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Proc. nº 234/93
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1.- Por acórdão de 14 de Julho de 1992, o Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Coimbra condenou, entre outros, A., pela prática do crime previsto e punido no artigo 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº
430/83, de 13 de Dezembro, agravado nos termos do artigo 27º, alíneas b), c) e g), do mesmo diploma, na pena de 3 anos de prisão e na multa de 3000.000$00, de que foi logo declarado perdoado, nos termos do artigo 4º da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, um ano de prisão e metade da multa.
Tendo recorrido deste acórdão para a Supremo Tribunal de Justiça, a arguida suscitou, em tal recurso, a questão da inconstitucionalidade dos artigos 29º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, e
432º, alínea c) e 433º, do Código de Processo Penal.
O S.T.J., por acórdão de 28 de Janeiro de 1993, negou provimento ao recurso, confirmando, portanto, integralmente o acórdão recorrido, tendo julgado não inconstitucionais as normas impugnadas pela recorrente.
Deste acórdão recorreu a arguida para o Tribunal Constitucional, cujo objecto consiste na questão de constitucionalidade das normas constantes dos artigos 29º, da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, e 432º, alínea c) e 433º do Código de Processo Penal de 1987.
2.- Nas suas alegações neste Tribunal, a recorrente ofereceu o seguinte quadro de conclusões:
'1. O duplo grau de jurisdição em matéria de facto nos feitos penais tem consagração vinculante, por força do artigo 16º, nº 1 da Constituição da República
2. Como de forma algo tíbia e, em todo o caso, descomprometida ao nível do epifenómeno verbal, reconhecem G. Canotilho e V. Moreira
3. Por força do disposto no nº 5 do artigo 15º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Aliás,
4. Que assim é, já foi reconhecido em anteriores arestos deste Tribunal Constitucional.
5. A designação de 'revista alargada' que se vem utilizando para 'caracterizar' os poderes de cognição do S.T.J. em matéria de facto, nos casos de recurso per saltum coenvolve uma manifesta
'fraude de etiquetas'. Na verdade,
6. O poder de controle do S.T.J. nesta matéria, assim, alegadamente, convertido em tribunal de instância, por antífrase, 'mitigada', ao abrigo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, só em casos raríssimos poderá dizer-se relevar, verdadeiramente, em sede de matéria de facto e, na verdade, de tal maneira
7. Que deve dizer-se que a solução encontrada e precipitada no referido normativo, limitou de forma descriminatória e excessiva o grau de recurso para o Supremo em matéria de facto. Assim
8. Ou se considera materialmente inconstitucional a norma da alínea c) do artigo 432º do Código de Processo Penal, por, como dispõe o artigo 29º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, o Supremo só conhece de matéria de direito, fora os casos previstos na lei
9. E, de entre estes excepcionados não se conta com a necessária amplitude aqueles decorrentes do artigo 433º do mesmo diploma,
10. Assim se eliminando o recurso per saltum e passando a Relação a conhecer de forma prévia e esgotante de toda a matéria de facto,
11. Ou, por razões de política legislativa e de organização judiciária se mantém o actual figurino, e nesse caso resulta materialmente inconstitucional a norma do artigo 433º do Código de Processo Penal, nos termos já aludidos nas conclusões precedentes, de forma a que o Supremo Tribunal de Justiça passe a conhecer com a amplitude possível, em segundo grau, de toda a matéria de facto assumida pela 1ª instância - solução que nem por ser inovadora honraria a cultura e a prática jurídica e judiciária portuguesa -
12. Inconstitucionalidade essa decorrente da violação do disposto no nº 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos - juridicamente vinculante na ordem jurídica interna, face ao disposto no nº 1 do artigo 16º da Constituição da República - e das normas do artigo 2º, nº 1, 20º, 32º, nº 1, 211º e 212º, entre outras, todas da Constituição da República
13. Como tal se declarando, com os conexos reflexos.'
3.- Nas contra-alegações que apresentou, o representante do Ministério Público neste Tribunal foi de opinião que 'não são inconstitucionais, pois não violam qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente as garantias de defesa, consagradas no artigo 32º, nº 1, da Constituição, as normas constantes dos artigos 29º, da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, e 432º, alínea c) e 433º do Código de Processo Penal, que, conjugadas com as do artigo 410º, nºs 2 e 3, estabelecem os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça nos recursos penais para ele interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos', termos em que preconizou que fosse negado provimento ao recurso. Além de uma extensa argumentação, o Procurador-Geral Adjunto recordou ainda que a 2ª Secção do Tribunal Constitucional já por diversas vezes decidiu no sentido assim preconizado, designadamente nos Acórdãos nºs 234/93
(quanto ao artigo 433º), 322/93 (quanto aos artigos 410º, nºs 1, 2 e 3, e 433º) e 356/93 (quanto aos artigos 410º, nº 2 e 433º), mantido este último acórdão inédito e publicados os dois primeiros no Diário da República, II Série, de 2 de Junho e 29 de Outubro de 1993, respectivamente.
