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Proc. nº 420/93 Plenário Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 278º, nºs. 1 e 3, da Constituição da República, e dos artigos 51º, nº 1, e 57º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas dos artigos
2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nº 1, do Decreto aprovado pelo Conselho de Ministros e registado sob o nº 264/93, que estabelece 'medidas relativas aos programas de realojamento e de construção de habitações económicas', e que lhe foi enviado para promulgação como decreto-lei.
Na fundamentação aduziu os seguintes argumentos:
'1. O disposto no artigo 2º, nº 1 do referido projecto de diploma estende a promotores imobiliários privados - no quadro do 'Programa de Construções de Habitações Económicas', criado pelo Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio - o regime de isenção de licenciamento municipal das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras de construção civil, promovidas pela 'administração indirecta do Estado quando esta prossiga fins de interesse público na área da habitação, nos termos dos Decretos-Leis nº 445/91, de 20 de Novembro, e nº 448/91, de 29 de Novembro, e respectiva regulamentação'.
A norma em apreço parece retirar aos municípios, no âmbito do referido 'Programa', a possibilidade de gerirem os seus 'interesses próprios' em matéria urbanística - matéria tradicionalmente integrada na esfera de actuação municipal (cf. Decreto nº 14268, de 13 de Setembro de 1927, Decreto-Lei nº
38382, de 7 de Agosto de 1951 e Decreto-Lei nº 166/70, de 15 de Abril) e com indicação expressa no artigo 65º, nº 4 da Constituição da República.
Com efeito, sem o controlo efectivo das operações de loteamento urbano e das obras de urbanização e de construção, ficam os municípios sem meios para fazer cumprir e para fiscalizar o cumprimento dos respectivos planos municipais de ordenamento do território, por parte dos promotores imobiliários privados, o que poderá afectar, de forma constitucionalmente claudicante, o princípio da autonomia local na sua dupla dimensão de faculdade de autoregulação dos interesses próprios da comunidade local e de proibição da redução da esfera de atribuições estabelecidas, sem adequada justificação à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (artigos 6º, nº 1 e 239º da Constituição).
2. Do mesmo modo, também a norma constante do artigo 2º, nº 2 do projecto de diploma em apreço, poderá violar o princípio da autonomia local, ao cometer ao Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado
(IGAPHE) a 'emissão das licenças de utilização das habitações construídas, bem como dos demais actos de autorização e aprovação necessários à sua boa execução'.
3. Por outro lado, a entender-se o seu artigo 4º, nº 1, como uma imposição feita aos municípios de assegurarem, no âmbito do 'Programa de Construção de Habitações Económicas', a ligação de todas as infra-estruturas existentes às dos empreendimentos a construir na área dos seus respectivos territórios, poderá aquela norma configurar uma violação do princípio da autonomia local, na medida em que se traduza numa obrigação de efectuar investimentos à revelia dos Planos Municipais de Actividades aprovados e num contexto em que, tratando-se de empreendimentos isentos de licenciamento municipal, os municípios não puderam controlar nem a sua conformidade nem a sua compatibilização com os respectivos planos municipais de ordenamento do território'.
E concluiu assim:
'Nestes termos, requeiro a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 2º, nºs. 1 e 2 e 4º, nº 1 do projecto de Decreto-Lei acima identificado, com as normas dos artigos 6º, nº 1 e
239º da Constituição da República'.
Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, afirmou, em resposta, a conformidade à Constituição das normas que constituem o objecto do pedido.
