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Processo n.º 62/2011
2ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
(Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), para apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), que prevê o crime de lenocínio, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. Os recorrentes, tendo alegado, formularam as seguintes conclusões:
«1- O Prof. Dr. Figueiredo Dias, (in Parte geral, Tomo I, 118 e 119), entende que a formulação dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, ao crime de lenocínio previsto no art.°170.º, n.º1 do Código penal, eliminando a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse necessariamente à exploração de situações de abandono ou de necessidade económica, leva à incriminação de puras situações tidas pelo legislador como imorais, sem ligação ao bem jurídico da liberdade ou autodeterminação sexual da prostituta, pelo que a incriminação é materialmente inconstitucional.
2- A Prof.ª Anabela Rodrigues (comentário Conimbricense do Código Penal, o Tomo I, Coimbra editora, pag. 518 e segs.) entende que o crime de lenocínio do art.º 170.º, n.º 1 Código penal, na redacção que lhe foi dada pela lei n° 65/98, é um crime sem vítima.
3- Neste entendimento não deve ser punido criminalmente quem profissionalmente ou com intenção lucrativa fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição desde que a vontade de quem se prostitui seja livre.
4- Os recorrentes entendem que a norma do art.°170.º do Código Penal protege valores que nada tem que ver com os direitos consagrados constitucionalmente que não cabe ao Direito penal proteger; sendo que as alterações introduzidas pelo DL 48/95, eliminaram do tipo legal a exploração de situações de “abandono ou de necessidade económica” das mulheres em causa, não se podendo concluir que as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros”, são situações cujo significado é a exploração da pessoa prostituída.
5- Com a incriminação o bem jurídico protegido não é a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas uma certa ideia de defesa do sentimento geral do pudor e de moralidade, que não é encarada hoje como função do direito penal, o que justifica uma descriminalização.
6- Uma vez que o crime de lenocínio protege bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que se considera ilegítimo. Nesta perspectiva, o crime de lenocínio do art.º 170.º, n.°1 do Código Penal, constitui um crime sem vítima, salientando-se que o bem jurídico protegido pela incriminação não é a liberdade sexual da pessoa, mas um bem jurídico transpessoal que não cabe ao direito penal defender.
7- O tipo legal de crime introduzido pela revisão de 1998, protege bens jurídicos que não são eminentemente pessoais, ficando assim, previsto um crime que não se coaduna com a sistematização do Código Penal, uma vez que se encontra inserido no capitulo V, “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”.
8- Com a referida alteração do código penal, confere a categoria de crimes a condutas que se traduzem em simples comparticipação em actos lícitos e livres. Fomentar, favorecer ou facilitar a prostituição de pessoa livre e autodeterminada, traduz-se a participar numa conduta alheia, desenvolvida livremente pela prostituta. E, deste modo é incriminado aquele que auxilia, favorece ou facilita outrem, à prática do exercício de um direito próprio.
9- O artigo 170° do Código penal está ferido de inconstitucionalidade material que somente pode ser afastado através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que represtine a exigência de que os actos descritos no corpo do art.º 170.º do CP apenas sejam passíveis de o constituir quando estejam em causa pessoas “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica”.
10- Da matéria dada como provada não resulta que os recorrentes tenham fomentado a prostituição das mulheres que trabalhavam no seu estabelecimento, limitando-se a favorecer ou facilitar a prática eventual de tais actos.
11- Não existe exploração de necessidade económica ou de abandono das pessoas que se prostituem.
12- Não se provou que houve aproveitamento de situação de carência económica ou de abandono em que as prostitutas se encontrassem.
13- A prática da prostituição era inteiramente livre, era o seu modo de vida, o seu trabalho, por elas livremente escolhido.
14- Resulta aliás do facto provado em 9 que as prostitutas recebiam metade do produto do trabalho, sendo a outra metade para os recorrentes que suportavam todos os encargos.
