o Tribunal pôde firmar a respeito da ligação ou não ao M.A.N. das publicações e textos invocados no requerimento inicial e do diferenciado grau dessa ligação. Para este efeito foram particularmente relevantes os documentos de folhas 150 do Apenso 7-A (anúncio, com o timbre do Movimento, de publicações por este vendidas, com os respectivos preços) e de folhas 55 do Apenso 9 (anúncio, no nº
4 de 'JJ.', do 'SS.' do 'TT.').
II. O direito
12. No artigo 46º da Constituição da República, após se reconhecer a todos os cidadãos 'o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal' (nº 1), e após se precisar, em alguns aspectos essenciais, o alcance deste direito ou liberdade fundamental (nºs 2 e 3), acrescenta-se e esclarece-se expressamente que 'não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista' (nº 4).
Vindo esta última norma (como, de resto, todo o artigo 46º) da versão inicial da Constituição, deverá referir-se, antes de mais, haver sido ela aprovada por unanimidade na Assembleia Constituinte (Diário da Assembleia Constituinte, nº 41, de 3 de Setembro de 1975, p. 1166).
Entretanto, no ensejo, quer da 1ª Revisão (em 1982), quer da 2ª Revisão Constitucional (em 1989), não deixou o mesmo preceito de ser objecto de diferentes propostas de eliminação ou alteração quanto à sua parte final - justamente a relativa à proibição de organizações que perfilhem a ideologia fascista -, formuladas, seja por partidos políticos com assento parlamentar (v., quanto à 1ª Revisão, os Projectos de Lei de Revisão nºs. 1/II, da ASDI, e nº
2/II, da AD, no Diário da Assembleia da República, II Série, nºs 56 e 57, de 21 e 27 de Abril de 1981, respectivamente; e, quanto à 2ª, o Projecto de Lei de Revisão nº 1/V, do CDS, no mesmo Diário e Série, nº 10, de 17 de Outubro de
1987), seja por deputados a título individual (v., quanto à 2ª Revisão, a proposta do Deputado Sottomayor Cardia, ainda naquele Diário e Série, nºs.
12-RC, p. 355, e 16-RC, p. 462 ss.).
Pesem o vivo debate que geraram, em particular aquando da 2ª Revisão, e inclusivamente a reflexão interna que na mesma oportunidade não deixaram de suscitar no seio de outro partido parlamentar (o Partido Socialista: cfr., a esse respeito, Diário e Série cits., nº 16-RC, p. 464 e 471), acerca da justificação de manter-se no texto constitucional o ponto em questão, a verdade, porém, é que tais propostas não lograram aprovação - e, assim, a disposição do nº 4 do artigo 46º da Constituição manteve-se, até hoje, na íntegra (com ressalva de um retoque de redacção de que foi objecto na 1ª Revisão, mas que teve exclusivamente a ver, aliás, com a proibição de associações armadas ou similares).
13. Posto isto, pode dizer-se que praticamente desde o início da vigência da Constituição se levantou o problema da eventual necessidade de legislação específica que viesse conferir exequibilidade à norma do artigo 46º, nº 4.
Com efeito, logo em 1977 foi a Comissão Constitucional consultada sobre tal problema pelo Conselho da Revolução - nos termos do artigo 284º e para os efeitos do artigo 279º da versão originária da lei fundamental -, tendo vindo a emitir parecer no sentido afirmativo quanto à parte final do preceito, isto é, quanto justamente à proibição de 'organizações que perfilhem a ideologia fascista' (Parecer nº 11/77, em Pareceres da Comissão Constitucional, 2º vol. p.
3 ss.) . Acolheu o Conselho da Revolução esse parecer e, no seguimento dele e ao abrigo do citado artigo 279º da redacção primitiva da Constituição, recomendou à Assembleia da República 'a emissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível a norma constante do nº 4 do artigo 46º, que proíbe as organizações que perfilhem a ideologia fascista' (Resolução nº 105/77, no Diário da República, 1ª Série, de 16 de Maio de 1977, também publicada nos Pareceres e vol. cits., p. 23).
