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Processo n.º 706/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 594/2011 de não conhecimento do objecto do recurso, pelos seguintes fundamentos:
«(…) 3. Não obstante o convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido, o recorrente continua a não identificar de forma minimamente precisa qual a norma ou interpretação normativa objecto do recurso.
Na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, o recorrente afirma que as normas objecto do recurso são «designadamente a inconstitucionalidade das normas, ou melhor da interpretação das normas 40.°, 50.°, 55.° e 56.°, n.°1, al. a) e b), 71.°, n.°2 do Código Penal, 61.°, n.°1 al. b), 71.°, n.° 2, 119.º al. c), 340.°, n.°1 e 495.°, n.° 2 do CPP, cuja inconstitucionalidade oportunamente se invocou tanto na motivação como nas conclusões de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Coimbra» e «também das normas que do todo coerente deste sejam directa ou indirectamente consequentes ou delas decorram» (artigos 10.º e 11.º do requerimento).
É manifesto que, desta forma, o recorrente não deu cumprimento ao despacho que o convidava a identificar de forma “precisa” a norma ou interpretação normativa objecto do recurso. Por um lado, ficam por saber quais os preceitos legais do Código Penal e do Código de Processo Penal em que se baseia a interpretação reputada inconstitucional (o recorrente refere um vasto conjunto de preceitos que indica não ser exaustivo, mas antes admite que poderá ainda abranger outros, designadamente, normas que «sejam directa ou indirectamente consequentes ou delas decorram»); por outro, continua sem se saber qual a interpretação normativa, extraída desse extenso conjunto de normas que o recorrente reputa inconstitucional e que terá sido adoptada pelo acórdão recorrido como sua ratio decidendi.
Não basta, para efeito de identificação da norma e consequente delimitação do objecto do recurso, remeter para a «errónea interpretação» do tribunal recorrido (artigo 13.º do requerimento) ou para a peça processual onde se afirma ter suscitado a questão (artigo 19.º do requerimento). Como este Tribunal Constitucional tem reiteradamente salientado, a suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa exige que o recorrente identifique, com um mínimo de precisão, a interpretação ou dimensão normativa que reputa inconstitucional, de modo a que o tribunal recorrido fique “obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a permitir ao Tribunal Constitucional enunciá-la, no caso de a vir a julgar inconstitucional.
Ainda que se admitisse que o Tribunal se podia substituir ao recorrente na identificação da norma ou interpretação normativa objecto do recurso, sempre se teria de concluir que, no caso em apreço, tal não é possível com um mínimo de segurança. Pois não há coincidência entre o conjunto de normas referido no requerimento de interposição do recurso e na resposta ao convite ao aperfeiçoamento e aquelas que, ainda que de forma também imperfeita, são questionadas do ponto de vista da sua constitucionalidade, designadamente na conclusão 15. das alegações do recurso apresentado junto do Tribunal da Relação de Coimbra. Sendo que, em qualquer dos casos, faltou sempre a enunciação precisa de qual a interpretação normativa que se reputava inconstitucional.
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«1 — Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, foi interposto, pelo ora reclamante, recurso de inconstitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.°1 do art.° 70.° da Lei do Tribunal Constitucional.
2 — O reclamante, no objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, veio solicitar a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação das normas 40.°, 50.°, 55.° e 56.°, n.°1, al. a) e b), 71.°, n.°2 do Código Penal, 61.°, n.°1 al. b), 71.°, n.°2, 119.° al. c), 340.°, n.°1 e 495.°, n.°2 do CPP, cuja inconstitucionalidade oportunamente se invocou tanto na motivação como nas conclusões de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Coimbra,
3 — Com efeito, no douto Acórdão proferido em 11 de Maio de 2011, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do presente processo foi, em face da Constituição vigente e dos princípios fundamentais que a ela estão subjacentes, errada e viciadamente interpretadas as normas dos art.° 55.º, 56.° do CP, 495.°, n.°2 e 61.º n.°1 al.b) do CPP.
