Imprimir acórdão
Processo nº. 119/92
2ª Secção Relator: Cons. Mário de Brito
1. Por decisão do juiz do 1º. Juízo do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa de 17 de Dezembro de 1991 foi negada a liberdade condicional a A., condenado a 16 anos de prisão e em cumprimento da pena no Estabelecimento Prisional de Alcoentre.
Tendo o recluso interposto recurso dessa decisão, foi o requerimento indeferido por despacho de 7 de Janeiro de 1992, com fundamento em que o artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76, de 29 de Outubro, exclui de recurso, entre outras, as decisões que neguem a liberdade condicional.
Reclamou então o mesmo recluso para o presidente da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 405º. do Código de Processo Penal, suscitando na reclamação a questão da inconstitucionalidade do citado artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76. Mas, por despacho de 19 de Fevereiro de
1992, o presidente da Relação indeferiu a reclamação, depois de considerar que,
'quer à luz das normas expressamente constitucionais, ou, melhor, expressas na Constituição, quer à luz de normas internacional ou convencionalmente aceites, não estando em causa defesa na normal dialéctica processual, nem sentença condenatória, não se pode dizer que o artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76 - aliás, posterior à Constituição de 1976 - padeça de inconstitucionalidade'.
Daí o presente recurso interposto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 75º., 75º.-A, 70º., nºs. 1, alínea b), e
2, da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro.
Na respectiva alegação sustentou o recorrente, por um lado, a inconstitucionalidade do artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76 -
'seja pela via do artigo 20º. e 30º., nº. 5, da Constituição, seja pela via do artigo 14º. do Pacto [Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos] e 16º. da Constituição' - e, por outro, a inconstitucionalidade do artigo 61º. do Código Penal na interpretação que dele foi feita no processo.
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu assim a sua alegação:
1º Deve excluir-se do objecto do recurso a questão da constitucionalidade da norma do nº. 1 do artigo 61º. do Código Penal, por tal questão não ter sido - podendo sê-lo - suscitada durante o processo, e por, nos termos da conclusão seguinte, se dever entender que a decisão que aplicou tal norma é susceptível de recurso ordinário;
2º É materialmente inconstitucional a norma do artigo 127º. do Decreto-Lei nº.
783/76, de 29 de Outubro, no segmento em que estabelece que não é admitido recurso das decisões que neguem a liberdade condicional, por violação do artigo
32º., nº. 1, da Constituição;
3º Deve, em consequência, determinar-se a reforma do despacho de fls. 35 a 38, do presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade;
4º Na improcedência da delimitação do objecto do recurso feita na conclusão 1ª. e das conclusões 2ª. e 3ª., deve julgar-se não inconstitucional a norma do nº.
1 do artigo 61º. do Código Penal, na interpretação acolhida na sentença de fls.
11 e vº, do juiz do 1º. Juízo do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa.
Cumpre decidir.
2. Introduzida na legislação portuguesa pela Lei de 6 de Julho de 1893 (artigos 1º. a 5º.) - regulamentada por decreto de 16 de Novembro do mesmo ano -, a liberdade condicional foi mais tarde regulada pelo Decreto-Lei nº. 26 643, de 28 de Maio de 1936 (Reforma Prisional).
Nos termos do artigo 393º. deste último diploma, a liberdade condicional era concedida pelo Ministro da Justiça, 'mediante parecer favorável do Conselho Superior dos Serviços Criminais, sob proposta fundamentada do director do respectivo estabelecimento prisional, ouvido o respectivo instituto de criminologia'.
A Lei nº. 2 000, de 15 de Maio de 1944, veio, porém, proceder à jurisdicionalização do cumprimento das penas e das medidas de segurança, prevendo a criação de tribunais de execução das penas, com competência, além do mais, para 'conceder e prorrogar a liberdade condicional' e
'revogá-la quando a revogação não for de direito' (base IV). E o Decreto nº.34
553, de 30 de Abril de 1945, criou um tribunal de execução das penas com sede em Lisboa e jurisdição em todo o País (artigo 1º.), atribuindo-lhe competência para conceder a liberdade condicional e decidir a sua prorrogação ou revogação
(artigo 3º., nº. 6).