A recomendação do Conselho da Revolução deu origem à apresentação, na Assembleia da República, de três projectos de lei contemplando a matéria (os Projectos de Lei nºs. 75/I, 76/I e 77/I, respectivamente do PCP, do CDS e do PSD) e, em resultado dessa iniciativa, veio a Assembleia da República a aprovar o Decreto nº 176/I, o qual - após passado o teste da fiscalização preventiva da constitucionalidade, a que foi submetido por iniciativa do Conselho da Revolução, e a que respeitou o Parecer nº 19/78 da Comissão Constitucional (em Pareceres cit., 6º vol., p. 77 ss.), acolhido por aquele Conselho (Resolução nº
137/78, no Diário da República, 1ª Série, de 13 de Setembro de 1978, e ibidem, p. 109) - veio a converter-se na Lei nº 64/78, de 6 de Outubro, cuja epígrafe é, precisamente, 'Organizações fascistas'.
É, pois, o disposto nesta lei que basicamente importa considerar no caso - mas, naturalmente, sem perder de vista o horizonte constitucional em que a mesma se inscreve.
14. Começa tal diploma, no seu artigo 1º, por reproduzir a proibição formulada na parte final do nº 4 do artigo 46º da Constituição ('são proibidas as organizações que perfilhem a ideologia fascista'), e por fornecer, para o efeito do que nele se estabelece, a noção ou o conceito dessas organizações: primeiro, o que se entende por uma 'organização' (artigo 2º); e, depois, o que a caracterizará como perfilhando a ideologia fascista (artigo 3º).
Dispõe a lei, seguidamente, sobre as consequências jurídicas do incumprimento da proibição que estabelece (ou visa assegurar), consequências essas que serão de duas ordens: por um lado, a extinção, no mesmo acto em que sejam objecto dessa qualificação, das organizações judicialmente declaradas como perfilhando a ideologia fascista, com o impedimento do exercício, por si ou através de qualquer dos seus membros, directamente ou através de qualquer organização sucedânea, de toda e qualquer actividade e, bem assim, com a perda dos seus bens patrimoniais a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé (artigos 4º e 8º,nºs 2 e 3); por outro lado, a punição criminal dos fundadores e responsáveis da organização declarada extinta, bem como, em determinadas circunstâncias, dos seus simples membros ou até de quem só tenha participado na actividade da organização, com as penas de prisão de dois a oito ou até dois anos. Mais concretamente: são passíveis da primeira destas penas, 'os que tiverem organizado ou desempenhado cargos directivos ou funções de responsabilidade' na organização declarada extinta e também os membros dela
'que tenham tomado parte em acções violentas' ou 'que, após a extinção, ajam com desacatamento da decisão declaratória, ainda que no âmbito de nova organização similar'; são passíveis da pena de prisão até dois anos, as pessoas que, não sendo membros da organização declarada extinta, houverem 'participado na sua actividade ilícita'.
Por último, contém a Lei nº 64/78 um conjunto de preceitos adjectivos, provendo sobre a competência para o decretamento da medida extintiva e para a aplicação das sanções nela previstas, bem como sobre os respectivos processos. Assim: defere-se ao Supremo Tribunal de Justiça - hoje, ao Tribunal Constitucional - a competência para qualificar e declarar a extinção de organizações que perfilhem a ideologia fascista, define-se a legitimidade para o exercício da correspondente acção e estabelecem-se regras sobre o processo aplicável (artigos 6º, 8º, nº1, 9º e 10º); por outro lado, atribui-se ao tribunal criminal da comarca de Lisboa a competência para a aplicação das sanções criminais previstas no diploma (isto é, para o julgamento dos correspondentes crimes) e providencia-se sobre a celeridade do processo (artigos
7º, nº 1, e 11º); finalmente, articulam-se estas diferenciadas competências jurisdicionais, e os correspondentes procedimentos, dispondo que os processos em que o Supremo Tribunal de Justiça - leia-se, agora, o Tribunal Constitucional - tiver declarado extinta qualquer organização, por perfilhar a ideologia fascista, sejam por aquele remetidos ao tribunal criminal de Lisboa, a fim de neste se seguir o procedimento criminal (art. 7º, nº 2).
15. Da descrição do conteúdo da Lei nº 64/78, que acaba de fazer-se, já resulta claro que o legislador separa processualmente o reconhecimento judicial duma organização como perfilhando a ideologia fascista, e a declaração da sua extinção, das consequências jurídico-criminais ligadas à constituição de organizações dessa natureza; e também resulta claro, em vista de tal separação, que o objecto do presente processo se cinge à questão da qualificação da organização requerida como perfilhando a ideologia fascista, e ao eventual decretamento da sua extinção.
É certo - e disso haverá de ter-se consciência - que, na lógica do diploma em apreço, ocorre uma relação necessária de dependência e complementaridade entre aquele reconhecimento e aquelas consequências, já que o sancionamento criminal do desrespeito da proibição de constituir organizações que perfilhem a ideologia fascista depende, por um lado, da prévia declaração como tal, e da consequente extinção, de determinada organização, mas é, por outro lado, como que postulado por essa declaração. Ou seja: se a decisão judicial que qualifique uma organização como perfilhando a ideologia fascista é
'condição de punibilidade' dos fundadores, responsáveis, membros ou simples participantes na actividade dessa organização (nos termos antes sucintamente indicados), também, de acordo com o disposto na Lei nº 64/78, deverá ela dar automaticamente lugar à instauração do correspondente procedimento criminal.
Seja como for, não é do apuramento dessa responsabilidade individual, de natureza criminal, que agora se trata. É tão só - repete-se - de averiguar se a organização requerida deve qualificar-se como perfilhando a ideologia fascista, e deve, consequentemente, ser declarada extinta. A tanto se limita a competência do Tribunal Constitucional.
A questão é, pois, basicamente esta: face aos factos dados como provados pelo Tribunal, poderá e deverá concluir-se que o Movimento de Acção Nacional - M.A.N. deve ser extinto, por caber na categoria das organizações que perfilham a ideologia fascista, tal como definida nos artigos 2º e 3º da Lei nº
64/78?
16. Como logo se vê, o primeiro problema implicado na questão enunciada é o de saber se o Movimento de Acção Nacional constitui ou constituiu verdadeiramente uma 'organização'. De facto, o que no artigo 46º, nº 4, da Constituição (e, depois, na Lei nº 64/78) se proíbe não é a adesão individual de quemquer à ideologia fascista, nem toda e qualquer forma de manifestação pública, defesa ou propaganda dessa ideologia: é, tão-só, a existência de
'organizações' que se proponham tal objecto ou finalidade.
Daí que o legislador da Lei nº 64/78 tenha começado por definir o que se entende, para esse efeito, como 'organização'. Fê-lo, como já se disse, no artigo 2º do diploma, nos seguintes termos, que se transcrevem:
1 - Para o efeito do disposto no presente decreto [trata-se, evidentemente, dum lapso: deveria ter-se dito 'da presente lei'], considera-se que existe uma organização sempre que se verifique qualquer concertação de vontades ou esforços, com ou sem auxílio de meios materiais, com existência jurídica, independentemente de forma, ou apenas de facto, de carácter permanente ou apenas eventual.
2 - Consideram-se, nomeadamente, como constituindo organizações ou associações, ainda que sem personalidade jurídica, os partidos e movimentos políticos, as comissões especiais, as sociedades e as empresas.
Perfilha-se, pois, uma noção muito ampla de 'organização' - a qual tem correspondência, afinal, no entendimento ou conteúdo puramente 'sociológico' do conceito, isto é, no conceito de organização como 'sistema social': um sistema de actuações e comportamentos que mutuamente se integram e visam combinar, e que se diferenciam, de maneira relativamente estanque, do conjunto envolvente de actuações e comportamentos não pertencentes ao sistema (cfr., Niklas Luhmann, Evangelisches Staatslexikon, 2ª ed., col. 1689). É irrelevante, por conseguinte, tudo quanto respeite à configuração jurídica da entidade em causa: basta - nas palavras da lei - uma 'qualquer concertação de vontades ou esforços' para que se esteja perante uma organização. E mais: não será mesmo necessário que tal concertação de vontades se traduza na mobilização de meios materiais, em ordem à prossecução do objectivo comum; nem necessário será, tão pouco, que essa concertação tenha carácter de permanência.