4 — Tendo sido proferida Decisão Sumária n.° 594/2011, que decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78.°-A, n.° 1, da LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal Constitucional, porquanto faltou sempre a enunciação precisa de qual a interpretação normativa que se reputava inconstitucional.
5 — O ora reclamante sempre fundamentou de forma precisa qual a interpretação normativa que reputava inconstitucional, pelo que deve ser tomado conhecimento do objecto do recurso.
6 — Como se afere do seu requerimento de recurso e do requerimento de aperfeiçoamento o recorrente identifica de forma precisa que a decisão recorrida pressupõe uma interpretação do art.° 61.º, n.°1 al. b) e 495.º, n.°2 do C.P.P.
7 — A douta decisão, em crise, assentou na promoção do Ministério Público para que fosse revogada a suspensão da pena ao arguido/recorrente (promoção que não foi notificada ao arguido com vista a exercer o contraditório, apresentar as suas provas, nem tendo o arguido sido notificado para ser ouvido presencialmente antes de ser tomada a douta decisão), considerou mostrarem-se cumpridas as exigências constitucionais do direito de audiência e do princípio do contraditório ligados à racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática do processo penal (aludidos art.° 32.°, n.°1 e 5 da Constituição da República Portuguesa e 61.° n.°1, alínea a), 495.º, n.°2, do Código de Processo Penal), interpretando erroneamente que o parecer emitido pelo Ministério Público, em momento algum encerra em si mesmo qualquer facto ou elemento de prova, pelo que não tem, nem nunca terá, de ser notificado ao arguido sob pena de, cairmos numa catadupa de notificações, sem se obter uma decisão configurando apenas uma posição assumida no processo, em que nada condiciona ou determina a decisão do juiz a qual poderá sempre não a seguir.
9 — Ora nos termos do art.° 61.°, n.°1, al. b) do CPP e 495.°, n.°2, e do art.°32.°, da CRP, o arguido tem o direito de ser ouvido pelo Tribunal antes de ser tomada alguma decisão que pessoalmente o afecte.
10 — Não foi promovida pelo tribunal a quo a audição do arguido quanto ao motivo das faltas às entrevistas, nem lhe foi concedida a oportunidade de as justificar, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que o parecer do Ministério Público não tem de ser notificado ao arguido e que foi observado o princípio do contraditório com a comunicação que lhe foi efectuada se mostram cumpridas as exigências constitucionais do direito de audiência e do princípio do contraditório.
11 — Ao arguido, ora recorrente, não lhe foi referido que as declarações que estaria a prestar seriam com vista à eventual revogação da suspensão da execução da pena, nem o podia ser ouvido nesse sentido uma vez que não existia ainda promoção do Ministério Público para que fosse revogada a pena, que apenas foi proferida em 13/12/2010.
12 — A douta promoção não foi notificada ao arguido, ora recorrente, ficando o arguido coibido de exercer o seu direito ao contraditório.
13 — Foi nesse sentido que o recorrente interpôs o recurso para o Tribunal Constitucional.
14 — O recorrente deu assim cumprimento ao despacho que o convidava a identificar de forma precisas a interpretação normativa objecto de recurso, identificando quais os preceitos legais do Código de Processo Penal em que se baseou a interpretação do Tribunal a quo que o recorrente reputa de inconstitucional.
15— Delimitando o objecto de recurso de forma suficiente.
Termos em que, e nos de douto suprimento de V. Exas., deve a presente Reclamação ser recebida e deferida a pretensão na mesma ínsita, tal significando, que o recurso interposto para este Tribunal Constitucional seja admitido nos termos requeridos.»
3. O recorrido respondeu à reclamação nos seguintes termos:
«1º
Pela douta Decisão Sumária nº 594/2011, não se conheceu do objecto do recurso porque o recorrente, mesmo após convite para esse efeito, não identificara, de forma adequada, qual a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada.
2º
Por outro lado, também não havia correspondência entre o bloco normativo indicado no requerimento de interposição do recurso e no posteriormente apresentado na sequência do convite formulado (artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC) e aquele que durante o processo, ainda que de forma imperfeita, fora questionado do ponto de vista da sua constitucionalidade.
