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Proc. nº 624/93 Plenário Rel. Cons.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No processo relativo à eleição dos órgãos autárquicos do Município do Nordeste, que se realizará em 12 de Dezembro de 1993, o senhor juiz do Tribunal daquela Comarca proferiu, em 19 de Outubro, um despacho com o seguinte teor: ' I Cumpra o disposto no artº 17º/3, DL nº 701-B/76, de 29/9. II Sorteio no dia 23/10, pelas 10.00 horas (artº. 23º/1, mesmo DL). Not.'
Na mesma folha em que se inscreve este despacho - fls. 790 -, está um termo de 'cota' dando conta da afixação das listas, em 19 de Outubro de
1993, e também um termo de notificação dos mandatários das listas concorrentes, relativa ao mesmo despacho.
Em 22 de Outubro de 1993, o senhor juiz proferiu um novo despacho. E, entre o mais, aí afirmou o seguinte:
' a)....
b)....
c) Listas de candidatos apresentados pela C.D.U.
1)....
2) Apresenta-se como candidato pela C.D.U. às Ass. e Câmara do Nordeste, o Sr. A. (fls. 654 e 698 vº), Funcionário Judicial.
Ora, nos termos do disposto no artº 4º/1, a , DL nº 701-B/76, 29/9, os Funcionários Judiciais são inelegíveis - preceito de que não decorrem dúvidas quanto à sua não inconstitucionalidade, sobretudo após a introdução do nº 3. artº 50º - CRP, operada através da L.C. 1/89.
Pelo que, e ao abrigo do disposto no artº 21º/1, DL nº 701-B/76, rejeito a sua candidatura.
Notifique, nos termos do previsto no artº 21º/2, mesmo DL.'
Em 23 de Outubro de 1993, foram notificados desse despacho os mandatários das listas concorrentes e procedeu-se ao sorteio das mesmas listas.
A seguir, em 25 de Outubro, o primeiro candidato da C.D.U. à Assembleia Municipal, A., em requerimento que apresentou na Secretaria do Tribunal da Comarca do Nordeste mas dirigiu ao Exmo. Presidente do Tribunal Constitucional, veio afirmar que recorria, nos termos do artigo 25º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro, da decisão que rejeitou a sua candidatura. Com os seguintes fundamentos:
'(...) considerando que as inelegibilidades constituem restrições a um direito fundamental dos cidadãos (constitucionalmente consagrado) e que por tal razão se devem restringir apenas à salvaguarda dos interesses que visam proteger, pretendeu apenas o legislador assegurar a imparcialidade e independência das decisões locais; garantir a isenção de determinados cargos na autarquia e garantir, de certa forma, a liberdade de escolha dos cidadãos, pelo que se deduz que a inelegibilidade invocada em concreto é, em nosso entender, uma inelegibilidade especial ou local, restrita à área da autarquia.
Ora o que se passa contradiz de forma peremptória a intenção do legislador já que se trata de considerar inelegível um candidato cuja isenção e imparcialidade apenas poderia ser posta em causa caso se verificasse o exercício das suas funções na área abrangida pelo Concelho a cujos órgãos municipais se candidata. Tal não é de forma absoluta o caso em questão, já que me candidato pelo Concelho de Nordeste e exerço a profissão de oficial de justiça num Concelho (Comarca) - de P. Delgada - de diferente área de competência profissional. Tal facto inibe a potencial não preservação da independência, imparcialidade e isenção que adviriam pelo exercício do cargo a que me candidato. Mas tal facto, em minha opinião, contradiz um direito fundamental que julgo assistir-me, tal como a qualquer outro cidadão, e que é consagrado na CRP, ou seja, o livre acesso aos cargos públicos.
Aliás, relativamente a uma outra área contemplada pelo Artº 4º do Dec.Lei 701-B/76, na sua alínea c) (na redacção dada pelo Dec.Lei nº 757/76, de
21 de Outubro), existe jurisprudência já emitida por Acórdão do Tribunal Constitucional - nº 244/85 (D. da República, II Série, de 07/02/86) que consagra a inelegibilidade restringida aos órgãos autárquicos nos quais o funcionário exerce actividade profissional directa, considerando que o conceito de inelegibilidade não deve, constitucionalmente ser estendido para além do necessário !
Por estes motivos se aguarda decisão do Tribunal Constitucional que contemple a eventual revisão da situação de inelegibilidade que me foi notificada em 23/10/93, por via do mandatário da lista da Coligação PCP-PEV, por decisão do Tribunal da Comarca do Nordeste, solicitando a declaração de inconstitucionalidade de tal decisão'.
Em despacho de 26 de Outubro, o senhor juiz, considerando este requerimento, sublinhou que 'nos termos do disposto nos artigos 22º e 25º, DL nº 701-B/76, de 29/9, com a redacção introduzida pela L nº 14-B/85, de 10/7, o recurso para o T.C. só é admissível depois de reclamação perante o tribunal a quo', mas em razão da alusão feita pelo recorrente a um direito fundamental em causa, considerou 'o recurso apresentado, como reclamação'. Depois, determinou o seguinte: 'Cumpra-se o disposto no artigo 22º/nº 2, DL nº 701-B/76 (com a redacção introduzida pela L nº 14-B/85, 10/7), de imediato'.