15- Pelo que os Recorrentes terão de ser absolvidos do crime de lenocínio, declarando inconstitucional o artigo 170.º do Código Penal, na versão anterior, por violação do disposto nos artºs. 18.º n.º 2, 26.º n.º 1, 27.º n.º 1, 41.º n.º 1, 47.º n° 1 e 58.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que e nos melhores de direito e com o Mui Douto Suprimento de V.ª Ex.ª deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e deverá o douto Acórdão ser revogado e substituído por outro que declare que o artigo 170.º n.º1 do Código Penal é inconstitucional por violação do disposto nos art.ºs 18.º n.º 2, 26.º n.º1, 27.º n.º 1, 41.º n.º1, 47.º n.º 1 e 58.º n.º 1 da CRP, e que é por isso materialmente inconstitucional, devendo tal norma ser considerada nula e inaplicável aos presentes autos, com as legais consequências, assim fazendo JUSTIÇA.»
3. O representante do Ministério Público, junto deste Tribunal Constitucional, apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. No crime de lenocínio previsto e punido no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, protegem-se bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e liberdade, contra a utilização da sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
2. O seu sancionamento penal não representa, assim, qualquer violação do princípio da proporcionalidade, consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, gozando nesta matéria o legislador ordinário de uma ampla liberdade de conformação.
3. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (correspondente ao actual artigo 169.º, n.º 1), estabelece o seguinte:
«…
Artigo 170.º
Lenocínio
1 - Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2 – (…)
….».
De acordo com as conclusões, que se encontram formuladas pelos recorrentes, temos que a questão a que importa responder é tão só a de saber se o enunciado preceito, designadamente se a incriminação das condutas que integram a factualidade típica do mesmo, fere alguma norma ou princípio constitucional.
A esta questão respondeu já a jurisprudência deste Tribunal, diga-se, de forma praticamente uniforme, designadamente através dos Acórdãos nºs. 144/2004, 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007 e 141/2010 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Importa, aqui, relembrar a resposta encontrada para tal questão no primeiro dos citados acórdãos, pois nele se fixou a orientação que veio a ser seguida pelos restantes.
Nesse acórdão, ou seja no Acórdão n.º 144/2004, deixado explicitamente afirmado a tal propósito, o seguinte:
(…)
Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando-a o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, JOSÉ MARTINS BRAVO DA COSTA, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e LURDES BARATA ALVES, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” (e note se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. LOMBROSO e G. FERRO, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de TOVAR DE LEMOS, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. MARIA RITA LINO GARNEL, “A loucura da prostituição”, em Themis, ano III, nº 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 47º, nº 1 e 61º, nº 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, MASSIMO LUCIANI, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se ANABELA RODRIGUES, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, ALMIRO SIMÕES RODRIGUES, “Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?”, em Infância e Juventude, Revista da Direcção geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e ss., e JOSÉ MARTINS BARRA DA COSTA e LURDES BARATA ALVES, Prostituição 2001..., ob. cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, CATHERINE MACKINNEN, Pornography: On Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respectiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. SANDRA E. MARSHALL, “Feminism, Pornography and the Civil Law”, em Recht und Moral (org. HEIKE JUNG e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que “a perda da autonomia não é um assunto meramente subjectivo... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma”]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.
9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais.
(…).
5. Entende-se que insubsistem razões que determinem a alteração da jurisprudência deste Tribunal, assim, fixada, ou seja, a Constituição em nada obsta a que o legislador possa tutelar criminalmente os bens jurídicos em causa, tal como o fez na norma penal cuja (in)constitucionalidade se encontra questionada pelos recorrentes, nada mais havendo a acrescentar ao juízo formulado no texto do citado Acórdão n.º 144/2004.
Assim, impõe-se concluir pela não inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (correspondente ao actual artigo 169.º, n.º 1), e, consequentemente, pela improcedência do recurso.
III. Decisão
6. Nos termos supra expostos, o Tribunal decide:
a) – não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal;
b) – negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 25 (vinte e cinco) UCs..
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011. – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi do entendimento maioritário, pelas razões que passo a expor.
1. Por confronto com a versão original do Código Penal de 1982, a incriminação do lenocínio, no que releva para a questão de constitucionalidade em juízo, resultou ampliada pela alteração introduzida com a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro. Na referida versão de 1982, constava (artigo 215.º, n.º 1, alínea b)), como elemento do tipo, a exploração, pelo agente, de uma “situação de abandono ou de extrema necessidade económica” das pessoas dedicadas ao exercício da prostituição. A reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) já alargou um pouco essa previsão, na medida em que se contentou com a exploração de “situações de abandono ou de necessidade económica” (artigo 170.º, n.º 1). O legislador de 1998 abandonou, pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, qualquer exigência quanto ao aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade daquelas pessoas, suprimindo, pura e simplesmente, o segmento que a exprimia.