Analisando a dimensão do princípio constitucional da autonomia local, aí distinguiu um núcleo essencial conformado pelos interesses próprios das autarquias, e uma zona aberta à actuação concorrente das Administrações estadual e local, implicada pela necessidade de realização de tarefas constitucionais que transcendem aqueles interesses. Incluiu aqui as tarefas de ordenamento do território, protecção do ambiente e urbanismo e de efectivação do direito fundamental à habitação, as quais se ligam ao núcleo problemático do pedido. Considerou, assim, que a intervenção legislativa em causa não
'desfigura' o conceito de autonomia local e sublinhou, a final, que o programa das normas em apreço não afasta, pelo próprio enquadramento legislativo, o dever de observância dos instrumentos de planificação em vigor. Depois, formulou as seguintes conclusões:
'a) O princípio da autonomia local que flui do quadro constitucional assenta num sistema flexível, no qual incumbe ao legislador concretizar as situações de exclusividade ou concorrência de competências entre as Administrações Estadual e Local;
b) Em sede de autonomia local não existe na Lei Fundamental qualquer princípio de putativa irreversibilidade de competências ou atribuições legalmente conferidas;
c) A Constituição comete directamente ao Estado atribuições em matéria de urbanismo e ordenamento do território, pelo que os interesses públicos que lhe subjazem não devem nem podem ser prosseguidos unicamente pelas autarquias locais;
d) Tal matéria não se compreende, portanto, no núcleo essencial dos interesses próprios que substanciam a autonomia local;
e) O projecto de diploma em apreciação não consagra qualquer sacrifício de atribuições e competências próprias das autarquias locais, na medida em que se limita a concretizar, no âmbito do Programa de Construção de Habitações Económicas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio - e em termos bem delimitados no espaço (Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto) e no tempo (31 de Dezembro de 1996) - a intervenção do IGAPHE, em igualdade de condições com os municípios referidos quanto à construção de habitações económicas por si promovida em terrenos próprios, tal como previsto nos artigos 2º, nº 3, e 15º do citado decreto-lei;
f) O exercício partilhado de competências para este efeito, entre um instituto público e diversas autarquias locais é justificado, em particular, pela prossecução de um interesse público e social que prevalece e ultrapassa claramente a natureza dos interesses privativos das autarquias em causa.
g) A extensão a promotores imobiliários privados da dispensa do licenciamento municipal das operações urbanísticas prevista no projecto questionado não impede, antes implica, um controlo efectivo pelas autarquias locais da conformidade daquelas operações com os instrumentos de planeamento aplicáveis, maxime, com os respectivos planos municipais de ordenamento do território;
h) Estando assegurada, ex ante, a verificação da conformação do projecto com os instrumentos de planeamento, a emissão pelo IGAPHE das licenças de utilização comprova, ex post, a conformação da obra com o projecto;
i) Não existe, da mesma forma, qualquer obrigação, para as autarquias locais, de efectuar investimentos à revelia dos respectivos planos municipais de actividades;
j) O projecto de decreto-lei ora em apreciação reproduz, na área em causa, normas vigentes de uma Lei da Assembleia da República que goza de presunção de constitucionalidade;
l) Os artigos 2º, nºs 1 e 2, e 4º, nº 1, do projecto sub judice, tal como todos os demais artigos do mesmo projecto, não violam os artigos 6º, nº 1, e 239º da Constituição, ou qualquer outro preceito ou princípio da Lei Fundamental.'
Com a resposta, o Primeiro-Ministro fez juntar dois documentos: um, a cópia do ofício nº 2262 dirigido ao Chefe da Casa Civil da Presidência da República, a indicar o envio de dois decretos para promulgação, o segundo sendo o que contém as normas em apreço; o outro documento é a fotocópia do registo do livro de protocolo da Presidência do Conselho de Ministros assinado pelo funcionário que o recebeu, com indicação da entrega daquele ofício e data de
11-06-1993.
II - Uma questão prévia
A apreciação preventiva da constitucionalidade deve ser requerida no prazo de oito dias a contar da data da recepção do decreto enviado ao Presidente da República (cf., C.R.P., artigo 278º, nº 6). Esse prazo é um prazo constitucional, substantivo, não se aplicando, pois, na sua contagem a regra de direito processual civil sobre interrupção durante férias, feriados, sábados e domingos (cf. Acórdãos nºs 26/84 e 278/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º volume, págs. 71-82, e D.R., II Série, de 12-6-1989, respectivamente).
A fotocópia do registo do livro de protocolo, junta pelo Primeiro Ministro, com indicação da entrega do ofício dirigido ao Chefe da Casa Civil da Presidência da República, a indicar, entre o mais, o envio do Decreto nº 264/93, tem data de 11 de Junho de 1993, mas é omissa quanto à hora.
Por outro lado, no pedido, o mesmo Decreto regista, ao canto superior direito, um carimbo a óleo com as indicações: 'P.R., Reg. nº 32.306, Entrada: 14.6.93'.
As datas do registo do livro de protocolo da Presidência do Conselho de Ministros e do carimbo da Presidência da República não são coincidentes. Importa ponderar o problema da tempestividade do pedido, avaliando o dies a quo do prazo para requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade do Decreto nº 264/93.