Não por acaso, de resto, delimitou o legislador o conceito de
'organização' nos termos amplos que vêm de indicar-se: é que, desde logo, a proibição do artigo 46º, nº 4, in fine, da Constituição, reportando-se expressamente a 'organizações', e não simplesmente a 'associações', quis abranger, por certo, não apenas entidades deste segundo tipo (juridicamente configuradas como tais, ou não), mas ainda de outros; e, depois, nisso justamente se baseou também a Comissão Constitucional para opinar no sentido de que a exequibilidade do preceito constitucional em causa carecia de legislação específica.
Precisando este último ponto: entendeu a Comissão Constitucional (e, com ela, o Conselho da Revolução) que, se na legislação 'comum' anterior já existiam preceitos e instrumentos processuais de tutela que permitiriam viabilizar a proibição da parte final do art. 46º, nº 4, relativamente às associações (ainda que não personalizadas) e mesmo, porventura, às fundações, tal já não aconteceria 'no que se refere a outras formas admissíveis de organização' (v. Pareceres, 2º vol., cit., p. 9). Compreende-se, portanto, que sejam todas as formas admissíveis de organização as abrangidas pelo artigo 2º, nº 1, da Lei nº 64/78.
Entretanto, chamada de novo a examinar a matéria da proibição de organizações de ideologia fascista, agora em sede de controlo preventivo do decreto parlamentar que veio a converter-se na Lei nº 64/78, não deixou a Comissão Constitucional de advertir para algum risco que o recurso a uma noção tão ampla de 'organização' pode comportar, quando está em causa a restrição de direitos, liberdades e garantias - o risco, evidentemente, de poderem ser e virem a ser abrangidas pela fórmula legal situações que se localizam para além
(ou aquém) da proibição constitucionalmente estabelecida e estão, em boa verdade, cobertas ainda pela garantia das liberdades de expressão ou de manifestação.
Mas este risco, ou este perigo, considerou a Comissão que ficava contrabatido entendendo-se que a exemplificação feita no nº 2 do artigo 2º
'concretiza e delimita' o conceito do nº 1, 'avançando com figuras por demais conhecidas' - como as associações, com ou sem personalidade jurídica, os partidos e movimentos políticos, as comissões especiais, as sociedades e as empresas - 'que são susceptíveis de o precisarem'. E, a seguir, explicitou a Comissão: 'como a enunciação não é taxativa, outras concertações ou conjugações de vontades ou esforços poderão preencher o conceito de organização constante do decreto, mas o intérprete não deixará seguramente de orientar-se pelos exemplos que lhe são apresentados, não conferindo a dignidade de organização a esquemas que com eles se não identifiquem ou, pelo menos, a eles se não assemelhem'
(Pareceres, 6º vol., cit. p. 82).
O Tribunal sufraga por inteiro este entendimento das coisas, e a necessidade, dele decorrente, de operar com prudência e cautela na aplicação, às várias situações da vida que se apresentem, da noção de 'organização' vertida no artigo 2º da Lei nº 64/78.
17. Seja como for, mesmo operando com a prudência que acaba de referir-se e o teor da lei exige, não sofre dúvida que o Movimento de Acção Nacional - M.A.N. constituía uma 'organização', tal como esta realidade é concebida no preceito legal ora em causa. É essa, na verdade, uma conclusão que seguramente se impõe, face, por um lado, a quanto vem de dizer-se sobre o sentido e alcance do mesmo preceito e, por outro, à matéria de facto que o Tribunal deu oportunamente como provada.
É certo que o Movimento de Acção Nacional nunca assumiu a 'forma' de uma pessoa jurídica (naturalmente de índole associativa), mantendo-se sempre como mero 'ente de facto', e que é justamente a este 'ente de facto' - e não, importa sublinhá-lo aqui, à associação juridicamente 'formalizada' que lhe serviu de instrumento: a 'Associação Cultural Acção Nacional' - que se reporta o pedido de qualificação e declaração de extinção formulado no presente processo. Tal circunstância, porém, é irrelevante, pois, como se viu, a configuração jurídica da entidade social que, em cada caso, esteja em questão é de todo indiferente para inclui-la ou subsumi-la no âmbito do artigo 2º da Lei nº 64/78.
Por outro lado, é também certo não se poder afirmar que o M.A.N. alguma vez dispôs de uma 'estrutura orgânica' perfeitamente definida e clarificada, e 'estatutariamente' formalizada - mas isso é igualmente irrelevante, pois que tão pouco essa exigência pode retirar-se daquele preceito, mesmo quando cautelarmente interpretado, nos termos atrás referidos.
Relevante é, sim, que o Movimento de Acção Nacional constituía um agrupamento de pessoas, o qual se foi alargando no longo do tempo, que visou prosseguir em conjunto, e com permanência, um certo objectivo comum; - que dispunha de um núcleo dirigente ou estrutura directiva, composta, de facto, por um presidente, uma Comissão Política e o Conselho Nacional; - que a actividade dos membros ou militantes do Movimento se desenvolvia - e efectivamente se desenvolveu - em ligação, se bem que não formalmente definida, com os órgãos centrais dessa estrutura directiva; - que o Movimento reuniu e pôs ao serviço da prossecução dos seus objectivos meios de vária natureza, nomeadamente meios financeiros, provenientes, em particular, de quotizações dos respectivos membros; - que o Movimento se empenhava na formação dos seus militantes, utilizou diferentes publicações para difundir a sua doutrina e dispôs, inclusivamente, de um 'órgão de expressão', que foi o jornal 'HH.'.
Tudo isto, na verdade, é suficiente por si - e sem necessidade de mais considerações - para impor a conclusão de que o Movimento de Acção Nacional constituía uma 'organização', tal como definida no artigo 2º, nº 1, da Lei nº
64/78.
Mas não só isso. Com efeito, se às caracteristicas enunciadas se juntar a respeitante à natureza dos objectivos que tal Movimento se propõe, haverá mesmo de concluir-se que ele se inclui, afinal, numa das categorias de 'organização' que o legislador tipifica na exemplificação do nº 2 daquele artigo 2º: a categoria, justamente, dos
'movimentos políticos'.
18. Firmada esta conclusão, segue-se um segundo problema, do mesmo modo implicado na questão básica posta no presente processo - ou, se antes assim se quiser, uma segunda vertente dessa questão: naturalmente a de saber se a organização constituída pelo Movimento de Acção Nacional pode e deve qualificar-se como 'perfilhando a ideologia fascista'.
A caracterização do que seja uma organização que perfilha a ideologia fascista constitui, por certo, um problema bem mais árduo e complexo do que o anteriormente analisado.
Tal complexidade poderá situar-se logo ao nível da própria razão de ser e justificação constitucional de uma proibição 'privilegiada' de
'organizações que perfilhem a ideologia fascista', como é a da parte final do artigo 46º, nº 4, da lei fundamental, retomada pela Lei nº 64/78 - proibição essa, dir-se-á, que se apresenta como 'unidireccional', não abrangendo genérica e indiferenciadamente todas e quaisquer organizações que, v.g., 'atentem contra a ordem constitucional democrática' (para usar, com pequena diferença, uma conhecida fórmula da Grundgesetz alemã). E isso, tendo em conta que a busca de uma tal razão de ser e justificação normativas há-de naturalmente fazer-se também em termos actuais (isto é, considerando a aplicabilidade actual da Constituição e da lei), e não meramente históricos.
Todavia, mesmo prescindindo - como aqui se prescindirá - de um tal nível de análise da questão, sempre subsiste a dificuldade de determinar com precisão o conceito de 'ideologia fascista' - ou o que seja 'perfilhar a ideologia fascista' -, para o efeito da proibição constitucional e legal das correspondentes organizações, e da catalogação, nessa categoria, duma concreta organização. Dessa dificuldade dão justamente conta os já citados Pareceres nºs
11/77 e 19/78 da Comissão Constitucional (cfr. Pareceres, cit., 2º vol., p. 16 s., e 6º vol., p. 83 ss.).
É bem certo que o legislador - dando resposta à necessidade, que a Comissão Constitucional assinalou no primeiro dos Pareceres referidos, de também nesse aspecto, e sobretudo nesse aspecto, conferir exequibilidade ao artigo 46º, nº 4, da Constituição - veio, no artigo 3º da Lei nº 64/78, precisar e concretizar a noção de 'organização que perfilha a ideologia fascista', nos termos seguintes:
1 - Para o efeito do disposto no presente decreto [leia-se: 'da presente lei'], considera-se que perfilham a ideologia fascista as organizações que, pelos seus estatutos, pelos seus manifestos e comunicados, pelas declarações dos seus dirigentes ou responsáveis ou pela sua actuação, mostrem adoptar, defender, pretender difundir ou difundir efectivamente os valores, os princípios, os expoentes, as instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História regista, nomeadamente o belicismo, a violência como forma de luta política, o colonialismo, o racismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades mais representativas daqueles regimes.