Com a reforma do Código Penal de 1886, operada pelo Decreto-Lei nº. 39 688, de 5 de Junho de 1954, a liberdade condicional passou a figurar entre as disposições relativas à 'execução das penas': quaisquer condenados a penas privativas da liberdade, de duração superior a seis meses - dispunha o artigo 120º. -, poderão ser postos em liberdade condicional quando tiverem cumprido metade da pena ou o tempo mínimo da medida de segurança, se mostrarem capacidade e vontade de se adaptarem à vida honesta.
A orgânica dos tribunais de execução das penas foi alterada pelo Decreto-Lei nº. 783/76, de 29 de Outubro. Mas manteve-se a sua competência para 'conceder a liberdade condicional e decidir sobre a sua revogação' (artigo 22º., nº. 6º., 1ª parte). O processo de concessão da liberdade condicional consta dos artigos 90º. a 100º. (alguns já alterados na sua redacção).
Resta acrescentar que a matéria da liberdade condicional tem hoje assento no novo Código Penal (de 1982), no título referente às 'penas', precisamente entre as 'penas principais' (secção V do capítulo I do título III do livro I - artigos 61º. a 64º.). Os seus pressupostos e duração constam do artigo 61º., assim redigido:
1. Os condenados a pena de prisão de duração superior a 6 meses podem ser postos em liberdade condicional quando tiverem cumprido metade da pena, se tiverem bom comportamento prisional e mostrarem capacidade de se readaptarem à vida social e vontade séria de o fazerem.
2. Os condenados a pena de prisão superior a 6 anos não serão postos em liberdade definitiva sem passarem previamente pelo regime de liberdade condicional; e serão sujeitos a este regime logo que hajam cumprido cinco sextos da pena, se antes não tiverem aproveitado do disposto no número anterior.
3. A duração da liberdade condicional não será inferior a 3 meses nem superior a
5 anos; o limite mínimo será, no entanto, elevado para o tempo de prisão que ao libertado falte cumprir, sempre que este tempo não exceda 5 anos.
Quanto a recursos das decisões dos tribunais de execução das penas:
Segundo o nº.1 da base III da Lei nº. 2 000, essas decisões não eram susceptíveis de recurso, salvo quando ordenassem a prorrogação das penas ou das medidas de segurança ou a revogação da liberdade condicional. Para conhecer dos recursos previa o nº. 2 da mesma base um tribunal colectivo, com sede em Lisboa e jurisdição em todo o País, que julgaria de facto e de direito.
De acordo com essa orientação, o Decreto nº.34 553 continha, no artigo 65º., uma enumeração taxativa das decisões que admitiam recurso, lá figurando, no que respeita à liberdade condicional, apenas as decisões que a revoguem (nº. 3º.).
O Decreto-Lei nº. 783/76 estabelece o princípio oposto, ou seja, o de que as decisões do tribunal de execução das penas são recorríveis, sendo o recurso para a Relação (artigo 125º.). Faz, porém, excepção a este princípio o artigo 127º.:
Não é admitido recurso das decisões que concedam ou neguem a liberdade condicional, a saída precária prolongada e sua revogação, bem como dos recursos referidos no nº. 3 do artigo 23º.
Esta norma mantém-se ainda em vigor, face ao disposto no artigo 484º. do Código de Processo Penal.
Feita esta descrição (sumária), vejamos as questões de constitucionalidade que se levantam.
3. Sustenta o recorrente a inconstitucionalidade do artigo 61º. do Código Penal, na interpretação que dele foi feita no processo.
Mas dessa questão não pode este Tribunal conhecer.
É que, exigindo o artigo 70º., nº. 1, alínea b), da Lei nº. 28/82 que a norma cuja inconstitucionalidade se invoca tenha sido
'aplicada' na decisão recorrida, esse requisito não se verifica no caso dos autos. Tal norma foi aplicada, sim, na decisão do juiz do Tribunal de Execução das Penas, mas a decisão aqui em recurso é a decisão do presidente da Relação, e esta limitou-se a aplicar o artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76, já que a
única questão posta na reclamação que lhe foi dirigida era precisamente a da inconstitucionalidade dessa norma.