Foram então corridos os vistos legais, passando-se, pois, a decidir.
II
1.- Vejamos, antes do mais, o teor dos preceitos invocados pela recorrente.
'Artigo 29º (da Lei nº 38/87)
(Poderes de cognição)
Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito.'
Preceitos do Código de Processo Penal de 1987
'Artigo 432º
(Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça)
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a)......................................
b)...................................... c) De acórdãos proferidos pelo tribunal colectivo; d)
...................................... e)
......................................
Artigo 433º
(Poderes de cognição)
Sem prejuízo do disposto no artigo
410º, nºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.'
Por seu turno, o artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987 dispõe do seguinte modo:
'Artigo 410º
(Fundamento do recurso)
1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.'
2.- Considerado o teor dos preceitos invocados pela recorrente, e lidos os mesmos à luz das alegações por ela oferecidas, resulta, pois, que o que está em causa neste processo é apreciar a conformidade constitucional do sistema denominado de 'revista alargada', introduzido pelo Código de Processo Penal de 1987, quando cotejado com a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição que a mesma recorrente retira não só do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, vigente na ordem interna, mas também das disposições conjugadas dos artigos 2º, 20º, 32º, nº 1, 211º e 212º da Constituição da República.
O Tribunal Constitucional já teve ocasião, por diversas vezes, de apreciar a matéria em causa à luz do Código de Processo Penal de 1929. E fê-lo, essencialmente, com base nos preceitos constitucionais, nomeadamente à luz das garantias de defesa dos arguidos em processo penal, consagradas de forma ampla no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
E embora tenha referido a este propósito, designadamente no Acórdão nº 401/91 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992), o preceito constante do artigo 14º, nº 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, foi, contudo, no domínio da interpretação do aludido normativo constitucional que o Tribunal encontrou a solução que fundamentou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, precisamente com fundamento na violação da garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Neste aresto, em que o Tribunal censurou a solução do Código de Processo Penal de 1929 quanto à reapreciação da matéria de facto pelos tribunais da Relação nos recursos deduzidos de acórdãos dos tribunais colectivos, foi expressamente afirmado que tal censura não equivalia a afirmar que a única solução compaginável com as garantias de defesa do arguido fosse a da repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, tendo-se, por isso, deixado em aberto a possibilidade de outras soluções poderem ser adoptadas pelo legislador por forma a dar cabal cumprimento ao aludido comando constitucional.
Logo, no presente processo trata-se, portanto, de saber se o sistema da 'revista alargada' introduzido pelo Código de Processo Penal de 1987 respeita o 'núcleo essencial' do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias, direito este que decorre do princípio das garantias de defesa dos arguidos plasmado no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
3.- Conforme refere o Procurador-Geral Adjunto, nas suas contra-alegações, a 2ª Secção do Tribunal já se pronunciou, por maioria, no sentido da conformidade constitucional do sistema em causa. Tal conclusão resulta, no essencial, da seguinte linha argumentativa de que se transcrevem as passagens mais significativas (retiradas do Acórdão nº 322/93):
'6. O artigo 32º, nº 1, da Constituição dispõe como segue:
1. O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
O processo penal de um Estado de Direito há-de
'assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi'; mas há-de também 'oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta' (cf. acórdão nº 434/87, publicado no Diário da República, II série, de 23 de Janeiro de 1988 e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 371, página 160).
Tal processo há-de ser, assim, um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder sempre defender-se. Este, o núcleo essencial do princípio da defesa, que, no artigo 32º, nº 1, da Constituição, se proclama.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 61/88, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988: A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos números 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de ser um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.
Pois bem: constitui jurisprudência firme deste Tribunal que uma das garantias de defesa, de que fala o nº 1 do artigo 32º, é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias - o que vale por dizer que, no domínio processual penal, há que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição (cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos nºs 124/90 e 186/92, já citados).
Como, porém, logo se advertiu no citado Acórdão nº
124/90, retomando o que se escrevera no também citado Acórdão nº 61/88:
Tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras
(decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso.
Ora - acentuou-se no mesmo Acórdão nº 124//90 -,
'uma repetição integral da prova perante o tribunal de recurso, se fosse praticada por sistema, seria, desde logo e como facilmente se compreende, absolutamente impraticável. Mas, a mais do que isso, revelar-se-ia de todo inconveniente'.
É que - como chama a atenção CUNHA RODRIGUES, loc. cit., página 393 -, 'há cada vez mais razões para olhar com cepticismo os segundos julgamentos montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral'.
É, de igual modo, de chamar à colação o facto
(sublinhado no Acórdão nº 124/90) de que a leitura ou a audição pelo Supremo Tribunal de Justiça da prova produzida perante o tribunal colectivo - para além de se tornar pouco menos que insuportável - acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação.