3.º
No requerimento apresentado após o convite formulado pelo Senhor Conselheiro Relator, o recorrente, após referir a tramitação do processo e quando pretende abordar a questão da inconstitucionalidade, diz o seguinte:
“10.º. Designadamente a inconstitucionalidade das normas, ou melhor da interpretação das normas dos artigos 40.º, 50.º, 55.º e 56.º, n.º 1, als. a) e b), 71.º, n.º 2, do Código Penal, 61.º, n.º 1, al. b), 71.º, n.º 2, 119.º. al. c), 340.º, n.º 1 e 495.º, n.º 2, do CPP, cuja inconstitucionalidade oportunamente se invocou, tanto na motivação como nas conclusões do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra”.
4.º
Parece-nos claro que com aquela afirmação o recorrente não identifica, minimamente, qual a questão de inconstitucionalidade que deseja ver apreciada, sendo certo que a peça já foi apresentada para suprir deficiências do requerimento de interposição do recurso.
5.º
Segundo se depreende do afirmado pelo recorrente quando recorre para o Tribunal Constitucional, a questão da inconstitucionalidade que invoca está relacionada com o facto de, segundo ele, não ter tido oportunidade de se pronunciar sobre a promoção do Ministério Público, na sequência da qual teria sido revogada a suspensão de execução da pena.
6.º
Ora, na motivação do recurso interposto para a Relação, o recorrente fala da violação de princípios constitucionais quando a revogação da suspensão é decretada sem ele se pronunciar sobre a promoção do Ministério Público e também sem a sua prévia audição.
7.º
Nunca se identifica qual a exacta dimensão normativa em causa, não se podendo considerar que esse ónus é cumprido com as afirmações constantes de fls. 63, 67 e 68 (texto da motivação) e das conclusões 8.ª a 15.ª, 27.ª, 42.ª e 44.ª.
8.º
Aliás, segundo o aresto recorrido, a não notificação ao recorrente da promoção do Ministério Público deveu-se exclusivamente ao facto de, tendo em atenção o seu teor e conteúdo, tal não se justificar.
9.º
Ou seja, não se entendendo que essa notificação era dispensável como regra, estamos perante uma específica dimensão normativa – que poderia radicar no artigo 495º, nº 2, do CPP -, nunca correctamente identificada pelo recorrente.
10.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada decidiu não conhecer do objecto do recurso por o recorrente não ter identificado, de forma minimamente precisa, a norma ou interpretação normativa objecto do recurso; e, por outro lado, por falta de correspondência entre o bloco normativo indicado no requerimento de interposição do recurso e na resposta ao convite ao aperfeiçoamento e aquele que, ainda que de forma imperfeita, foi questionado, do ponto de vista da constitucionalidade, no decurso do processo.
A presente reclamação em nada contraria o assim decidido.
É o próprio reclamante a reconhecer que indicou, como objecto do recurso, um vasto conjunto de preceitos legais do Código Penal e do Código de Processo Penal, sem mencionar, minimamente, qual a interpretação normativa, deles extraída, que reputava inconstitucional (cfr. ponto 2. da presente reclamação).
Contrariamente ao que parece pressupor o reclamante, não basta identificar «os preceitos legais do Código de Processo Penal em que se baseou a interpretação do Tribunal a quo que o recorrente reputa inconstitucional» (ponto 14. da reclamação). É também indispensável – como referido na decisão sumária reclamada – que o interessado identifique, com um mínimo de precisão, a interpretação ou dimensão normativa que reputa inconstitucional, de modo a que o tribunal recorrido fique “obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a permitir ao Tribunal Constitucional enunciá-la, no caso de a vir a julgar inconstitucional.
Ora, pelas razões referidas na decisão sumária reclamada – secundadas, aliás, na resposta apresentada pelo Ministério Público – o aqui reclamante não identificou essa interpretação normativa, nem perante o tribunal recorrido, nem perante este Tribunal Constitucional.
Por tudo isto, deve manter-se, na íntegra, a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.