2. Como é orientação constante deste Tribunal – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 426/91, 634/93, 650/93 e 311/95 – a incriminação de certas condutas, na medida em que implica uma restrição dos direitos fundamentais à liberdade e/ou de propriedade, tem que ser justificada perante o princípio da proporcionalidade expresso naquela norma. Por força da sua repercussão negativa no âmbito de protecção destes direitos, a imposição de uma pena fica imediatamente sujeita à “restrição das restrições” enunciada no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, devendo «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
É, pois, como refracção directa do princípio da proporcionalidade que o princípio da necessidade das penas, consensualmente apontado pela moderna penalística, corresponde a uma ineliminável exigência constitucional.
Este princípio postula, não apenas uma intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal, só actuante, pressuposta a sua adequação, na falta ou ineficácia de instrumentos de protecção de outro tipo – cfr., por último, o Acórdão n.º 75/2010 ?, mas, antes do mais, a suficiente dignidade do bem jurídico tutelado, capaz de justificar o merecimento de punição, em caso de afectação.
De forma que, neste contexto valorativo, o primeiro passo a dar, para aferir da legitimidade constitucional da incriminação do lenocínio, é o da identificação precisa de bem jurídico-penal que ela visa tutelar.
3. O tratamento jurídico-penal dos crimes na esfera sexual evoluiu fortemente nas últimas décadas, como reflexo de alterações significativas nos padrões de conduta e nas concepções ético-sociais, neste domínio.
Pode dizer-se que o elemento polarizador dessa evolução foi o franco acolhimento, também neste campo, da ideia valorativa da autonomia individual e do livre desenvolvimento da personalidade, em medida sem paralelo no passado. Essa mudança – porventura uma verdadeira “mudança de paradigma” – traduziu-se, por um lado, num recuo na criminalização de condutas livremente assumidas por pessoas com maturidade e autonomia decisórias, e, por outro, num alargamento de incriminações, em resultado de uma consciência mais afinada dos deveres de respeito pela integridade moral e pela autodeterminação dos outros.
A nível da nossa legislação, e para além de reestruturações e reconfigurações de alguns tipos, sobressai, como manifestação impressiva da orientação actual, um novo enquadramento sistemático. Na versão inicial do Código Penal de 1982, estes crimes figuravam no Título III (“Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade”), Capítulo I (“Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida em sociedade”). Em 1995, os crimes sexuais foram transferidos para o título respeitante aos crimes contra as pessoas, sendo aí objecto de um capítulo autónomo. É neste capítulo que se insere a norma incriminadora do lenocínio, na secção respeitante aos “crimes contra a liberdade sexual”.
Em face desta localização, dir-se-ia que é este o bem jurídico protegido pelo artigo 170, n.º 1, do CP. Mas esta conclusão revela-se algo apressada, pois não tem qualquer respaldo na estrutura tipológica da norma incriminadora. De facto, com a eliminação, na revisão de 1998, do segmento que estabelecia, como elemento do tipo, a exploração da vulnerabilidade situacional, em razão de abandono ou necessidade económica, da pessoa que se prostitui, desapareceu qualquer conexão com a protecção da vontade livre dessa pessoa. Essa conexão consta apenas do n.º 2 (de modo diversificado, consoante as previsões), como elemento de uma forma qualificada de crime de lenocínio, sujeita a uma moldura penal agravada.
E, nisso, a norma do n.º 1 do artigo 170.º contrasta fortemente com todas as outras disposições de tutela da liberdade sexual. Em todas elas está presente, como elemento definidor do tipo legal de crime, o exercício de violência, coacção, ou, pelo menos constrangimento sobre a vontade da vítima, ou então, no caso da fraude sexual, de indução em erro, também ela obstativa de genuína expressão volitiva, por parte de quem é enganado.
Atendendo à configuração tipológica, ganha fundamento a ideia de que criminalizada é a actividade profissional ou com fins lucrativos de proxenetismo, em si mesma, em quaisquer circunstâncias, sem se exigir um encaminhamento para a prostituição imputável ao aproveitamento de condições situacionais tipicamente geradoras de défices de autonomia da vontade.
A valoração, pela doutrina, deste novo dado legislativo foi, de uma forma geral, fortemente crítica – cfr., por todos, Figueiredo Dias, “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…”, XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, 31 s,, 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à “exploração de situações de abandono ou de necessidade económica”, eliminou a referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual e tornou-se infiel ao princípio do direito penal do bem jurídico», «surgindo a incriminação ? pode ler-se em Direito penal. Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007. p. 124 ? referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues, “Anotação ao art. 170.º”, Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I, Coimbra, 1999, p. 519, para quem a incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal – o que se tem hoje por ilegítimo».
4. Na jurisprudência constitucional, tem vingado uma posição ecléctica, que procura conjugar, como razão da incriminação, o interesse geral da sociedade e a tutela de um bem pessoal.
Essa posição encontrou uma formulação sinteticamente expressiva nas alegações do Ministério Público, apresentadas nos autos em que foi proferido o Acórdão n.º 144/2004. Aí se afirmou que «o crime de lenocínio do art. 170.º do Código Penal visa a protecção de um bem jurídico complexo, que abarca o interesse geral da sociedade relativo à postura sexual e ao ganho honesto, como também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente».
Para justificar que faz parte da teleologia da norma a tutela da “autonomia para a dignidade”, aquele aresto invoca a “normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição”. A carência de tutela penal estaria, de certo modo, in re ipsa, na “necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência”, necessidade que, segundo padrões de tipicidade e de normalidade social, é explorada por aqueles que fomentam, favorecem ou facilitam o exercício da prostituição. Daí o concluir-se que «o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social».
Mas, sem contestar esses índices de normalidade, a verdade é que, não sendo a prostituição um fenómeno de expressão uniforme, com a eliminação daquela exigência o legislador não evita consequências de sobre-inclusão, do ponto de vista da necessidade de tutela da liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Não excluindo do âmbito da incriminação os casos em que não se comprove o aproveitamento de uma especial situação de fragilidade, quanto às condições de uma real autonomia decisória, de alguém que possa ser considerado “vítima” dessa conduta, “o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual”, como se sustenta na declaração de voto da Conselheira Maria João Antunes, anexa ao mencionado Acórdão n.º 144/2004.
Compreende-se cabalmente que, estando em causa a disponibilização, mediante uma contrapartida monetária, de uma dimensão íntima da personalidade, para satisfação sexual de outro e com obtenção de ganhos (também) por um terceiro, o legislador penal seja aqui particularmente exigente quanto às garantias de uma decisão livre, não requerendo, no âmbito do n.º 1 do artigo 170.º, as formas qualificadas de perturbação da autonomia presentes nos outros tipos de crimes sexuais. Ainda se compreenderá que o aproveitamento objectivo de situações de desamparo seja o bastante, sem exigência de formas individualizadas de “pressão” sobre a vontade da vítima (contra, Anabela Rodrigues, ob. cit., p. 519-520). Mas já fica por explicar, à luz da necessidade de tutela da liberdade sexual, porque é que é dispensável a comprovação de qualquer ofensa, ainda que apenas situativamente indiciada, desse bem jurídico.
Essa constatação torna ineliminável, de acordo com o princípio da necessidade da intervenção penal, a busca de um outro bem jurídico-penal, para justificar a incriminação.
O Acórdão n.º 144/2004 – verdadeiro marco referencial nesta questão, pois fixou uma orientação seguida em todos os arestos posteriores (Acórdãos n.ºs 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007 e 141/2010) e também no Acórdão a que esta declaração se anexa – faz apelo directo à dignidade da pessoa humana, para validar jurídico-constitucionalmente (e não como “mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional”) a incriminação do lenocínio.
A dignidade da pessoa humana é a mais basilar ideia regulativa de toda a ordem jurídica. No plano constitucional, é-lhe reconhecida a natureza de um dos dois fundamentos do Estado português (artigo 1.º da CRP). Nessa qualidade, é fonte primária da disciplina da actuação dos poderes públicos para com as pessoas, nela radicando, não só como limite, mas também como tarefa, valorações constitutivas de princípios constitucionais, de direitos fundamentais de defesa, bem como de pretensões a prestações, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais.
Em todas estas irradiações normativas, consensualmente admitidas, a ideia da dignidade da pessoa humana tem operado normalmente como produtora de sentido fundante e de conteúdos para direitos expressamente consagrados.
Mas não se exclui que, em veste integrativa, dela possa resultar o reconhecimento de direitos não especificamente previstos. Assim aconteceu com o direito a um mínimo de existência, na sua vertente positiva de direito a prestações públicas garantidoras da sobrevivência, em situações de necessidade, o qual, pelo Acórdão n.º 509/2002, foi imediatamente fundado na dignidade da pessoa humana.
Em todas estas projecções, a dignidade da pessoa humana tem um alcance prescritivo que leva ao reconhecimento de posições jurídico-subjectivas constitucionalmente tuteladas. E ainda que não constituindo um sistema fechado, do extenso e diversificado catálogo de direitos fundamentais é possível inferir uma unidade de sentido, como consagração de um conjunto articulado de valores constitucionais atinentes à pessoa humana. Daí que a excepcional fundamentação directa e exclusiva de certa solução tuteladora de uma pretensão subjectiva em exigências postuladas pela dignidade da pessoa humana, sem passar pela mediação concretizadora de uma regra de protecção de um concreto bem jurídico, se possa ainda mover estritamente dentro do universo axiológico-normativo da Constituição.
É em direcção de certo modo oposta a esta que a ideia foi mobilizada pelo Acórdão n.º 144/2004, não como fundamento de um direito contra o Estado, mas como fundamento do exercício do poder punitivo do Estado, em compressão de direitos fundamentais. O que logo suscita a questão de saber se da dignidade da pessoa humana são inferíveis, para os particulares, imposições de conduta penalmente sancionáveis, mesmo quando o incumprimento não ofende qualquer bem específico. O que, noutras palavras, se interroga é se tem acolhimento constitucional um padrão objectivo de dignidade não conexionado com a liberdade e a integridade da personalidade de outrem, em termos tais que leve a conferir-lhe valor legitimante da incriminação de uma conduta lesiva, no relacionamento interpessoal.
Esta última nota é indispensável para uma definição rigorosa daquilo que está em questão. Na verdade, não se trata apenas de negar garantia jurídica à actividade de lenocício, o que a coloca fora do âmbito de protecção constitucional da liberdade de profissão e da liberdade de iniciativa económica privada. Para além da ineficácia vinculativa de contratos, neste âmbito, por essa via facilmente se justificam, prima facie (sem necessidade de ponderações, em concreto), medidas restritivas da liberdade de acção, como, por exemplo, certas medidas de polícia ou a proibição de publicidade.
Para justificar soluções deste tipo, basta considerar (correctamente) que a actividade de proxenetismo não é abrangida pelo âmbito de protecção de nenhuma das normas constitucionais garantidoras da liberdade de acção. Mas, mais do que isso, do que aqui se trata é de saber se ela preenche o conceito material de crime, com as restrições daí decorrentes para direitos fundamentais do agente. Não se questiona se essa actividade merece ou não proteçção constitucional; o que se questiona é se ela é causa legítima de afectação, através da acção punitiva do Estado, de bens protegidos.
Por isso mesmo, não se revela conclusiva a ideia, em si mesma de justeza inatacável, de que “a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento” (Acórdão n.º 144/2004). É bem verdade que a tolerância perante o próprio que desenvolve uma conduta vista pelo Estado e pela sociedade como um mal, em função do respeito pela liberdade individual, não tem necessariamente que se estender ao terceiro que promove essa conduta, retirando daí ganhos pecuniários. “Tal como, em geral, as acções que afectam outros”, essa intervenção de um terceiro deve estar sujeita a “controlo social” (Stuart Mill, On Liberty, ed. de 1978, Indianapolis/Cambridge, p. 97). Mas este entendimento deixa intocada a questão posta, no ponto decisivo de saber se é constitucionalmente legítimo que esse controlo se exerça (também) por meios penais.
No caso, já argumentativamente apontado (Maria Fernanda Palma, Direito constitucional penal, Coimbra, 2006, p. 78, n. 69), da “severa punição do tráfico de droga”, por contraste com a descriminalização do consumo, a legitimidade daquela punição é incontroversa, justamente porque é certo que o tráfico possibilita e potencia a afectação de bens pessoais dos consumidores, com protecção constitucional.
Nesta medida, esse regime diferenciado só abona e confirma a exigência de identificação de uma ofensa a um bem jurídico-penal, como condição de criminalização de um comportamento.
Ora, não parece sustentável que a ideia geral e abstracta de dignidade da pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantística da autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo constitucionalmente determinado, capaz de validar a restrição a direitos fundamentais que a criminalização representa.
Como vimos, a densificação e concretização jurídico-positiva dessa ideia, na ordem constitucional, são levadas a cabo pela consagração de direitos de defesa e de direitos sociais, cobrindo a dupla dimensão negativa e positiva da dignidade da pessoa. Por esse todo normativo é possível dar substância à posição constitucional de igual reconhecimento e respeito de que cada pessoa, individualmente considerada, como ser único e diferenciado, goza.
Mas falham de todo indicações normativas precisas, no plano constitucional, para fazer decorrer da dignidade da pessoa humana obrigações negativas de conduta, criminalmente sancionáveis, não impostas pela tutela de bens pessoais de outra pessoa. Desligado do seu sentido de imperativo de respeito pela personalidade concreta de todo e qualquer indivíduo, de não interferência lesiva da integridade das opções de vida pelos outros autonomamente tomadas, o conceito fica, no plano constitucional, como critério de comportamento de sujeitos privados, esvaziado de carga normativa própria. Só por uma concepção essencialista do que é postulado, em abstracto, pela condição humana, concepção preformada com base em valores de natureza ético-social e não decorrente de claras opções constitucionais, é viável concretizá-lo, através da definição de um modelo de conduta que impõe deveres, mesmo quando não está em causa qualquer dos direitos que o atributo da dignidade leva a reconhecer às pessoas que se dedicam à prostituição. Deste modo, a paradoxal objectivação, no plano das relações intersubjectivas, do atributo pessoal da dignidade, impositiva de deveres não correlacionados com o necessário respeito pela concreta autoconformação da personalidade do outro, não é feita a partir de dados da própria Constituição, mas de uma ideia prévia e exógena a ela, com base na moral comum.
Não se afigura, assim, que a intervenção do direito penal, neste domínio, vise “salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, como exige o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Ela decorre, antes, da tutela dos “bons costumes”, conceito que, embora radique noutros complexos normativos e não se mostre concretizável por inferências retiradas da Constituição portuguesa – que, aliás, ao invés de outras leis fundamentais, não lhe faz qualquer referência ?, é elevado a padrão constitucional, como factor de legitimação de uma incriminação e, logo, de restrições a direitos fundamentais do agente do crime.
Foi esta constitucionalização dos bons costumes, alojando-os na ideia, em abstracto, da dignidade da pessoa humana, que motivou a crítica generalizada da doutrina alemã à sentença do Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht), de 15 de Dezembro de 1981 (caso Peep-Show) – cfr., por todos, Henning v. Olshausen, “Menschenwürde im Grundgesetz: Wertabsolutismus oder Selbsbestimmung?”, NJW, 1982, p. 2221 s., W. Schatzschneider, “Rechtsordnung und Prostitution”, NJW, 1985, 2793 s., e Christian Hillgruber, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, München, 1992, p. 104 s. Estava em causa a negação de uma autorização administrativa, que aquele tribunal entendeu justificada por exigência dos bons costumes, considerando-os um elemento integrante do “valor objectivo” do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º, n.º 1, da Grundgesetz. A crítica, em tons variados, incidiu precisamente sobre esta “conversão” de estatuto normativo daquele critério valorativo, tida por falha de apoio constitucional.
Está fora de qualquer dúvida de que a protecção da liberdade sexual das pessoas está entre os fundamentos, não só “ético-sociais”, como também jurídico-constitucionais, da “vida em sociedade” (para utilizarmos a epígrafe da versão inicial do Código Penal de 1982). O que se contesta é que uma certa concepção de ordem moral (ainda que generalizadamente aceite no meio social) constitua, em si mesma, uma dimensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, justificando a sua aplicação autónoma no âmbito criminal, sem conexão com a tutela de um bem constitucionalmente definido e protegido.
Há que concluir que a caracterização legal do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998, como elemento estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económica da vítima, ultrapassa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um específico bem jurídico-penal.- Joaquim de Sousa Ribeiro