De preocupações deste tipo dava, aliás, também conta FIGUEIREDO DIAS, quando, ainda no domínio do Código de 1929, escrevia: E todavia, a apelação penal está hoje sob o fogo cerrado da crítica, que procura demonstrar ser ela, em si mesma considerada, uma espécie má de recurso. A jurisdição de apelação - diz-se -, qualquer que seja a perfeição e a fidelidade técnicas do registo de prova, e mesmo perante uma renovação do julgamento, será sempre 'de segunda mão', não tem as mesmas possibilidades de descoberta da verdade material que o juiz de 1ª instância; quanto mais não seja porque está temporalmente mais distanciada dos factos, sendo estes de mais difícil acesso para ela: os princípios da oralidade e da imediação dão os seus melhores frutos somente no decurso de uma audiência e, na verdade, da primeira. Ao que acresce a circunstância de a possibilidade de apelação contribuir inevitavelmente para a diminuição de qualidade da justiça prestada na 1ª instância: ela representa, na verdade, um convite implícito, tanto a um menor cuidado na apreciação dos factos a troco de um ganho de tempo, como a uma injustificável atitude sistemática de favor reum com que o tribunal de 1ª instância procurará antecipar a situação, sem dúvida mais favorável, em que o arguido se apresentará perante o tribunal de apelação (cf. 'Para uma reforma global do processo penal português', in Para uma nova justiça penal, páginas 189 e seguintes).
7. Dir-se-á, no entanto, que esta argumentação não
é inteiramente probante.
E, de facto, este Tribunal entendeu que o não era, para o efeito - que, então, estava em causa - de saber se a solução que se achava consagrada no Código de Processo Penal de 1929, quanto ao recurso para a Relação dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, era (ou não) constitucionalmente legítima. E, em consequência, pelo Acórdão nº 401/91, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, o artigo 665º daquele Código, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934.
Isso, porém, não significa que este Tribunal tenha entendido que, constitucionalmente admissível, fosse apenas uma solução legal que, nos recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, previsse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso (na época, perante a Relação, hoje, perante o Supremo Tribunal de Justiça).
Entre essa solução e o sistema que, então, vigorava
- o qual, no entender maioritário do Tribunal, 'na prática e na grande maioria dos casos, reduz[ia] a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto' - 'outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar' - lê-se no citado Acórdão nº 401/91.
8. Pois - entende, agora, o Tribunal - um sistema de recurso que, justamente, não dá o flanco às críticas de que é alvo a apelação penal (de que, atrás, se deixou constância) e que, simultaneamente, preserva o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias - direito que decorre do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição - é, como vai ver-se, o que se acha consagrado no actual Código de Processo Penal, maxime, nos artigos 410º e
433º.
Um tal sistema - um sistema de revista alargada - protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto); e, desse modo, defende-o do risco de uma sentença injusta.
De facto, o recurso que, aqui, está em causa é o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos finais dos tribunais colectivos.
Ora - como se sublinhou no citado Acórdão nº 124/90
-, o tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele próprio, uma primeira garantia de acerto no julgamento da matéria de facto.
Na verdade, o tribunal colectivo ouve a prova numa audiência pública, com observância das regras da oralidade, da imediação e do contraditório (cf. artigos 86º, 321º, 327º, 363º e 96º, conjugados com os artigos 340º e 345º a 348º e com os artigos 355º e 356º, do Código de Processo Penal). Depois, as testemunhas são inquiridas por quem as indicou e sujeitas a contra-interrogatório (a recordar o sistema da cross examination do direito anglo-americano) - o que, porém (em obediência ao princípio da investigação, que assim se conjuga com o princípio do acusatório) não dispensa os juízes de, por sua iniciativa, esclarecerem o facto sujeito a julgamento (cf. artigo 340º): na verdade, cada um dos juízes pode, 'a qualquer momento', 'formular às testemunhas as perguntas que entender necessárias para esclarecimento do depoimento prestado e da boa decisão da causa' (cf. artigo 348º, nº 5) - o que tudo releva de uma preocupação que é fundamental no processo: a busca da verdade material.
Acresce que se proíbe a 'testemunha de ouvir dizer'
(cf. artigo 129º) e que só podem perguntar-se factos (cf. artigo 124º) - e factos que não incriminem quem os revela (cf. artigo 132º, nº 2): é cláusula de não incriminação.
Mais: após as alegações orais (nas quais, o advogado do assistente, o Ministério Público e o defensor do arguido exporão 'as conclusões de facto e de direito, que hajam extraído da prova'), é dada ao arguido mais uma oportunidade de, ele próprio, dizer o que se lhe oferecer em sua defesa (cf. artigo 361º, nº 1).