Acresce que o recorrente só veio a suscitar a inconstitucionalidade do artigo 61º. do Código Penal já neste Tribunal - primeiro, na resposta ao despacho do relator que ordenou a sua notificação para identificar a decisão recorrida e, depois, na própria alegação de recurso -, ou seja, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, não 'durante o processo'
(como o exige a alínea b) do nº. 1 do citado artigo 70º.).
4. Quanto à inconstitucionalidade do artigo 127º. do Decreto-Lei nº.783/76:
Tendo surgido, segundo António Cabral de Moncada, A liberdade condicional (em O Direito, ano 88º., 1956, págs. 199), nº. 4, como
'forma de clemência' e como 'prémio de bom comportamento', a liberdade condicional figura no nosso actual Código Penal, como se disse, entre as 'penas principais', nos artigos 61º. a 64º..
Distingue o artigo 61º. duas modalidades de liberdade condicional: a 'facultativa' e a 'necessária' ou 'obrigatória' (cfr. António Manuel de Almeida Costa, Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português, 1989, separata do vol. LXV do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nº. 2). A primeira está prevista no nº. 1 do preceito: os condenados a pena de prisão de duração superior a 6 meses 'podem' ser postos em liberdade condicional quando tiverem cumprido metade da pena, verificados os restantes pressupostos aí indicados. A segunda é aplicável, nos termos do nº. 2, a todos os condenados a pena de prisão superior a 6 anos, depois de cumpridos cinco sextos da pena ('se antes não tiverem aproveitado do disposto no número anterior').
A liberdade condicional a que se refere o caso dos autos é a liberdade facultativa, pois, embora o recorrente tenha sido condenado, como vimos, a 16 anos de prisão, os cinco sextos da pena só se completarão - diz-se na decisão do juiz do Tribunal de Execução das Penas - em
24 de Julho de 1995.
E o que se pergunta é se a Constituição exigirá a consagração do direito ao recurso do despacho que nega a liberdade condicional.
É certo que na 'garantia da via judiciária' consagrada no nº. 1 do artigo 20º. da Constituição ou, pelo menos, entre as
'garantias de defesa' a que se refere o nº. 1 do artigo 32º. se conta, em princípio, o direito ao recurso das decisões dos tribunais, por forma que haja um duplo grau de jurisdição. Nesse sentido, v.g., J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 1º. volume,
1984, nota III ao artigo 20º., e Acórdão deste Tribunal nº. 8/87, de 13 de Janeiro (no Diário da República, I série, de 9 de Fevereiro de 1987, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º. volume, págs. 229).
Simplesmente, esse princípio - do direito ao recurso
- não é absoluto, mesmo em matéria penal. Como se pondera no Acórdão deste mesmo Tribunal nº. 31/87, de 28 de Janeiro (no Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987, e nos citados Acórdãos, 9º. volume, págs. 463), há-de admitir-se
'que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido': na mesma orientação, entre outros, o Acórdão nº. 259/88, de 9 de Novembro (no Diário, II série, de 11 de Fevereiro de 1989, e no Boletim do Ministério da Justiça, nº. 381, pág. 117), e, embora incidindo sobre matéria não penal, o Acórdão nº. 211/93, de 16 de Março
(no processo nº. 441/91). E o mesmo se diga em matéria de liberdade condicional, uma vez que a competência para a sua concessão ou negação já pertence a um juiz.
Assim, não viola o artigo 32º., nº. 1, da Constituição a norma do artigo 127º. do Decreto-Lei nº. 783/76, na parte aqui em apreciação, ou seja, aquela que exclui de recurso as decisões que neguem a liberdade condicional 'facultativa' prevista no nº. 1 do artigo 61º. do Código Penal.
Tão-pouco se pode falar na violação do nº. 5 do artigo 30º. da Constituição, pois tal preceito não consagra qualquer direito em especial, limitando-se a dizer que os condenados a quem seja aplicada pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm, em princípio, a titularidade dos direitos fundamentais.
E quanto ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado, para ratificação, pela Lei nº. 29/78, de 12 de Junho),finalmente invocado pelo recorrente, pode desde logo dizer-se que o nº 5 do seu artigo 14º. só prevê o 'direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei', relativamente a 'qualquer pessoa declarada culpada de crime'.
5. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Maio de 1993 Mário de Brito Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa