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Proc. nº 436/91
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., candidata ao concurso interno geral de acesso para provimento de dois lugares de ------------------ de ------ª classe da Direcção-Geral do Património do Estado, aberto por aviso publicado no Diário da República, II Série, nº 107, de 10 de Maio de 1991, requereu ao Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa a intimação do Director-Geral do Património do Estado para lhe mandar passar certidão integral das actas do respectivo júri, da qual constasse também a parte respeitante à apreciação dos candidatos que ficaram classificados
à sua frente ( ou seja, nos 1º a 3º lugares), elementos de que carecia para fundamentar quer o recurso hierárquico necessário quer o meio contencioso de impugnação desse acto de que pretendia lançar mão.
Tal pedido foi deferido por sentença de 2 de Outubro de 1991 do juiz do T.A.C. de Lisboa, com fundamento nos artigos 83º e 84º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), tendo, para o efeito, sido recusada a aplicação, por violação do disposto no artigo 268º, nºs
1 e 4, da Constituição, da norma do nº 4 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, na medida em que obsta ao acesso dos candidatos ao concurso
às actas do júri na parte em que não são directamente apreciados.
2. Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o representante do Ministério Público junto do T.A.C. de Lisboa, tendo por objecto a questão de constitucionalidade da norma do nº 4, do artigo 9º, do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, no segmento apontado.
Alegando neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa 'na medida em que restringe o direito de acesso dos candidatos ao concurso de provimento à parte das actas em que são definidos os critérios de apreciação aplicáveis a todos os candidatos e
àquele em que são directamente apreciados, por ofensa da garantia constitucional do direito à informação - artigos 18º e 268º, nº 1, da Constituição'.
Os recorridos A. e DIRECTOR-GERAL DO PATRIMÍNIO DO ESTADO não contra-alegaram.
Corridos os vistos legais, passa-se a decidir.
II
1. A questão objecto do presente recurso já foi, por diversas vezes, apreciada por este Tribunal, podendo citar-se, entre outros, os casos dos Acórdãos nº 177/92 e 178/92, ambos publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, nº 193/92, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Agosto de 1992 e nº 231/92, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1992. Em relação à orientação então definida entende-se nada haver a acrescentar, pelo que se seguirá de perto a doutrina assim já firmada por este Tribunal.
2. O Decreto-Lei nº 498/88 estabelece os princípios gerais a que deverá obedecer o recrutamento e selecção de pessoal para os quadros da Administração Pública (artigo 1º) e determina que o concurso é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório para o pessoal dos serviços ou organismos da Administração Pública e dos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos (artigos 2º e 5º, nº 2 ). O preceito em crise (nº 4) consta do seu artigo 9º, sob a epígrafe 'Funcionamento' e insere-se da secção I, capítulo IV, relativa ao júri, o qual artigo apresenta a seguinte redacção:
'1 - O júri só pode funcionar quando estiverem presentes todos os seus membros, devendo as respectivas deliberações ser tomadas por maioria.
2 - Das reuniões do júri serão lavradas actas contendo os fundamentos das decisões tomadas.
3 - As actas são confidenciais, devendo ser presentes, em caso de recurso, à entidade que sobre ele tenha de decidir.
4 - Os interessados terão acesso, em caso de recurso, à parte das actas em que se definam os factores e critérios de apreciação aplicáveis a todos os candidatos e, bem assim, àquela em que são directamente apreciados.
5 - As certidões das actas deverão ser passadas no prazo de dois dias contados da data da entrada do requerimento.
6 - O júri será secretariado por um vogal, por ele escolhido ou por funcionário a designar para o efeito.
Esta norma, como assinala o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, reveste um carácter restritivo quanto ao acesso dos interessados, em caso de recurso, às actas do júri, uma vez que apenas lhes garante tal acesso na parte em que se definem os factores e critérios aplicáveis a todos os candidatos e naquela outra em que se procede directamente à apreciação do próprio interessado.
Tal carácter restritivo suscita, desde logo, o confronto com a norma do artigo 268º da Constituição, a qual, ao reconhecer aos cidadãos os direitos fundamentais de informação e de acesso aos arquivos e registos da Administração e à fundamentação e ao recurso contencioso dos actos administrativos, constitui, pois, parâmetro directo de aferição da constitucionalidade da norma em crise.
Dispõe o aludido preceito constitucional, nos números ora relevantes:
' 1 - Os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles sejam tomadas.
2 - Os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas.'
3. Conforme o Tribunal já por diversas vezes afirmou, o direito de informação quanto ao amdamento dos processos administrativos por parte do interessado e o direito ao conhecimento das resoluções definitivas da Administração que recaiam sobre pretensões dos particulares, através de notificação e/ou publicação, constituem direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciados no Título II da Parte I, da Constituição, pelos que a tais direitos é aplicável o especial regime jurídico constante do artigo 18º da Constituição (por força do disposto no seu artigo
17º), daí as suas características de direitos directamente aplicáveis e protegidos, em caso de restrição, pelos critérios de autorização constitucional expressa e de reserva de lei geral e abstracta.