Além disso, adopta-se, ao menos parcialmente, um sistema de 'césure', entre a 'questão da culpabilidade' e a 'questão da determinação da sanção', que, por isso, são votadas separadamente (cf. artigo
366º e 369º). E, com isso, visa-se assegurar um exame objectivo da prova produzida, um exame (nos dizeres do Acórdão nº 61/88) 'não antecipadamente condicionado e subvertido por um qualquer pré-juízo condenatório ou absolutório'.
Sucede também que, para a determinação da 'espécie e da medida' da pena a aplicar, o tribunal pode reabrir a audiência de julgamento, para a produção de prova suplementar (cf. artigos 369º, nº 2, e
371º).
Mais ainda: os juízes votam pela ordem inversa da sua antiguidade, sendo o presidente o último a votar (cf. artigo 365º) - o que, naturalmente, assegura a independência de juízo. Além disso, votam separadamente cada uma das questões, devendo cada um deles enunciar 'as razões da sua opinião' e indicar, 'sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção' (cf. artigo 365º, nºs 3 e 4). Ou seja: a decisão não é produto de uma qualquer impressão subjectiva ou da reflexão isolada de cada julgador, mas, antes, fruto de um debate e do confronto dos pontos de vista de cada um dos três juízes.
Por último: a sentença - que é elaborada 'de acordo com as posições que tiverem feito vencimento' (cf. artigo 372º, º 1) - tem que ser fundamentada, enumerando os factos provados e os não provados, e expondo, ainda que de forma concisa, 'os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal' (cf. artigo 374º, nº 2); e, sendo condenatória, deve ainda especificar 'os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada' (cf. artigo 375º, nº 1).
Pode, pois, dizer-se, com CUNHA RODRIGUES:
O que hoje se sabe é que a superior garantia que representam os tribunais colectivos resulta manifestamente da sua estrutura colegial e da imediação com os factos [...].
[...] Assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanto quanto possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança (cf. loc cit. página 393).
A tudo isto há que acrescentar ainda que, no recurso de revista alargada, aqui sub iudicio, sendo, também ele, de estrutura acusatória, há lugar a uma audiência; e, nesta, pode haver alegações orais (cf. artigos 434º e 435º).
E mais: embora o recurso vise, em regra, tão-só o reexame da matéria de direito (cf. artigo 433º), no entanto - e como já atrás se disse -, o Supremo Tribunal de Justiça pode, não apenas anular a decisão recorrida (cf. artigo 410º, nº 3, conjugado com os artigos 379º e 380º, nº 2), como decretar o reenvio do processo para novo julgamento. Questão (para este
último efeito) é que detecte erros grosseiros no julgamento do facto (a saber: insuficiência da matéria de facto; contradição insanável da fundamentação; ou erro notório na apreciação da prova) e que o vício detectado resulte do 'texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' (cf. artigo 410º, nº 1).
9. Face às críticas que têm sido dirigidas contra a apelação penal e que atrás se referiram, FIGUEIREDO DIAS, antes da publicação do actual Código de Processo Penal, dizia, justamente, que a eventual procedência das mesmas havia de conduzir à criação de um tipo novo de recurso penal que, então, designou por revista ampliada e que caracterizou do modo seguinte:
Um recurso, pois, que - continuando a supor uma qualquer forma de registo de prova produzida em 1ª instância - se não restringisse à tradicionalmente chamada
'questão de direito', mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida' (cf. Para uma reforma global do processo penal português cit.).
10. No intuito, porém, de concluir pela inconstitucionalidade das normas aqui sub iudicio, argumentar-se-á com o facto de a prova produzida perante o tribunal colectivo só ser registada
('documentada na acta' - diz o artigo 363º), 'quando o tribunal puder dispor de meios esteneotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas' - o que, dir-se-á, torna praticamente nula a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça detectar qualquer dos vícios relativos ao julgamento do facto e de, assim, vir a decretar o reenvio do processo para novo julgamento.
É esta, porém, uma argumentação improcedente, como se mostrou no já citado Acórdão nº 253/92.
No sistema do actual Código de Processo Penal, o registo da prova não tem, na verdade, a finalidade de permitir ao tribunal de recurso (no caso, ao Supremo Tribunal de Justiça) o controlo do julgamento do facto feito pelo tribunal recorrido. O registo das declarações produzidas oralmente na audiência de julgamento do tribunal colectivo é, antes, 'um meio de controlo da prova posto ao serviço desse mesmo tribunal. Com esse registo, o que se pretende é assegurar que o tribunal colectivo, com base nas declarações prestadas na audiência, venha a dar como provado o que realmente se provou e como não provados os factos de que se não logrou fazer prova' (cf. citado Acórdão nº 253/92).