2 - Considera-se, nomeadamente, que perfilham a ideologia fascista as organizações que combatam por meios antidemocráticos, nomeadamente com recurso à violência, a ordem constitucional, as instituições democráticas e os símbolos da soberania, bem como aquelas que perfilhem ou difundam ideias ou adoptem formas de luta contrária à unidade nacional.
Simplesmente, nem mesmo com esta concretização legal se eliminaram todas as dificuldades - seja ainda da própria clarificação conceitual da categoria 'organização de ideologia fascista', seja, muito especialmente, da sua aplicação em concreto.
Que é assim, no que toca àquela clarificação conceitual, denota-o logo, em primeiro lugar, a circunstância de o legislador haver tido de recorrer a um tão alargado conjunto de notas e índices, como os elencados nos nºs 1 e 2 do preceito transcrito, para densificar o conceito constitucional em questão, não logrando fazê-lo, afinal, senão de um modo típico e aproximativo; e resulta, a seguir, do facto de, no conjunto dessas notas ou índices, o lugar preeminente vir a ser assumido por uma noção meramente histórica - e, por isso, sempre susceptível de controvérsia ou polémica - como é a de 'regimes fascistas que a História regista'. Donde que, na aplicação concreta, por seu turno, desse conceito típico e aproximativo, sempre se suscite um problema, de resposta nem sempre fácil: o problema de saber qual a combinação dos diferentes índices legais que deve ter-se como relevante para que uma certa e determinada situação
(uma certa e determinada organização) seja subsumida na previsão legal.
19. Postas estas considerações gerais, e revertendo agora ao caso dos autos, dir-se-á - atentos os factos que o Tribunal considerou provados - que no Movimento de Acção Nacional - M.A.N. ocorrem, de todo o modo, algumas características que se aproximam, ou mesmo correspondem a notas ou índices a que se faz apelo no artigo 3º da Lei nº 64/78 (e é o que neste se refere, e tão-só, o que aqui importa) para caracterizar uma 'organização de ideologia fascista'.
Na verdade, deu-se como assente, nomeadamente: - que o M.A.N. professava uma concepção de 'Estado nacionalista' (a instaurar por via não eleitoral), oposta à democracia política entendida como regime de pluralismo partidário; - que, nesse contexto, se auto-definia como uma organização caracterizada por uma 'Terceira Atitude', oposta ao capitalismo e aos socialismos de 'esquerda'; - que o M.A.N. proclamava a exaltação da colectividade nacional, envolvendo uma ideia de transcendência e sacralidade desta, e a sobreposição dos seus interesses aos dos indivíduos, num contexto em que igualmente incutia nos seus militantes o culto da ordem, da disciplina e da hierarquia; - que o M.A.N. e os seus militantes se proclamavam de 'racialistas', professando o culto da pureza da raça, manifestando-se desfavoravelmente à coexistência de diferentes raças no mesmo espaço territorial e à sua miscigenação, e divulgando essa concepção - sendo que os termos em que tal divulgação se fazia eram indiscutivelmente susceptíveis de provocar sentimentos de xenofobia e ódio racial; - que o M.A.N. difundia os princípios e valores que assim professava em textos provenientes dos seus responsáveis e insertos em publicações que editava, apoiava ou vendia; - que, em tomadas de posição dos seus responsáveis ou em publicações que o M.A.N. divulgava, se exaltavam figuras que foram expoente do nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano, e também do corporativismo português, o que denota não ser tal exaltação de todo alheia à cultura do movimento; - e que, ainda, o M.A.N. e os seus militantes utilizavam e difundiam os símbolos da saudação de braço ao alto e da cruz céltica.
Verificada a existência destes índices, não se exclui, todavia, que se possa questionar que tais características, cada uma delas e todas no seu conjunto, e tendo em conta que se não provou o carácter violento da organização, se revistam de consistência bastante para qualificar o M.A.N. como 'organização que perfilhe a ideologia fascista', para os efeitos da Lei nº 64/78.