Sobre o artigo 268º da Constituição escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 934:
'O direito à informação sobre o andamento dos processos bem como o direito ao conhecimento das decisões (nº 1) conexiona-se com outros direitos ligados à actividade administrativa, designadamente com o direito de paarticipação no procedimento (artº 267º - 4 in fine); relacionado com eles está, por sua vez, o dever de notificação pela Administração, dando conhecimento, aos interessados, da prática de determinado acto (nº 3) [...]. O direito à informação exclui qualquer 'direito ao segredo' por parte da Administração, a não ser quando esse segredo reveste o carácter de 'dever funcional', legalmente previsto (segredo de justiça, segredo de telecomunicações, etc.). Este direito ao conhecimento das decisões pode efectivar-se, em caso de recusa da Administração, através de um processo de intimação judicial (LPTA, artº 82º).
O direito de informação dos interessados engloba ainda um 'feixe' de direitos instrumentais, como consulta do processo, transcrição de documentos, passagem de certidões, etc., enfim, um verdadeiro direito à transparência documental.'
Na realidade, o direito de informação constitui, face ao nosso ordenamento constitucional, um elemento essencial da participação dos administrados no procedimento administrativo, nesta dimensão realizando simultaneamente um direito subjectivo dos particulares inerente à dignidade da pessoa humana e um princípio objectivo do ordenamento traduzido na promoção da cooperação entre os administrados e a Administração no próprio processo de formação da vontade desta última. Nesta dupla vertente haverá que sublinhar que tal participação impõe certos postulados ao procedimento administrativo, desde logo que o mesmo decorra segundo um contraditório, em que esteja efectivamente assegurada a paridade entre a Administração e o administrado ao nível do processo em que este é parte interessada. O direito de informação surge, assim, como consequência directa e necessária do princípio do contraditório e das garantias de defesa.
Em tal direito, como se sintetizou no já citado Acórdão nº 193/92, avultam as seguintes marcas distintivas:
' 1) O direito de informação abrange qualquer fase do processo administrativo gracioso, desde o início até à conclusão, embora revista especial utilidade no domínio da formação do acto administrativo, até porque o texto constitucional também garante, em separado, o direito de os administrados conhecerem as resoluções definitivas que forem tomadas;
2) O direito de informação dos administrados é um verdadeiro e próprio direito, liberdade e garantia, um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos enunciados no Título II, da Parte I, da Constituição;
3) Enquanto direito, liberdade e garantia, beneficia do regime material descrito nos artigos 18º, 19º e 25º da Constituição, sendo-lhe, para além da aplicabilidade directa, extensivas regras como as de reserva de lei, do carácter restritivo das restrições e da suspensão apenas em estado de sítio ou de emergência e da proporcionalidade (cfr. Jorge Miranda, O Direito de Informação dos Administrados, separata da Revista O Direito, ano 120º, 1988, pp.
459 e segs.; Rui Machete, Estudos de Direito Público e Ciência Política, pp. 375 e segs.; Freitas do Amaral, Direitos Fundamentais dos Administrados, in Nos Dez Anos da Constituição, pp. 12 e segs.).'
A evolução legislativa mais recente tem vindo, aliás, a corroborar este entendimento. Com efeito, o Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, depois de na sua exposição preambular incluir, entre os objectivos essenciais a alcançar, o de 'assegurar a informação dos interessados e a sua participação na formação das decisões que directamente lhes digam respeito', dispõe, nos artigos 61º a 65º, sobre o direito dos administrados à informação, sobre a sua extensão e o denominado 'princípio da Administração aberta', remetendo-se a matéria do acesso aos arquivos e registos administrativos para legislação própria.
4. Ora, sendo este o sentido e o alcance do aludido preceito constitucional, importa agora cotejá-lo com a norma em crise.
5.
Desde logo resulta claro que o artigo 9º atrás transcrito consagra um
'princípio de segredo' ou de 'confidencialidade' das actas dos concursos (nº 3), a que se abrem apenas as excepções constantes do nº 4. Donde este último número comportar um carácter restritivo daquele direito de informação dos administrados, ou seja, comprime o direito de informação dos administrados quando lhes veda o acesso às sobreditas actas na parte em que os interessados pretendam conhecer todos os elementos informativos relativos aos documentos referentes aos outros candidatos ao mesmo concurso, com base nos quais o júri firmou a sua apreciação.
Ora tal restrição parece, de facto, afectar o núcleo essencial do direito de informação dos administrados. É que efectivamente existe um interesse directo dos candidatos no acesso a tais informações, pois que elas constituem elementos imprescindíveis para sindicar judicialmente a homologação da acta que contém e classificação e o ordenamento dos candidatos a um dado concurso de recrutamento e selecção de pessoal. Pode mesmo afirmar-se, como o faz o Acórdão nº 193/92, que, 'em muitas situações, o desconhecimento, por parte dos interessados, desses elementos documentais, inviabiliza a possibilidade de se articularem factos tendentes à demonstração de erro na apreciação dos critérios gerais, nomeadamente em sede de aplicação dos métodos de selecção e sistemas de classificação'.
Sem embargo, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, revestindo a norma em crise uma natureza restritiva, a sua legitimidade poderia decorrer da necessidade de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Com efeito, não se pode ver no direito de informação dos administrados em direito absoluto e irrestrito, por forma a que não comportasse qualquer tipo de compressão ou limitação introduzida por via legal.
Sendo este direito de informação uma das vertentes do direito de informação consagrado no artigo 37º da Constituição, o qual comporta, enquanto vertentes essenciais, o direito de informar, de se informar e de ser informado ( seja pela comunicação social - artºs 38º e 39º -, seja pelos poderes públicos - artº 48º, nº 3-, seja por qualquer outro meio específico constitucionalmente consagrado - v.g. artºs 35º, nº 1, 55º, alínea a) e 268º, nº 1 -), embora exclua qualquer 'direito ao segredo' por parte da Administração, contudo, há-de respeitar esse mesmo segredo quando ele resulte de um 'dever funcional' legalmente previsto (segredo de justiça, segredo de telecomunicações entre outros) ou sempre que estejam em causa bens ou valores das pessoas, da comunidade ou do Estado particularmente relevantes e constitucionalmente protegidos (v.g. a segurança interna e externa do Estado, a investigação criminal, a intimidade das pessoas).
A este propósito escreveu AFONSO QUEIRÓ ( in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114º, pág. 303 e ss.):
'Como se acentua no acórdão em apreço [do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Janeiro de 1981], o direito à informação, tal como se deve entender consagrado na Constituição, não é um direito absoluto e ilimitado. Comporta necessariamente excepções ou restrições. Ao interesse da transparência ou da 'publicidade' dos processos administrativos, que alimenta e vivifica o direito fundamental à informação, deverão sobrepor-se, como restrições de interesse comum, as exigências da segurança nacional e da política exterior do País, além de outros direitos fundamentais preponderantes, como o direito ao respeito pela vida privada dos cidadãos. Estas excepções, deduzidas por interpretação restritiva, não reduzem ou diminuem o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais respeitantes ao direito fundamental em questão, conteúdo essencial de que se fala no artigo 18º, nº 3, da Constituição.
Assim, portanto, a passagem de certidões dos processos arquivados ou em curso só pode ser recusada se se verificar alguma das referidas excepções.'
5. Neste contexto, a questão da possível relação de conflitualidade entre o direito de ser informado do interessado e os direitos da Administração e de outros particulares num dado procedimento administrativo, em termos de estes
últimos - uns e outros - poderem justificar a limitação e o condicionamento daquele primeiro, haverá de resolver-se com base na ponderação dos específicos direitos que em cada acaso se apresentem como contrapostos, da caracterização do seu conteúdo material e da projecção que através deles se possa repercutir em determinadas áreas ou espaços protegidos por uma particular garantia, em termos tais que dessa ponderação resulte, a final, a preponderância de um dos termos ou planos que aparentemente se excluem e rejeitam ou então um espaço de possível concordância prática em termos proporcionais e equilibrados.
Na situação vertente, a restrição constante do preceito impugnado, ao vedar o acesso dos interessados a um conjunto de informações que a lei pretende manter reservada à Administração, não surge nem como necessária nem como justificada à salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos que, tal como aqueles a que já atrás se aludiu, poderiam fundar e legitimar tal restrição.
Como se escreveu no Acórdão nº 193/92, 'não se vê, com efeito, que a facultação dos elementos documentais cobertos pela confidencialidade ali imposta proteja qualquer interesse atendível dos restantes candidatos ao concurso, desde logo porque as informações ali contidas não respeitam nem à sua intimidade nem à sua vida privada.'
A que acresce que o acesso a todos os elementos informativos constante das actas do júri se afigura como revestindo um carácter essencial para que os interessados possam exercer, adequadamente e de forma fundada, o direito de impugnação da qualificação e ordenação operadas no concurso em causa, donde termos de concluir pela inconstitucionalidade do nº 4, do artigo 9º, do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, por violação do disposto no nº 1, do artigo 268º, da Constituição, em conjugação com o o nº 2 do mesmo preceito constitucional.
III
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 30 de Junho de 1993
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa