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Proc. nº 355/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A companhia de seguros A ..., deduziu embargos de executada no processo de execução a correr termos no 1º Juízo Cível da Comarca de Setúbal com a forma sumária, em que figura como exequente o Hospital D..., invocando a inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 2º e do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
Por despacho de 28 de Outubro de 1994, o juiz do Tribunal da Comarca de Setúbal deferiu parcialmente os embargos, tendo desaplicado a norma constante do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, por entender que a mesma enferma do vício de inconstitucionalidade orgânica.
2. É deste despacho (de 28 de Outubro de 1994) que vêm interpostos os presentes recursos: um pelo Hospital D ..., ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional; o outro pelo Ministério Público, ao abrigo dos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 10º do Decreto-Lei nº
194/92, de 8 de Setembro.
Junto deste Tribunal, o Ministério Público concluiu as suas alegações do seguinte modo:
'1º - Constitui matéria de processo civil, situada no âmbito da competência legislativa própria do Governo - por não incluída em nenhuma das alíneas que integram o artigo 168º da Constituição - a determinação de quais sejam os títulos executivos e a definição das condições da sua exequibilidade, incluindo a criação de novos títulos executivos administrativos, pelo que não se verifica a apontada inconstitucionalidade do artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
2º - Não constitui alteração ou modificação das regras atinentes à 'competência dos tribunais' a mera circunstância de - como pura decorrência da criação de um novo título executivo administrativo - a acção própria passar a ser a executiva, com a consequente alteração do tribunal territorialmente competente, segundo as regras processuais em vigor.
3º - O artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, não padece da apontada inconstitucionalidade, já que se não configura como contendo norma inovadora, relativamente ao estatuído na lei processual em vigor, para a determinação da competência territorial quanto às acções executivas que visam a cobrança coerciva de obrigações pecuniárias.'
Por seu turno, o Hospital D ... rematou assim as suas alegações:
'a) Anteriormente ao Dec. Lei 194/92, de 8 de Setembro, vigorava o DL 147/83, de 5 de Abril, que não continha qualquer preceito sobre competência territorial para as acções que tinham por objecto, ou seja, as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos hospitalares resultantes da prestação de serviços de saúde.
b) Tais acções atento o seu fim eram acções declarativas de condenação que seguiam a forma de processo sumaríssimo.
c) E tinham por objecto a cobrança de dívidas hospitalares, visando obter o cumprimento coercivo da obrigação de pagamento dos serviços prestados pelas instituições hospitalares.
d) O Dec. Lei 46.301, de 27 de Abril de 1965, a lei de Bases da Saúde
- L. 48/90, de 24 de Agosto, o Dec. Lei 11/93 que aprova o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, definem quem são os sujeitos passivos de tal obrigação
e) As acções de cobrança de dívidas aos hospitais, a que se refere o Dec. Lei 147/83 são acções de cumprimento de uma obrigação, legalmente definida, e não acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito.
f) Assim, tratando-se de uma acção para cumprimento da obrigação pecuniária, que deve ser cumprida no domicílio do credor (art. 774º do Cód. Civil), o Tribunal competente nos termos do nº 1 do art. 74º do C.P. Civil é o Tribunal do lugar sede do Hospital credor.
g) A atribuição no nº 2 do art. 495º do Cód. Civil de um direito de indemnização aos estabelecimentos hospitalares, não significa que apenas com base no instituto da responsabilidade civil possam obter a satisfação dos seus créditos, nem que a atribuição de tal direito pretenda afastar o seu direito de crédito legalmente previsto.
h) O que o Código Civil de 1966 pretendeu, ao incluir a disposição do nº 2 do art. 495º, foi criar um sistema abrangente e mais fácil para os hospitais obterem o pagamento dos serviços prestados.
i) Pelo que têm assim, os hospitais possibilidade de, a par do seu direito - o direito de indmenização que a lei lhe atribui.
j) Tratam-se de direitos distintos, que existem paralelamente, não prejudicando a atribuição do direito de indemnização o direito de crédito pelos serviços prestados que o estabelecimento tenha sobre o assistido ou outra pessoa legal ou contratualmente obrigada a satisfazer o custo daqueles serviços.
l) Estando apenas em causa as acções típicas de cobrança de dívida hospitalar para as quais era territorialmente competente, anteriormente à publicação do Dec.-Lei 194/92, o Tribunal do lugar da sede do Hospital credor, o art. 10º do Dec.-Lei 194/92, ao definir expressamente que a competência para as acções de execução por dívida hospitalar é esse mesmo local - sede da entidade exequente - nenhuma alteração introduziu no quadro de competências dos Tribunais, não violando por isso a reserva de competência exclusiva da Assembleia da República nessa matéria.
m) Não enferma, pois, o art. 10º do Dec.-Lei 194/92 de qualquer inconstitucionalidade.
(...)'
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. É a seguinte a redacção do artigo 10º do Decreto-Lei nº
194/92, de 8 de Setembro:
'Artigo 10º Foro competente para a execução
As acções de execução por dívida a que se refere o presente diploma são instauradas no tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente.'
A norma contida neste artigo, conjugada com a constante do artigo 94º, nº 1, do Código de Processo Civil, e tendo em conta o disposto no artigo 774º do Código Civil, não veio estabelecer, em si mesma, uma regra diferente no que concerne à competência territorial do tribunal caso o credor esteja munido de um qualquer título de força executiva não decorrente de sentença judicial.
5. Na verdade, não existiu qualquer alteração de competência, mas apenas uma alteração dos pressupostos de que resulta a determinação da competência, pela conjugação do nº 1 do artigo 2º com o artigo 10º, ambos do Decreto-Lei nº 194/92. Na realidade, conferindo-se força executiva às certidões de dívida emanadas das instituições e serviços públicos do Serviço Nacional de Saúde, a respectiva cobrança coerciva, porque incide sobre uma obrigação pecuniária, efectivar-se-á pelo tribunal do lugar do domicílio do credor. Diferentemente, se, para conferir título executivo a essas dívidas, fosse previamente necessária a prolação de sentença condenatória, o tribunal competente para a execução seria aquele em que a causa havia de ser julgada
(artigo 90º, nº 1, do Código de Processo Civil). Ora, nesta última hipótese, tal tribunal seria, consoante os casos e na falta de disposição em contrário, ou o tribunal onde a obrigação deveria ser cumprida (que poderia ser o tribunal do domicílio do credor, do devedor ou do lugar onde a coisa se encontrava ao tempo da conclusão do negócio, nos casos, respectivamente, de se tratar de uma obrigação pecuniária, de uma qualquer outra obrigação ou de a prestação ter por objecto coisa móvel determinada - artigos 772º a 774º do Código Civil e 74º, nº
1, do Código de Processo Civil) ou, se a responsabilidade se fundasse em facto ilícito ou no risco, o tribunal do lugar onde o facto ocorreu (artigo 74º, nº 1, do Código de Processo Civil).
É, assim, unicamente neste contexto, perante a especificidade de título executivo em causa, que poderão, por via da aplicação das normas constantes do nº 1 do artigo 2º e do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, resultar alterações à determinação em concreto da competência territorial do tribunal. Tal alteração resulta, pois, de uma inovação legislativa quanto ao modo processual específico de promover a execução de créditos e não de qualquer regra de competência.
6. Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que, na reserva estabelecida na alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, se não integram alterações das regras de competência territorial advenientes de alterações de índole estritamente processual, fora do âmbito criminal e do processo perante o Tribunal Constitucional (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 132/88 - D.R., II Série, de 8 de Setembro de 1988 - e 376/96 - inédito).
No citado Acórdão nº 132/88, entendeu-se que 'qualquer que seja o nível ou grau de definição da competência dos tribunais reservado à Assembleia da República, seguramente que nele não entram modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual'.
No caso sub judicio, porém, nem sequer se pode entender que, directamente, tenham existido alterações de regras processuais de competência, como se disse, mas apenas alterações dos pressupostos processuais de regras de competência, o que, por maioria de razão, justifica a aplicação da jurisprudência anteriormente referida.
7. Por outro lado, não se pode concluir que, sob tal alteração dos pressupostos, se assiste aqui a uma real alteração de competência material, na medida em que, com a criação do novo título executivo, se retira competência aos tribunais, atribuindo-a a órgãos da administração.
Na verdade, tal como reiteradamente este Tribunal tem entendido (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 760/95 e 761/95, D.R., II Série, de 2 de Fevereiro de 1996), a atribuição de força executiva aos títulos de dívida passados pelas instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde operada pelo nº 2 do Decreto-Lei nº 194/92 não implica a resolução de um conflito. Assim, a concessão de força executiva aos títulos em apreço não consubstancia, necessariamente, o desenvolvimento de uma actividade integrada na função jurisdicional e, consequentemente, também não se verifica qualquer alteração de competência por esta via (nesse sentido, cf. o citado Acórdão nº 376/96 do Tribunal Constitucional).
Deste modo, não houve qualquer alteração da regra de competência material, no sentido de, subsistindo os mesmos pressupostos, se alterarem as decorrências jurídicas em matéria de competência dos tribunais. Apenas houve, como se disse, uma alteração dos modos processuais de desencadeamento do processo executivo e, consequentemente, de pressupostos de que depende a aplicação de regras de competência.
8. Conclui-se, pelo que ficou dito, que a norma constante do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, não é inconstitucional.
III Decisão
9. Ante o exposto, decide-se conceder provimento aos recursos, revogando-se, consequentemente, a decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 15 de Junho de 1996 Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Luis Nunes de Almeida