O carácter substantivo deste prazo faria que o Tribunal não pudesse conhecer do pedido, se a cópia do registo do livro de protocolo apresentada pelo Primeiro-Ministro indicasse dia e hora da entrega do Decreto e esta hora se incluísse no tempo normal de funcionamento dos serviços competentes para o receberem. Mas porque a fotocópia do registo do livro de protocolo nada contém sobre a hora - e essa indicação podia ser exigida - não pode o Tribunal concluir pela entrada do Decreto naquele tempo normal de funcionamento. Sendo a data referida de 11 de Junho - sexta-feira - e não podendo excluir-se que a entrega tenha sido feita depois da hora normal de funcionamento da Secretaria-Geral da Presidência da República (desde logo, porque com a resposta nenhuns elementos foram trazidos nesse sentido) então, visto que tais serviços se encontram encerrados aos sábados e domingos, deve a mesma entrega ser referida à segunda-feira seguinte, 14 de Junho. Esta é, para mais, a data afirmada pelo Presidente da República. E, assim, não pode concluir-se pela intempestividade do pedido.
III - As normas e o seu contexto
1 - As normas cuja apreciação vem requerida pelo Presidente da República são as dos artigos 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nº 1, do Decreto aprovado pelo Conselho de Ministros e aí registado sob o nº 264/93. Essas normas dispõem assim:
'Artigo 2º
1. Os loteamentos, as obras de urbanização e de construção civil em terrenos do IGAPHE e os procedimentos administrativos no âmbito do Programa de Construção de Habitações Económicas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio, são, para todos os efeitos, equiparados aos promovidos pela administração indirecta do Estado quando esta prossiga fins de interesse público na área da habitação, nos termos dos Decretos-Leis nº 445/91, de 20 de Novembro, e nº 448/91, de 29 de Novembro, e respectiva regulamentação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2. Compete ao IGAPHE proceder à emissão das licenças de utilização das habitações construídas, bem como aos demais actos de autorização e aprovação necessários à sua boa execução.
Artigo 4º
1. No âmbito do Programa de Construção de Habitações Económicas, compete ao município em cuja área se insira a construção assegurar a ligação de todas as infra-estruturas existentes às do empreendimento a construir.
2. ...
3. ...'.
O Presidente da República suscitou a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas transcritas, dos artigos 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nº
1, e confrontou-as com o princípio da autonomia local, invocando as normas constitucionais dos artigos 6º, nº 1, e 239º.
2 - O contexto significativo dos artigos 2º, nºs 1 e 2, e 4º, nº
1, do Decreto nº 264/93, aprovado pelo Conselho de Ministros
As normas dos artigos 2º, nºs 1 e 2, e 4º, nº 1, do Decreto nº
264/93, incluem-se num 'complexo de regulação' (Larenz) do Programa de Construção de Habitações Económicas criado pelo Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio. Com este Programa, o Governo intenta o objectivo da construção de habitações a baixos custos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, até ao final de 1996. No preâmbulo, pondera a 'falta ou relativa escassez de terrenos para a construção a preços acessíveis' e a necessidade de diminuir 'as carências habitacionais do País'. E para isso determina a disponibilização, em concurso público, dos terrenos de que o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) é titular (art. 2º). Nesse concurso, o IGAPHE coloca à disposição dos concorrentes, a preços fixos, aqueles terrenos, 'cabendo aos candidatos apresentar propostas de construção, vinculando-se a valores máximos de venda dos fogos a construir'. (art. 2º, nº 2). Ainda ao IGAPHE compete estabelecer o regulamento e o caderno de encargos de cada concurso, definindo nos mesmos as tipologias e as características dos fogos a construir, atenta a respectiva finalidade de habitação económica' (art. 4º, nº 3).
O Programa aplica-se, em igualdade de condições, à construção de habitações económicas promovidas pelos municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto em terrenos próprios, (art. 2º, nº 3), os quais ficam correspondentemente abrangidos pelos direitos e sujeitos ao cumprimento das obrigações previstas no mesmo Decreto-lei (art. 15º, nº 1). Neste caso, em que os municípios disponibilizam terrenos próprios, 'compete às câmaras municipais praticar e aprovar os actos administrativos que cabem ao IGAPHE' (art. 15º, nº
2).
Assim criado o Programa de Construção de Habitações Económicas, o Parlamento editou a Lei nº 17/93, de 3 de Junho, autorizando o Governo a legislar, no âmbito daquele Programa, em 'matéria de expropriação e do licenciamento das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras de construção civil (...)' (art. 2º). Para este efeito, e entre outras directivas, definia assim o sentido e a extensão da legislação a produzir:
'a) Equiparar, para todos os efeitos, as operações de loteamento, as obras de urbanização e de construção civil, bem como os procedimentos a desenvolver na construção de habitações económicas em terrenos de propriedade do Instituto de Gestão e Alineação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), mediante concurso público, a empreendimentos promovidos pela administração indirecta do Estado na prossecução de fins de interesse público na área da habitação, nos termos dos Decretos-Leis nºs. 445/91, de 20 de Novembro, e
448/91, de 29 de Novembro, e respectiva regulamentação;
(...)
d) Cometer às câmaras municipais em cujas áreas se insira a construção de habitações económicas referidas na alínea a) a competência para assegurar a ligação de todas as infra-estruturas existentes às do empreendimento a construir'.
O Governo, no uso dessa autorização legislativa, aprovou e registou o Decreto nº 264/93, de que participam as normas que aqui constituem o objecto do pedido de apreciação de constitucionalidade. Nesse Decreto, em considerações preambulares, o Governo sublinha a eminente vocação social do Programa Especial de Realojamento nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto e do Programa de Construção de Habitações Económicas. Afirma a importância da disponibilização de solos e de meios financeiros para a consecução daqueles programas, e a necessidade de um firme empenhamento dos municípios. Depois, decreta as medidas programadas na Lei nº 17/93, de 3 de Junho. No artigo 2º, equipara os loteamentos, as obras de urbanização e de construção civil em terrenos do IGAPHE e os procedimentos administrativos no âmbito do Programa de Construção de Habitações Económicas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio, aos que são promovidos pela administração indirecta do Estado quando esta prossiga fins de interesse público na área da habitação, nos termos dos Decretos-Leis nº
445/91, de 20 de Novembro, e nº 448/91, de 29 de Novembro.
Numa conexão de sentido com essa norma jurídica está, pois, a regulação que se contém nos Decretos-Leis nº 445/91, de 20 de Novembro, e nº
448/91, de 29 de Novembro, para os empreendimentos promovidos pela administração indirecta do Estado na prossecução de fins de interesse público na área da habitação.
O Decreto-Lei nº 445/91, rectificado pela Lei nº 29/92, de 3 de Setembro, relativo ao licenciamento municipal de obras particulares, determina, no artigo 1º, que estão sujeitas a esse licenciamento todas as obras de construção civil [alínea a)] e a utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas, bem como as respectivas alterações [alínea b)]. Porém, o artigo 3º excepciona dessa regra, entre outras, as obras da iniciativa das autarquias locais [nº 1, alínea b)] e as obras promovidas pela administração directa ou indirecta do Estado [nº 1, alíneas c) e d)]. Os projectos relativos a estas obras - previstas nas alíneas c) e d) - são submetidos a parecer não vinculativo da câmara municipal, que se deve pronunciar no prazo de 30 dias (nº
3).
O Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro, determina que as operações de loteamento e as obras de urbanização - cujo regime reformula - estão sujeitas a licenciamento municipal (art. 1º, nº 1). Dessa regra exceptuam-se, no entanto,
'as operações de loteamento e as obras de urbanização promovidas pelas autarquias locais, pela administração directa do Estado ou pela administração indirecta do Estado quando esta prossiga fins de interesse público na área da habitação' (artigo 1º, nº 2). Aqui, a aprovação das operações de loteamento compete ao ministro da tutela e ao Ministério do Planeamento e da Administração do Território, ouvida a respectiva câmara municipal (artigo 65º, nº 1).
Ora, o Instituto de Gestão e Alineação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) é um instituto público, com as atribuições de gestão, conservação e alineação do parque habitacional, equipamento e solos, que constituem o seu património; de concessão de apoio técnico a autarquias locais e outras instituições promotoras de habitação social, no domínio da gestão e conservação do parque habitacional; de apoio ao Governo na definição das políticas de arrendamento social e alineação do parque habitacional público
(cf., o Decreto-Lei nº 88/87, de 26 de Fevereiro, artigos 1º e 2º, alterado pelo Decreto-Lei nº 198/87, de 30 de Abril).
A qualidade jurídica daquele instituto e o quadro das suas atribuições fazem que ele seja abrangido pelas isenções de licenciamento a que se referem os Decretos-Leis nº 445/91, de 20 de Novembro, e nº 448/91, de 29 de Novembro.
É este o quadro de ordenação externa das normas em apreço, do Decreto nº 264/93, aprovado pelo Conselho de Ministros. Nele deve buscar-se a ideia normativa do legislador.
IV - A fundamentação
1 - Enquadramento jurídico-constitucional do problema
1.1 - As normas dos artigos 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nº 1, do Decreto nº
264/93 actuam a concretização de imposições constitucionais dirigidas ao Estado. Constituem momentos de mediação semântica de normas da Constituição com determinações de fins e fixação de tarefas [cf., C.R.P., artigos 9º, alíneas c) e e), 65º e 66º] e, como tal, preenchem um espaço de ineliminável conformação legislativa.
Ordenadas que estão ao princípio da democracia social, teleologicamente vinculadas aos seus postulados, aquelas normas desenvolvem, pelo próprio conteúdo material e contexto significativo, a múltipla funcionalidade de concretizar preceitos referentes à actuação global do Estado
(cf., C.R.P., artigo 9º) e preceitos de âmbito específico que garantem a efectivação de direitos originários a prestações (cf., C.R.P., artigos 65º e
66º).
Na realização dessas tarefas constitucionais o legislador 'selecciona determinantes autónomas' (Gomes Canotilho) que, no entanto, se encontram vinculadas à teleologia dos preceitos que concretizam e à própria unidade da Constituição.
Questão é saber se aquele poder de conformação exercido pelo legislador no cumprimento de imposições legiferantes (Lerche) não interfere aqui com as directivas materiais e o sistema de coerência das normas da Constituição. As determinantes autónomas do legislador no cumprimento daquelas tarefas
'usurpam' espaços de autonomia do poder local ?
1.2 - As autarquias locais concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um 'âmbito de democracia'
(Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adopção das decisões colectivas que a afectam.
A Constituição define-as como 'pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas' (cf. C.R.P., artigo 237º). Não lhes traça um figurino de mera administração autónoma do Estado. Deixa claro o 'sentido político que adquire o exercício das suas funções' (Jorge Miranda), que as autarquias
'constituem também uma estrutura do poder político' (Gomes Canotilho e Vital Moreira). No programa constitucional (cf. C.R.P., Princípios Fundamentais, artigo 6º, e Título VII, Poder Local), as normas que organizam o poder autárquico assumem uma justificação eminentemente democrática.
O poder autárquico funda-se numa ideia de consideração e representação aproximada de interesses. Como explica Ruiz Miguel, na justificação democrática da autonomia não é só o factor geográfico que está em causa. Trata-se também da razão política de fomentar as decisões susceptíveis de maior preferência e de maior controlabilidade pelos interessados.
Neste 'espaço de participação' (Baptista Machado), o elemento ordenador é o conjunto dos interesses específicos das comunidades locais. Esses interesses justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização.
O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e 'assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raíz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria (...und von dieser örtlichen Gemeinschaft eigenverantwortlich und selbständig bewältigt werden können)'
(Sentença do Tribunal Constitucional alemão nº 15, de 30 de Julho de 1958, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 8º volume, pág. 134; cf., no mesmo sentido, Parecer nº 3/82 da Comissão Constitucional in Pareceres da Comissão Constitucional, 18º volume, pág. 151).
1.3 - Isso não implica que as autarquias não possam ou não devam ser chamadas a uma actuação concorrente com a do Estado na realização daquelas tarefas. O 'paradigma social do Direito' (Habermas) aponta mesmo para uma política de cooperação e de intervenção de todas as instâncias com imediata possibilidade de realizarem as imposições constitucionais.
A determinação contida no artigo 65º, nº 4, demonstra precisamente a legitimidade dessa actuação concorrente das autarquias na realização de tarefas constitucionais. Mas aqui já não está presente aquela ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia.
2 - As normas do artigo 2º, nº 1 e 2, do Decreto nº 264/93.
2.1 - Nas normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto nº 264/93, e no seu contexto de sentido, já vimos, estão imbricadas matérias relativas a fins constitucionais de actuação global do Estado (ordenamento do território, C.R.P., artigo 9º) e matérias que se conexionam com a efectivação de direitos originários a prestações (direito à habitação, ao ambiente e a qualidade de vida, C.R.P., artigos 65º e 66º).
O legislador realiza aí uma prática política constitutiva (Michelman) num âmbito de realidade onde está excluída a aplicação directa e imediata do Direito Constitucional. Concretiza 'normas-fim', de carácter estruturalmente aberto, e normas impositivas de legislação.
Dessas normas pode dizer-se que elas asseguram no seu programa a primazia do Direito Constitucional mas não impõem uma reserva do Direito Constitucional. A Constituição é aí ordo constitutius mas também ordo constituens, a requerer procedimentos de actualização e concretização que envolvem uma ampla competência de conformação legislativa. Diz Gomes Canotilho
(Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, págs.
322-323): 'na concretização legislativa das imposições constitucionais há sempre um momento de iniciativa e impulso, no qual estão implícitas valorações político-constitucionais, conhecimento de factos, juízos de prognose, considerações de resultados, segurança jurídica e legitimação democrática (...). A dimensão criadora do legislador e a sua liberdade de conformação conferem, em grande medida, ao processo de regulação legal um carácter concretizador autonomamente determinado'. Esta ideia é também afirmada por Vieira de Andrade, para quem 'o legislador estabelece autonomamente a forma e a medida em que concretiza as imposições constitucionais' (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pág. 249).
Mas a liberdade constitutiva do legislador não surge por isso ilimitada. O legislador está vinculado às directivas materiais da Constituição e
é nessa perspectiva que devem ser avaliadas as normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto nº 264/93.
A norma do artigo 2º, nº 1, equipara, para todos os efeitos, os loteamentos, as obras de urbanização e de construção civil em terrenos do IGAPHE e os procedimentos administrativos, no âmbito do Programa de Construção de Habitações Económicas, aos promovidos pela administração indirecta do Estado quando esta prossiga fins de interesse público na área da habitação, nos termos dos Decretos-Leis nº 445/91 e nº 448/91. De seu lado, o Decreto-Lei nº 164/93, de 7 de Maio, que estabelece o mesmo Programa de Habitações Económicas, determina a disponibilização, em concurso público, dos terrenos de que o IGAPHE
é titular.
Isso implica que os loteamentos e obras realizados por particulares em ordem a esse Programa ficam dispensados de licenciamento municipal nos mesmos termos em que o são os promovidos pela administração indirecta do Estado.
A norma do artigo 2º, nº 2, atribui ao IGAPHE competência para
'proceder à emissão das licenças de utilização das habitações construídas, bem como aos demais actos de autorização e aprovação necessários à sua boa execução'.
A actuação do legislador põe aí em causa, por qualquer forma, o conteúdo essencial da autonomia local ?
As normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, incluem-se num complexo de regulação de tarefas constitucionais (Verfassungsaufträge) que não devem ser tratadas pelas autarquias de modo autónomo e com responsabilidade própria. Essas normas concretizam a escolha de meios para uma política de asseguramento do direito à habitação que a Constituição define como incumbência primária do Estado. Envolvem decisões em matéria de ordenamento do território e planeamento urbanístico que não são privativas das autarquias [cf. C.R.P., artigo 65º, nºs.
1 e 2, alíneas a) e c)]. E não o são porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em Estado. Estas matérias transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local.
Isso não significa a 'indiferença' das autarquias perante o material normativo do artigo 2º, nºs. 1 e 2, aqui em apreço. A promoção habitacional, a gestão do território e do ambiente interessam às autarquias desde logo e ao menos na medida em que se desenvolvem no seu espaço geográfico. Mas constituem também a incumbência prioritária do Estado de 'programar e executar uma política de habitação, inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização' [cf., C.R.P., artigo 65º, nºs. 1 e 2, alínea a), e artigo 9º, alíneas d) e e)], de efectivar o direito dos cidadãos ao ambiente e à qualidade de vida (cf., C.R.P., artigo 66º).
Não é pois de matéria do interesse específico das autarquias que se trata, e não o sendo, não é possível afirmar que a equiparação que é feita na norma do artigo 2º, nº 1, e a competência que é atribuída ao IGAPHE na norma do artigo 2º, nº 2, comprimem o espaço irredutível da autonomia local.
Para mais, este domínio da promoção habitacional, do ordenamento do território, urbanismo e gestão do ambiente é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado. Alves Correia (O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 165) chama a atenção para que as manifestações deste fenómeno da intervenção da administração estadual no sector do urbanismo 'são múltiplas e uma boa parte delas consta das atribuições dos diversos organismos integrados ou tutelados pelo Ministério do Planeamento e da Administração do Território. Citaremos, a título de exemplo, exemplo: a formulação das bases gerais da política de ordenamento do território; a elaboração e aprovação dos PROT; o apoio, o acompanhamento e o controlo tutelar da actividade de planificação urbanística dos municípios; a elaboração e apoio à execução de programas integrados de desenvolvimento regional; a execução de equipamentos urbanos de utilização colectiva; a elaboração e implementação de programas de recuperação e renovação urbana (...)' (cf., no mesmo sentido, Vieira de Andrade, 'Distribuição pelos municípios de energia eléctrica em baixa tensão', Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, tomo 1, p. 19; Diogo Freitas do Amaral, 'Opções políticas e ideológicas subjacentes à legislação urbanística' in Direito do Urbanismo, I.N.A., Oeiras, 1989, p. 99; cf., também, Pareceres da Procuradoria-Geral da República nºs. 53/87, 90/85, 66/89, de
22-10-1987, 12-1-1989 e 23-11-89, respectivamente; publicados in D.R., II Série, de 30-4-1988, 23-3-90 e 23-3-90, respectivamente; e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-11-1990, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, ano XXX, nº 354, pág. 736 e ss.).