Em 26 de Outubro de 1993, foi o mandatário da C.D.U. notificado deste despacho e procedeu-se também à 'afixação da relação completa de todas as listas, à excepção das da C.D.U.' (cota de fls. 904 v).
Em 28 de Outubro, o mandatário da C.D.U. dirigiu ao senhor juiz um aditamento à reclamação 'que foi atempadamente' apresentada em relação à declaração de inelegibilidade do candidato A. à Assembleia Municipal do Concelho do Nordeste. Aí afirmou, essencialmente, o seguinte:
' 1. Com base no artigo 50º da Constituição da República Portuguesa
'Todos os cidadãos tem direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos'; 'No acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos'.
2. Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que as inelegibilidades como restrições a um direito fundamental devem limitar-se ao estritamente necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos: garantindo a liberdade de escolha dos cidadãos e preservando a isenção, independência e prestígio de determinados cargos ou funções.
3. O artigo 4º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro, sob a epígrafe 'Inelegibilidades' estabelece inelegibilidades especiais ou locais
(restritas à área de uma autarquia, no entendimento da mais recente jurisprudência e doutrina).
4. Nesse sentido, quanto aos funcionários de justiça (que é o caso em apreço) veja-se, por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional 528/89
(publicado no Diário da República, II Série, nº 68, de 22.03.90) que estabelece como doutrina que a inelegibilidade apenas respeita à candidatura a órgãos autárquicos sediados dentro da área de jurisdição do tribunal onde exercem funções, abarcando na definição de 'funcionários de justiça' os funcionários compreendidos na categoria de oficiais de justiça (tal como é definido pelo artigo 31º do Decreto-Lei nº 367/87, de 11 de Dezembro)'.
O senhor juiz, em despacho de 28 de Outubro de 1993, sem levar em conta este aditamento, desatendeu a reclamação [como tal por ele assim considerada] e rejeitou a candidatura do cidadão A..
O mandatário da C.D.U. interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, invocando os artigos 22º e 27º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro.
II - Questões prévias
Sendo certo que o requerimento de 25 de Outubro era dirigido ao Exmo. Presidente do Tribunal Constitucional, o senhor juiz, no entanto, tratou-o como verdadeira reclamação, observando-se toda a tramitação correspondente e tendo-se seguido uma decisão do juiz sobre a questão.
Por outro lado, nos autos, não há notícia da afixação à porta do edifício do Tribunal da relação completa de todas as listas admitidas, como o determina o artigo 22º, nº 5, do Decreto-Lei nº 701-B/76, e o recurso para o Tribunal Constitucional deve ser interposto a partir da afixação das mesmas listas (artº 25º, nº 2, do Decreto-Lei nº 701-B/76). Porém, como este Tribunal vem afirmando, a antecipação do recorrente no que a tal matéria respeita não obsta ao conhecimento do recurso (cf., no mesmo sentido, os acórdãos nºs. 261/85 e 528/89, D.R., II Série, de 18-3-1985 e de 22-3-1990, respectivamente).
III - A fundamentação
O direito de sufrágio passivo beneficia da especial força vinculativa das normas constitucionais que o consagram (C.R.P., artigos 48º, nº 1, 49º e
50º). Isso significa, nomeadamente, que a lei só pode restringir esse direito
'nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (C.R.P., artigo 18º).
A determinação dos bens ou interesses constitucionalmente protegidos aptos a legitimar a restrição do direito de sufrágio deve buscá-la o intérprete na norma do artigo 50º, nº 3, da Constituição: só a garantia da liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos cargos electivos podem assumir-se como fundamentos de necessidade e justificação da restrição do direito de ser eleito.
A propensão para a máxima efectividade das normas sobre direitos, liberdades e garantias é, pois, neste plano da participação política, balizada pelas condições de asseguramento da regularidade do processo de comunicação que realiza o princípio democrático. E aqui não se vê que a inelegibilidade dos funcionários de justiça, estabelecida no artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº
701-B/76, de 29 de Setembro, possa abranger os cidadãos que, detendo essa qualidade, pretendem integrar órgãos autárquicos fora da área de jurisdição do tribunal em que exercem funções (cf., neste sentido, o Acórdão nº 528/89, cit.).
Nenhuma forma de influência poderia intervir aí na formação da vontade dos cidadãos eleitores ou na isenção ou independência que se requerem para o exercício dos cargos públicos. Tratar-se-ia, antes, de uma amputação cívica, a negar a proeminência do direito de sufrágio, enquanto direito individual e condição de universalidade do processo democrático.
IV - A decisão
Nestes termos decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, declara-se elegível para a Assembleia Municipal de Nordeste o candidato da C.D.U. A..
Lisboa, 11 de Novembro de 1993
Maria da Assunção Esteves
José de Sousa e Brito
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos da minha declaração de voto constante do Acórdão nº 528/89)
Bravo Serra (vencido, pelas razões da declaração de voto que apendiculei ao Acórdão nº 528/89)
José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme a declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 528/89)
Tem voto de conformidade os Ex.mºs Senhores Conselheiros Alves Correia, Vítor Nunes de Almeida e Messias Bento, que não assinam por não estarem presentes.
Maria da Assunção Esteves