Por isso, sublinhou-se nesse Acórdão nº 253/92:
Não podendo [...] o Supremo Tribunal de Justiça - para o efeito de decidir se se verifica o vício relativo à questão de facto, invocado como fundamento do recurso - servir-se do registo de prova que, acaso, tenha sido feito na audiência de julgamento da 1ªinstância, é óbvio que o facto de o tribunal recorrido dispor ou não de 'meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral' das declarações prestadas oralmente naquela audiência (e, consequentemente, o facto de tais declarações serem ou não 'documentadas na acta' respectiva) é, de todo, irrelevante para o êxito ou inêxito de um recurso interposto de um acórdão de um tribunal colectivo com algum dos fundamentos enunciados nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º.
A extensão do recurso quanto à matéria de facto, haja que não haja registo da prova, é sempre a mesma: 'o Supremo apenas pode decidir se se verifica o vício invocado como fundamento do recurso (a saber: insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova); e, para essa decisão, apenas pode servir-se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, e nunca do registo da prova que, acaso, tenha sido feita'
(cf. citado Acórdão nº 253/92).
11. Pode, de igual modo, argumentar-se (no sentido da inconstitucionalidade das normas sub iudicio) com o facto de que, tendo o vício (para conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento) que resultar do 'texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum', só muito dificilmente ele poderá ser despistado pelo Supremo Tribunal de Justiça. E, por isso, só muito dificilmente também este poderá censurar o julgamento do facto, mesmo em casos em que ele seja grosseiramente errado.
É que - dir-se-á - a fundamentação da sentença resume-se, muitas vezes, a uma remissão genérica para os diferentes meios de prova (para os depoimentos destas ou daquelas testemunhas, por exemplo). Ora, se ela não explicitar o que é que, de acordo com as regras da experiência e da lógica, fez com que a convicção do tribunal se formasse num determinado sentido
(e não noutro) e, bem assim, por que é que se teve por fiável certo meio de prova (e não outro), o Supremo ver-se-á impossibilitado de, a partir do texto do acórdão recorrido, concluir pela 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', pela 'contradição insanável da fundamentação' ou pela existência de 'erro notório na apreciação da prova'.
Perante tal argumentação há, desde logo, que advertir que, por força do que dispõe o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença - para além de dever conter uma 'enumeração dos factos provados e não provados' -, tem que consistir numa 'exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal'.
Este dever de fundamentação foi interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça [cf. acórdão de 13 de Fevereiro de 1992, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII (1992), tomo I, páginas 36 e 37] no sentido de que a sentença - para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - há-de conter também os 'elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituiram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação', ou seja, ao cabo e ao resto, um 'exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo' num determinado sentido.
Estando em causa uma decisão de um tribunal colectivo e tendo a fundamentação, por isso - como se assinalou no Acórdão nº
61/88 -, que traduzir ou reflectir o 'mínimo de acordo ou convergência consensual ou maioritariamente apurada no seio do tribunal' (onde pode ser diverso, de juiz para juiz, o fundamento da resposta num dado sentido ou
'oferecer entre todos cambiantes significativas'), há-de ela (a fundamentação) permitir, no entanto (e sempre), avaliar cabalmente o porquê da decisão. Ou seja: no dizer de MICHELLE TARUFFO ('Note sulla garanzia costituzionale della motivazione', in Boletim da Faculdade de Direito, volume IV, páginas 29 e seguintes), a fundamentação da sentença há-de garantir a 'transparência' do processo e da decisão.
Feita esta advertência, há que acrescentar que a dificuldade de o Supremo Tribunal de Justiça despistar o vício invocado como fundamento do recurso, relativo ao julgamento do facto, a partir do texto da decisão recorrida, 'por si ou conjugada com as regras da experiência comum', tem mais propriamente a ver com a completude ou incompletude da fundamentação do acórdão recorrido do que com o facto de o vício ter de concluir-se a partir do texto da decisão.
12. No sentido da inconstitucionalidade das normas sub iudicio, argumenta-se também dizendo que o facto de o vício, invocado como fundamento do recurso, ter que resultar do 'texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum' é, nalguns casos, susceptível de impedir que o Supremo Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso, atenda a factos constantes de documentos. Basta que - diz-se - o texto da decisão recorrida não lhes faça referência. Pense-se, por exemplo - acrescenta-se - no caso de estar junta aos autos uma certidão de uma escritura pública, sem que a sua autenticidade tenha sido posta em causa, da qual conste que o arguido, no dia e hora em que foi cometido o crime por cuja autoria material o tribunal colectivo o condenou, se encontrava em local diverso do locus delicti e, quiçá, muito distante dele.
Essa é, porém, uma hipótese que, a verificar-se, não teria a consequência apontada, pois que não impediria o Supremo Tribunal de Justiça de, no julgamento do recurso, tomar em consideração o facto documentado pela escritura pública, junta por certidão aos autos.
É que, ela legitimaria um recurso (a interpor ao abrigo do nº 3 do artigo 410º aqui sub iudicio), que se saldaria pela anulação do acórdão do tribunal colectivo, a fim de que fosse elaborado um outro acórdão pelos mesmos juízes, do qual constasse aquele facto. Ou seja: anulado o acórdão recorrido, em virtude de não constar dele aquele facto (ou, sendo o caso, a razão por que o mesmo se houve por não provado), o tribunal colectivo havia de elaborar um outro acórdão, de cujo relatório constaria que o arguido negava a autoria material do crime, defendendo-se com a alegação de que, no dia e hora em que o mesmo fora perpetrado, ele se encontrava noutro local (quiçá, muito distante do locus delicti), e de cuja fundamentação constaria se esse facto sim ou não se provou e a razão por que se decidiu num ou noutro sentido (cf. artigo
374º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode, na verdade, ter por fundamento 'a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada' (cf. nº 3 do artigo 410º citado). Pois, um desses requisitos é, justamente, que a sentença contenha 'a enumeração dos factos provados e não provados' e 'uma exposição [...] ainda que concisa, dos motivos [...] que fundamentam essa decisão'« [cf. artigo 374º, nº 2, conjugado com o artigo 379º, alínea a) do Código de Processo Penal]. E, para fazer essa enumeração, tem o tribunal colectivo que atender - a mais que à acusação ou pronúncia - às 'conclusões contidas na contestação'[cf. alínea d), conjugada com a alínea c), do nº 1 do artigo 374º citado].
Significa isto que, se o tribunal colectivo, com base na certidão da escritura, houvesse dado como provado que o arguido, no dia e hora do crime, se encontrava em local diverso e distante do local em que o mesmo fora prepetrado, não poderia condená-lo por autoria material do mesmo, sob pena de 'contradição insanável' entre os fundamentos e a decisão (cf. artigo
410º, nº 2, alínea b)] - vício que resultava do 'texto da decisão, por si só'. Se, ao invés, o tribunal colectivo houvesse esse facto por não provado, resultava do 'texto da decisão recorrida [...], conjugada com as regras da experiência comum', que tinha havido 'erro notório na apreciação da prova' [cf. artigo 410º, nº 2, alínea c)]: [cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
27 de Novembro de 1991, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVI
(1991), V, páginas 12 e seguintes]. Em qualquer destes casos, sempre o Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar, tomava em consideração a escritura pública, de que se juntara certidão aos autos.
Mas se, acaso - como atrás se figurou -,o tribunal colectivo omitisse esse facto no relatório ou na fundamentação do acórdão, este seria nulo [cf. artigo 374º, nº 1, alínea d), e nº 2, conjugado com o artigo
379º, alínea a), já citados] - nulidade que o Supremo Tribunal de Justiça havia de decretar, a fim de que, como se disse, o tribunal colectivo elaborasse outro acórdão, no qual se relatasse esse aspecto da defesa do arguido e em cuja fundamentação se tomasse posição sobre ele (dando-o como provado ou como não provado, fundamentando a decisão tomada) e extraindo, dessa decisão, as necessárias consequências jurídicas.
Justamente, num caso em que o tribunal colectivo não havia indicado os factos não provados, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 15 de Julho de 1992 [Colectânea de Jurisprudência, ano XVII (1992), páginas 13 e seguintes], decidiu que:
[...] é necessário que a sentença faça a descrição dos factos que viu alegados, sobre que houve deliberação e que foram votados com a decisão de não provados. Isto, embora sem a minúcia do que sucede em relação aos factos provados, mas sempre de forma a dar a certeza de que todos os factos alegados sofreram decisão
É que - lê-se no mesmo acórdão - 'apenas com a enumeração concreta [dos factos não provados] é possível ao tribunal superior, em recurso, determinar se certo facto foi na realidade apreciado e não provado, ou se nem sequer foi considerado'.
13. Dir-se-á, no entanto (e parece ser esta a argumentação dos recorrentes), que, se na audiência perante o Supremo Tribunal de Justiça fosse possível proceder à renovação da prova documentada na acta da audiência da 1ª instância, os vícios apontados seriam mais facilmente detectados do que apenas a partir do texto da decisão.
Simplesmente - e sem prejuízo do que se disse atrás sobre uma eventual leitura ou audição pelo Supremo Tribunal de Justiça da prova produzida perante o tribunal colectivo (cf. supra, 6) - ao Tribunal Constitucional não cabe censurar, sub specie constitutionis, as soluções legais, por elas não serem, eventualmente, as melhores ou, sequer, por se estar perante mau direito. A sua missão é bem mais modesta: só lhe cumpre julgar incompatível com a Constituição (e, nalguns casos, eliminar do ordenamento jurídico) as normas de direito ordinário que se apresentem como não direito.
Pois bem: as soluções legais, que se contêm nas norma sub iudicio, como já atrás se assinalou, preservam o núcleo essencial do direito ao recurso em matéria de facto.
Para assim se concluir, basta lembrar aqui o que atrás se disse, maxime, sobre constituir a intervenção do tribunal colectivo
(tendo em conta as regras do seu próprio funcionamento e as que presidem à audiência) garantia de acerto no julgamento do facto. E lembrar, bem assim, a circunstância de a revista alargada (atentos os inconvenientes da apelação penal, atrás também assinalados) não dever ser senão um remédio jurídico, uma válvula de segurança contra erros grosseiros do julgamento do facto - erros que, há-de convir-se, o Supremo Tribunal de Justiça necessariamente detectará a partir do texto da decisão recorrida, que tem que ser elaborada e fundamentada nos termos que atrás se indicaram.
É que, não é só ao texto da decisão recorrida que o Supremo há-de atender para o efeito. É, antes, a esse texto, nos seus dizeres, conjugado com as regras da experiência comum.
.............................................'
4.- Aceita-se a linha argumentativa exposta, nomeadamente o juízo de constitucionalidade sobre as normas objecto do presente recurso.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 1994
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto do Ex.mº Conselheiro António Vitorino)
Armindo Ribeiro Mendes ( vencido nos termos e pelas razões constantes da declaração de voto do Sr. Conselheiro António Vitorino, primitivo relator dos autos)
José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, enquanto primitivo Relator do processo, pelas razões constantes do projecto de Acórdão que apresentei e que passo agora a sumariar.
1. Tendo em consideração o teor dos preceitos invocados pela recorrente, e lidos os mesmos à luz das alegações por ela oferecidas, resulta, pois, que o que está em causa neste processo é apreciar a conformidade constitucional do sistema denominado de 'revista alargada', introduzido pelo Código de Processo Penal de
1987, quando cotejado com a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição que a mesma recorrente retira não só do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, vigente na ordem interna, mas também das disposições conjugadas dos artigos 2º, 20º, 32º, nº 1, 211º e 212º da Constituição da República.
O Tribunal Constitucional já teve ocasião, por diversas vezes, de apreciar a matéria em causa à luz do Código de Processo Penal de 1929. E fê-lo, essencialmente, com base nos preceitos constitucionais, designadamente à luz das garantias de defesa dos arguidos em processo penal, consagradas de forma ampla no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
E embora tenha referido a este propósito, designadamente no Acórdão nº
401/91 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992), o preceito constante do artigo 14º, nº 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, foi, contudo, no domínio da interpretação do aludido normativo constitucional que o Tribunal encontrou a solução que fundamentou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, precisamente com fundamento na violação da garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Neste aresto, em que o Tribunal censurou a solução do Código de Processo Penal de 1929 quanto à reapreciação da matéria de facto pelos tribunais da Relação nos recursos deduzidos de acórdãos dos tribunais colectivos, foi expressamente afirmado que tal censura não equivalia a afirmar que a única solução compaginável com as garantias de defesa do arguido fosse a da repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, tendo-se, por isso, deixado em aberto a possibilidade de outras soluções poderem ser adoptadas pelo legislador por forma a dar cabal cumprimento ao aludido comando constitucional.
Logo, no presente processo trata-se, portanto, de saber se o sistema da
'revista alargada' introduzido pelo Código de Processo Penal de 1987 respeita o
'núcleo essencial' do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias, direito este que decorre do princípio das garantias de defesa dos arguidos plasmado no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
2. Conforme refere o Procurador-Geral Adjunto, nas suas contra-alegações, a
2ª Secção do Tribunal já se pronunciou, por maioria, no sentido da conformidade constitucional do sistema em causa. Tal conclusão resulta, no essencial, da linha argumentativa do Acórdão nº 322/93, a qual, no essencial, é também adoptada neste aresto pela maioria dos juizes da 1ª Secção.
Sem embargo, propugnei por solução diversa, seguindo, no essencial, a orientação constante das declarações de voto dos vencidos naquele aresto da 2ª Secção, em especial a declaração junta pelo Conselheiro Sousa e Brito.
3. Na realidade, não está em causa considerar que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto só se poderá ter por satisfeita com a repetição da prova em sede de tribunal de recurso. Com efeito, tal repetição será até, por natureza, impossível, porquanto elemento definitório da produção da prova é precisamente a sua imediação, e a sua repetição estará sempre sujeita a condicionalismos distintos da produção inicial, desde logo decorrentes da própria forma como a prova foi inicialmente produzida e da percepção dessa produção recolhida pelos seus protagonistas.
Logo, o respeito pelo duplo grau de jurisdição em matéria de facto só poderá ser cabalmente assegurado mediante uma efectiva 'revista alargada', cujo critério norteador há-de ser o de facultar ao tribunal de recurso a amplitude de meios e instrumentos necessários a uma efectiva e integral reapreciação da prova produzida na 1ª instância. O mesmo é dizer que o legislador, ao conformar os contornos e limites dessa reapreciação de prova há-de estabelecer apenas as restrições estritamente necessárias à salvaguarda da genuinidade da prova produzida, mas já não poderá restringir o âmbito de cognição do tribunal de recurso para além do que necessária e proporcionalmente for exigido por tal critério. Tratando-se, assim, de modelar o direito ao recurso em matéria de facto, logo um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o legislador há-de ter presentes e ser estritamente vinculado pelos limites decorrentes do artigo 18º, nº 2, da Constituição, designadamente o 'carácter restritivo das restrições'.
Ora, no caso vertente, o legislador acaba por consagrar uma solução que de
'revista alargada' apenas recolhe praticamente o nome e eventualmente a intenção de proteger o instituto de eventuais críticas de inconstitucionalidade tecidas na sequencia da doutrina e da jurisprudência que se haviam pronunciado àcerca da homóloga situação vigente ao abrigo do regime processual penal de 1929, a que atrás se aludiu, porquanto adopta um sistema em que se restringe o direito ao recurso em matéria de facto para além do que se pode ter como razoável e necessário tendo em vista a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Os requisitos constantes do corpo do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal e da alínea c) do mesmo número, respectivamente, quanto à exigência de que 'o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum', e quanto à restrição do fundamento de recurso ao 'erro notório', vão manifestamente para além do que se afigura estritamente necessário, adequado e proporcional à salvaguarda de direitos subjectivos ou de interesses conflituantes que operem no caso (designadamente a efectividade do exercício do 'jus puniendi' do Estado).
Com efeito, o S.T.J., em sede de recurso, tem perante si os autos do processo e não apenas a decisão recorrida, conforme resulta do disposto no artigo 406º do Código de Processo Penal, os quais sempre terá que compulsar, pelo menos, quando se trate de apreciar nulidades que tenham sido invocadas como fundamento do recurso (nos termos do nº 3 do mesmo artigo) ou quando tenha que apurar se houve condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do artigo 479º), pelo que não se vislumbra razão suficientemente ponderosa que justifique ou fundamente a exclusão expressa da possibilidade de o recurso ter por fundamento qualquer erro detectável na apreciação da prova que resulte da análise dos autos no seu conjunto.
Conclusão esta que se impõe não só como corolário das garantias de defesa dos arguidos, mas também como projecção do princípio da verdade material e do interesse da prossecução penal, perante o que razões atinentes à simplicidade ou celeridade da tramitação processual ou da obtenção de uma decisão final não podem ser tidas como relevantes ou como constituindo obstáculo inultrapassável a uma solução de verdadeira 'revista alargada'.
Registe-se que o preceito em causa, ao exigir como condição do recurso para o S.T.J., em matéria de facto, que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da 'experiência comum', é mesmo mais restritivo do que o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto nº 20.147, pois aí permitia-se às Relações (que eram então o tribunal de recurso em causa para efeitos de matéria de facto) que se baseassem não só nas respostas aos quesitos, mas também 'nos documentos' e 'em quaisquer outros elementos constantes dos autos'. Nada justifica, pois, que à luz do ordenamento constitucional ora vigente se adopte uma solução mais restritiva no tocante às garantias de defesa dos arguidos do que a que vigorou à luz de um paradigma constitucional bem menos garantista do que o actual.
4. O mesmo se dirá, também, quanto à restrição ao 'erro notório' como fundamento do recurso. Conforme se refere no já citado voto de vencido ao Acórdão nº 356/93, 'desde já se esclarece que não se julga justificável a interpretação de tal erro como aquele 'de tal modo evidente que o homem médio o detecta com facilidade' (...)' pois 'pode ser 'notório' apenas para o julgador com a especial formação e experiência de um juiz do Supremo Tribunal de Justiça,
[m]as mesmo quando seja apenas suficientemente seguro para fundar a responsável e fundamentada convicção do julgador, tanto deve bastar para a procedência do recurso'.
Com efeito, também esta restrição se afigura excessiva, ou seja, não necessária nem adequada à salvaguarda dos princípios e interesses constitucionalmente relevantes que atrás assinalámos quanto à restrição da revista ao texto da decisão recorrida, além de poder mesmo ser tida como limitadora da autonomia judicial na aplicação do direito tal como resulta do disposto no artigo 206º da Constituição.
Nestes termos, fui do entendimento que o Tribunal Constitucional deveria julgar inconstitucionais as normas constantes do corpo do nº 2 e da alínea c) do mesmo nº 2 do artigo 410º do Código Processo Penal, quando conjugadas com a norma do artigo 433º do mesmo Código de Processo Penal, por violação das garantias de defesa dos arguidos constante do nº 1, do artigo 32º da Constituição e consequentemente conceder provimento ao recurso. António Vitorino