20. A verdade, porém, é que o Tribunal não necessita de dar resposta a esta questão - e isso porque considerou provado um facto que, em seu entender, retira à extinção do Movimento de Acção Nacional como 'organização de ideologia fascista' toda a justificação. Tal facto é o da dissolução definitiva do Movimento, antes mesmo de apresentado o requerimento introdutório da presente instância, e o da cessação efectiva de toda a sua actividade.
Com efeito, provado esse facto, e provado que ele ocorreu antes de instaurada a presente acção, segue-se que, em boa verdade, esta carece de objecto - já que a providência judiciária que com ela se visava essencialmente obter (o decretamento da extinção de determinada organização) deixa de ter sentido. Donde que, também perca sentido o passo intermédio dessa providência - que é o da qualificação da organização em causa, em termos de subsumi-la no
âmbito do artigo 3º da Lei nº 64/78.
Objectar-se-á a isto, no entanto, que, mesmo verificando-se a circunstância apontada - a dissolução da organização -, sempre a declaração ou decretamento da extinção dela seria necessária, enquanto 'condição objectiva de punibilidade' dos crimes tipificados nos nºs 1 e 2 do artigo 5º da dita Lei nº
64/78, e pressuposto, por outro lado, da efectivação do tipo criminal definido no nº 3 do mesmo artigo.
E a uma tal objecção poderá mesmo acrescentar-se, porventura, que o Tribunal, ao ignorar esse outro efeito da providência judiciária que lhe é requerida, acaba, no fundo, por esvasiar a Lei nº 64/78 de todo o seu alcance tutelar, preventivo e pedagógico. O que será tanto mais grave - dir-se-á ainda - quando a referida lei não perdeu, nesse aspecto, actualidade: bastará pensar no renovado surto de xenofobia e racismo, associados à violência, veiculado por grupos em geral catalogados como de extrema-direita, a que se vem assistindo no espaço europeu, e a cuja propagação ou reflexo Portugal não poderá considerar-se imune. E argumentar-se-á assim, apesar de (repete-se), por um lado, não se ter provado o carácter violento do M.A.N. e, por outro lado, os respectivos dirigentes terem espontaneamente decidido pôr termo à actividade da organização, com expressa intenção de a não virem a reatar.
Simplesmente, não podem inverter-se as coisas, e a verdade é que o apontado efeito jurídico-penal da declaração de extinção de uma organização de ideologia fascista é, tão-só, um efeito complementar dessa declaração - um efeito 'complementar', de resto, que o é também de um ponto de vista jurídico-constitucional, já que a exequibilidade do artigo 46º, nº 4, da Constituição de modo algum postula o sancionamento criminal de condutas violadoras da proibição aí estabelecida. Ora, tratando-se de um mero efeito
'complementar' da providência judiciária requerida, não deverá ele considerar-se suficiente, só por si, para a emissão de tal providência, quando a razão de ser nuclear desta já não subsista.
E, no caso, essa razão não subsiste, uma vez que, não se mantendo de pé a organização em causa, desapareceu o perigo que a sua existência, eventualmente, pudesse representar para a ordem constitucional democrática. De resto - deverá acrescentar-se neste contexto - tal como em matéria criminal é relevante a desistência e, quanto a certo tipo de criminalidade, se reconhecem mesmo efeitos favoráveis ao próprio arrependimento, também o desaparecimento de uma organização arguida de perfilhar a ideologia fascista há-de relevar para o efeito de saber se o pedido e a declaração da sua extinção ainda mantêm actualidade e interesse.
Consequentemente, a objecção aventada improcede, pois que o simples facto de a organização, que o Movimento de Acção Nacional - M.A.N. constituiu, se encontrar dissolvida já retirará toda a justificação material a que se fizesse eventualmente funcionar relativamente a ela, e aos que foram seus responsáveis, o regime da Lei nº 64/78 - ainda que tendo em vista, tão-só, o efeito preventivo ou dissuasor deste diploma.
III. Decisão.
21. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir o requerido.
Lisboa, 18 de Janeiro de 1994.
José Manuel Cardoso da Costa Maria da Assunção Esteves Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Luís Nunes de Almeida Messias Bento Antero Alves Monteiro Dinis António Vitorino Alberto Tavares da Costa Bravo Serra