Esta interacção de competências do Estado e das autarquias em matéria de urbanismo está, assim, presente em muitos lugares do ordenamento jurídico. Refiram-se, entre outros, o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e o Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro, para que remete, aliás, a equiparação estabelecida na norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto nº 264/93.
O paradigma do Estado social, a cuja leitura deve reportar-se a matéria de regulação das normas em apreço, postula mesmo um processo político de cooperação entre o Estado, as entidades públicas e os cidadãos. Jorge Miranda fala assim de uma 'concorrência de intervenções' (Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª edição, Coimbra, 1983, pág. 346), Gomes Canotilho, de 'um Estado socialmente vinculado' que convive com a 'auto-responsabilidade de cada um' (Direito Constitucional, 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 476); Baptista Machado adverte para 'a falsa alternativa de raciocinar por contraposição e relacionar directamente o acréscimo das funções do Estado com a restrição do espaço de liberdade social' ('A Hipótese Neocorporativa', Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIX, Janeiro-Março, pág. 10). Esta ideia de articulação entre Estado e sociedade, entre a prática administrativa e a prática de auto-determinação dos cidadãos orientada no interesse geral, está presente em Alves Correia, que se refere a um 'urbanismo de concertação' (O Plano Urbanístico..., cit., pág. 166), e tem um significado exemplar no artigo 65º, nº 2, alínea c), da Constituição, que estabelece a incumbência de o Estado estimular a construção privada para tornar efectivo o direito à habitação.
A leitura deste paradigma não deve ser afastada de um juízo sobre a constitucionalidade das normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto nº 264/93. É que a equiparação que se estabelece na norma do artigo 2º, nº 1, e a competência que se atribui ao IGAPHE na do artigo 2º, nº 2, têm uma relação de circularidade hermenêutica com o Programa de Construção de Habitações Económicas (Decreto-Lei nº 164/93), o qual está aberto à competência partilhada do Estado, das autarquias e dos particulares.
2.2 - O espaço incomprimível da autonomia local não está pois em causa.
Mas a Constituição, no artigo 65º, nº 4, contém uma disposição de competência das autarquias - que concorre com a do Estado - no controlo efectivo do parque imobiliário. Essa competência, porque definida logo ao nível constitucional, não fica na inteira disposição do legislador. Não pode ser anulada ou esvaziada de conteúdo.
Ora, ainda neste momento de incidência no controlo do parque imobiliário, as normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, não interferem por forma injustificada ou desproporcionada no sistema de poderes que constituem aquela competência.
Na ordenação externa das duas normas em apreço, é possível reconhecer a 'conservação' pelos municípios de poderes de controlo urbanístico, consistentes, uns, na emissão de parecer pelas câmaras municipais em relação aos projectos de obras, operações de loteamento e obras de urbanização dispensados de licenciamento (cf. Decreto-Lei nº 445/91, artigo 3º, nº 3, e Decreto-Lei nº
448/91, artigo 65º); outros, no poder de ordenar o embargo e demolição de obras e a reposição de terrenos, quando haja violação das normas legais e regulamentares em vigor (cf. Decreto-Lei nº 445/91, artigos 57º e 58º, e Decreto-Lei nº 448/91, artigos 61º e 62º).
Por outro lado, a equiparação estabelecida pela norma do artigo 2º, nº
1, dos loteamentos e obras realizadas por particulares adquirentes de terrenos do IGAPHE, no âmbito do Programa, aos que são promovidos pela administração indirecta do Estado não opera um alargamento objectivo da área não sujeita ao controlo urbanístico das autarquias.
Na verdade, a dispensa de licenciamento que agora vale para os particulares é atinente aos terrenos disponibilizados pelo IGAPHE, e que sendo até aqui da titularidade deste Instituto, estão já isentos de licenciamento.
É facto que com essa norma se introduz no ordenamento jurídico um alargamento do âmbito subjectivo de isenção dos licenciamentos de loteamentos e obras. Mas em caso algum essa solução legislativa - como a que se consagra na norma do artigo 2º, nº 2 - afasta o dever de observância das regras do ordenamento sobre planeamento territorial, incluindo os planos das autarquias em matéria de ocupação do espaço.
A competência atribuída ao IGAPHE pela norma do artigo 2º, nº 2, de proceder à emissão das licenças de utilização das habitações construídas, bem como aos demais actos de autorização e aprovação, necessários à sua boa execução, concretiza-se em procedimentos de controlo de conformidade das obras aos projectos. O legislador está aí a promover a coerência do sistema, pois que, no quadro em que a norma do artigo 2º, nº 2, tem operatividade - o do Decreto-Lei nº 164/93, sobre o Programa de Habitações - é o IGAPHE que estabelece o regulamento e o caderno de encargos de cada concurso, neles definindo as tipologias e as características dos fogos a construir (cf., Decreto-Lei nº 164/93, artigo 4º, nº 3).
As normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto nº 264/93 não actuam, pois, uma alteração desproporcionada da competência das autarquias definida no artigo 65º, nº 4, da Constituição da República. Já vimos também que não põem em causa o princípio da autonomia local, consagrado, entre outras, nas normas dos artigos 6º, nº 1, 237º e 239º, da Constituição.
3 - A norma do artigo 4º, nº 1, do Decreto nº 264/93
A norma do artigo 4º, nº 1, afirma a competência dos municípios de asseguramento da ligação das infra-estruturas existentes às dos empreendimentos a construir no âmbito do Programa de Habitações Económicas.
Não se trata aí de uma competência nova das autarquias. A Lei das Autarquias locais (Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março) já dispõe no artigo 2º que 'é atribuição das autarquias locais o que diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das populações e, designadamente, (...) ao abastecimento público [alínea c)], à salubridade e ao saneamento básico [alínea d)] e à defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de vida do respectivo agregado populacional [alínea i)]. A mesma Lei, no artigo 2º, nº 2, determina que essas competências se concretizam no 'respeito pelo princípio da unidade do Estado e pelo regime legalmente definido de delimitação e coordenação das actuações da administração central e local em matéria de investimentos públicos'.
Esta competência de concepção e asseguramento da ligação de infra-estruturas, que já existe no estatuto autárquico, é agora estendida a um novo âmbito de realidade, pelo que se põe o problema da auto-determinação financeira das autarquias. O acréscimo de despesas implicado nas eventuais alterações das infra-estruturas gerais dos municípios, é desprovido de compensação financeira e põe em causa o regime das finanças locais ?
A Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro) determina no artigo 11º, alínea a) que os municípios podem cobrar taxas pela 'realização de infra-estruturas urbanísticas'. O financiamento da actividade prevista no artigo
4º, nº 1, do Decreto nº 264/93, sempre deverá dizer-se, está garantido pela operatividade dessa lei.
As taxas de urbanização, com efeito, fazem parte das receitas próprias das autarquias. Destinam-se a 'compensar o município pela realização de novas infra-estruturas ou alteração das existentes em consequência da sobrecarga derivada da nova ocupação' (cf., Alves Correia, O Plano Urbanístico..., cit., pág. 581; cf., no mesmo sentido, mas preferindo a qualificação de impostos, Leite de Campos, 'Fiscalidade do Urbanismo' in Direito do Urbanismo, cit., pág.
460). 'Os municípios podem cobrar taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas, quer em momento prévio da realização das mesmas infra-estruturas, quer depois de estas se encontrarem concluídas' (Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 59/86, de 8-1-1987, in Diário da República, II Série, de
15-4-1987).
A norma do artigo 4º, nº 1, não trará, neste entendimento, nada de novo ao estatuto jurídico-financeiro das autarquias. Não envolve, por isso, alterações que ponham em causa a auto-determinação administrativa e financeira que às autarquias é assegurada pela Constituição.
Não vale aqui a equiparação operada pela norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto nº 264/93, entre os loteamentos e obras realizadas por particulares e os que são promovidos pelo Estado. Essa equiparação - que neste plano da norma do artigo 4º, nº 1, levaria à isenção dos particulares do pagamento das taxas (cf. Lei nº 1/87, artigo 27º) - é confinada pela norma que a estabelece aos loteamentos, obras de urbanização e de construção civil e aos procedimentos administrativos correspondentes, não às infra-estruturas urbanísticas.
Ora, se a competência atribuída pela norma do artigo 4º, nº 1, já está aí no sistema jurídico [a Lei das Autarquias Locais inclui-a no quadro de competências 'que diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das autarquias'] e não envolve alterações ao regime financeiro dos municípios, e estando os planos municipais de actividades sujeitos à regra da anualidade, não
é possível dizer da mesma norma que ela introduz a imprevisibilidade e ausência de controlo na actividade administrativa e financeira das autarquias.
Não é, pois, inconstitucional a norma do artigo 4º, nº 1, do Decreto nº 264/93.
V - A decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, e 4º, nº 1, do Decreto nº 264/93, aprovado pelo Conselho de Ministros.
Lisboa, 13 de Julho de 1993
Maria da Assunção Esteves
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida
Messias Bento
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
José Manuel Cardoso da Costa