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Proc. nº 358/93
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - O Ministério Público, no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, deduziu acusação contra A. e B., imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 23º e 24º, nº 2, alínea c), do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, este último preceito com a redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro e, actualmente, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro e 314º, alínea c) do Código Penal, pois que, preencheram, assinaram e entregaram a favor de C., um cheque sobre o banco D., no montante de 1.000.000$00, depois apresentado a pagamento e devolvido por falta de provisão.
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2 - Notificados da acusação, vieram os arguidos requerer, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, a abertura da instrução suscitando desde logo, para além do mais que aqui não importa considerar, a questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 454/91, em especial da norma contida no artigo 11º, nº 1, deste diploma.
No termo do debate instrutório foi proferido despacho pronunciando os arguidos como co-autores do crime por que vinham acusados com referência, nomeadamente, ao disposto no artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, aplicando-se assim uma norma cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo.
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3 - Não conformados com este despacho, dele trouxeram os arguidos recurso ao Tribunal Constitucional, sob invocação do disposto nos artigos 69º, 70º, nºs 1, alínea b) e 2, 75º, 75º-A, 78º, nº 4 e
79º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 87/89, de
7 de Setembro.
Nas alegações entretanto produzidas deixou-se traçado o seguinte quadro conclusivo:
1. A Lei que define o crime deve também expressamente cominar a respectiva pena, atento o seu próprio espírito e razão de ser, pelo que, a remissão do corpo do nº 1, do art. 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, para as penas do crime de burla, mostra-se inconstitucional por violação do princípio constitucional básico em matéria de punição criminal - o princípio da legalidade - conf. nº 3, artigo 29, C.R.P..
2. O facto de o Dec.Lei autorizado ter sido assinado por um Secretário de Estado Adjunto, consubstancia uma inconstitucionalidade formal, quer por não estar justificada a substituição do Ministro, quer porque a assinatura do Ministro tem uma função específica, que é a de garantir a colegialidade governamental e salvaguardar a autonomia e responsabilidade de cada Ministro. - conf. nº 3, art. 204º, Constituição.
3. O Dec. Lei nº 454/91, foi promulgado, referendado e publicado, fora do prazo de duração da respectiva autorização legislativa e depois do termo da V Legislatura da Assembleia da República, sendo que, havia já então caducado a autorização concedida, que tem a sua razão de ser, para além do mais, no facto do o Governo ser autorizado por uma determinada Assembleia da República, com a composição que lhe é inerente e ser absolutamente justificável que todas as condições da própria existência do Decreto se verifiquem dentro do prazo e da legislatura - conf. nº 4, art. 168º, Constituição;
4. A reserva da competência legislativa da Assembleia da República relativa à
'definição de crimes' (art. 168º, nº 1, al. c), da Constituição), abrange, quer a definição de novos tipos de crimes, quer a modificação, degradação ou eliminação de tipos existentes;
5. No nº 1, do artigo 3º, da Lei nº 30/91, de 20 de Julho, a Assembleia da República define como sentido da autorização legislativa concedida ao Governo para definir as condutas integradoras do crime de emissão de cheque sem provisão, uma diferenciação consistente em exigir a verificação do requisito da produção do prejuízo patrimonial a outrem para a incriminação da conduta descrita na alínea c), e em não exigir a verificação desse requisito para a incriminação das condutas descritas nas alíneas a) e b);
6. Ao estender a verificação deste requisito para a incriminação das condutas descritas nas correspondentes alíneas a) e b), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - e, assim, ao não criminalizar tais condutas nos casos em que não ocorre a produção de prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro -, o Governo desrespeitou o sentido de autorização legislativa que para o efeito lhe havia sido concedida;
7. É, assim, inconstitucional (ou ilegal, consoante a qualificação que se prefira para o vício consistente em o Decreto-Lei autorizado, não extravasando o objecto da autorização legislativa, lhe respeitar o sentido), por violação do artigo 115º, nº 2, da Constituição, a norma constante do corpo e da alínea a), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que exige a verificação da produção de prejuízo patrimonial para outrem para a incriminação da conduta prevista nessa alínea.
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, na contralegação que veio a apresentar, conclui como segue:
1 - O requerimento de interposição do recurso não obedece aos requisitos do artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, por falta da indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, pelo que não deve tomar-se conhecimento do recurso;
2 - Caso assim não se entenda, deve julgar-se não inconstitucional, a norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, e, consequentemente, negar-se provimento ao recurso.
O recorrente respondeu depois à matéria da questão prévia em termos de a ter por improcedente.
Dada a manifesta simplicidade de que o julgamento do presente recurso se reveste, foram dispensados os vistos de lei.
Cabe agora apreciar e decidir.
E decidir, antes de mais, sobre a bondade da questão liminar suscitada pelo Ministério Público relativamente ao não conhecimento do recurso.
Vejamos então.
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II - A questão prévia
1 - Em conformidade com o disposto no artigo 75º-A, nºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade
'interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie' (nº
1), sendo que, no caso de o recurso haver sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 70º, 'do requerimento dever ainda constar a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, bem como da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade' (nº 2).
Na situação em apreço, o recorrente aduziu no requerimento de interposição do recurso decorrer do despacho de pronúncia impugnado, 'muito especialmente da parte em que se indica o crime que o arguido terá cometido, que se optou pela aplicação, também, do Decreto-Lei nº 454/91, de
28.12, cuja inconstitucionalidade se suscitou na Instrução, por se entender violar o nº 3, do artigo 29º (legalidade das penas), o nº 3, do artigo 204º
(competência dos membros do Governo) e nº 4, artigo 168º (caducidade das leis de autorização legislativa) da Constituição'.
Terá, desta forma, dado cumprimento ao específico pressuposto de admissibilidade que naquela disposição se contém?
Entende-se que sim.
Com efeito, a apreciação das questões de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional no domínio dos processo de fiscalização concreta, radiquem elas em decisões de rejeição ou de acolhimento [artigos 280º, nº 1, alíneas a) e b), da Constituição e 70º, nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 28/82], está condicionada, consoante os casos, a uma efectiva aplicação da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, ou a uma potencialidade de aplicação dessa norma, isto é, não fora a sua rejeição com base em inconstitucionalidade, a norma seria aplicada como fundamento jurídico-normativo da decisão impugnada.
Se determinada norma jurídica não for aplicável ao caso submetido a julgamento, o tribunal da causa não deve pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessa norma, e isto porque a competência dos tribunais comuns (expressão que aqui se usa para designar todos os outros tribunais, com excepção do Tribunal Constitucional) no acesso directo
à Constituição é uma competência vinculada, no sentido de apenas compreender aquelas questões de constitucionalidade que tenham por objecto as normas jurídicas susceptíveis de aplicação ao caso sujeito a julgamento.
Ora, pese embora a falta de rigor formal com que se elaborou, ao menos neste domínio, o requerimento de interposição do recurso, resultava já com suficiência no processo que de todas as normas do Decreto-Lei nº 454/91, apenas em relação à norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), podia validamente suscitar-se a questão da sua inconstitucionalidade, por ter sido ela a única a ser objecto de aplicação no despacho recorrido como seu fundamento e suporte normativo.
E deste modo, a referenciação genérica feita naquele requerimento ao Decreto-Lei nº 454/91, haveria de ser entendida e interpretada à luz do quadro jurídico-material subjacente ao despacho de pronúncia, em termos de a reduzir à sua exacta dimensão.
Aliás, o próprio recorrente, dando-se porventura conta da pouca precisão com que elaborou o requerimento de interposição do recurso veio, na alegação entretanto oferecida, esclarecer que 'a apreciação na globalidade da inconstitucionalidade do referido Dec.Lei, traduzir-se-á, mais propriamente, na apreciação da inconstitucionalidade da norma susceptível de aplicação no processo, i. e., a norma constante do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que em rigor, constitui o objecto do presente recurso'.
Tendo em atenção o exposto e considerando-se o princípio da economia processual que desde logo se seguiu em ordem à aceleração do andamento dos autos, com a consequente dispensa de utilização da faculdade de aperfeiçoamento contida no artigo 75º-A, nº 5, julga-se validamente interposto o recurso, desatendendo-se, em consequência, a questão prévia levantada pelo Ministério Público.
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III - A fundamentação
1 - Como se alcança dos desenvolvimentos precedentes, o objecto do recurso circunscreve-se à questão da constitucionalidade da norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº
454/91, cuja formulação é a seguinte:
Artigo 11º
(Crime de emissão de cheque sem provisão)
1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo material:
a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo
8º que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
.................................................... .
Ora, questão inteiramente coincidente com a que aqui se coloca, foi objecto de apreciação e julgamento deste Tribunal no Acórdão nº 349/93, Diário da República, II série, de 3 de Agosto de 1993.
Na fundamentação deste acórdão (tirado aliás, na esteira do Acórdão nº 371/91, Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1991, que em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade procedeu
à apreciação do diploma que veio a ser publicado como Decreto-Lei nº 454/91, de
28 de Dezembro), foram já apreciadas as questões que o recorrente suscitou relativamente ao princípio da legalidade das penas, à caducidade da autorização legislativa e à desconformidade entre a lei delegante e à lei delegada.
A propósito destas matérias, suficientemente tratadas naqueles arestos, não se têm por necessários outros desenvolvimentos para além dos ali traçados, remetendo-se por inteiro para a sua fundamentação.
Resta assim a questão atinente ao facto de o Decreto-Lei nº 454/91, haver sido assinado pelo Secretário de Estado da justiça e não pelo Ministro da Justiça, do qual o recorrente extrai a invalidade do diploma por vício de inconstitucionalidade formal.
Mas não tem razão.
Em conformidade com o disposto no artigo 204º, nº
3, da Constituição (aditado pela revisão constitucional de 1982), os decretos-leis e os demais decretos do Governo são assinados pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros competentes em razão da matéria.
A função da assinatura dos Ministros está sobretudo em garantir a colegialidade governamental e salvaguardar a autonomia e responsabilidade de cada Ministro. É do próprio conteúdo do diploma que decorre quais são os Ministros competentes em razão da matéria (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra,
1993, p. 789).
Ora, o diploma em causa que estabelece normas relativas ao uso do cheque, haveria, em princípio, de ser assinado, nomeadamente, pelo Ministro da Justiça enquanto titular de um dos departamentos governativos a que pertence a matéria ali contemplada.
Simplesmente, o Decreto-Lei nº 454/91, aprovado no uso da autorização legislativa conferida pela Lei nº 30/91, de 20/7, e nos termos das alíneas a) e b) do nº 1, do artigo 201º da Constituição, para além do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, foi assinado pelo Secretário de Estado da Justiça, por certo em substituição do respectivo Ministro e dentro do quadro de previsão contido no artigo 188º, nº 2 da Constituição, segundo o qual
'cada Ministro será substituído na sua ausência ou impedimento pelo secretário de Estado que indicar ao Primeiro-Ministro ou, na falta da tal indicação, pelo membro do Governo que o Primeiro-Ministro designar'.
E assim sendo, a assinatura do Secretário de Estado da Justiça aposta naquele diploma enquanto substituto temporário do Ministro da Justiça, para além de ser consentida pelo artigo 188º, nº 2, preenche a colegialidade governamental e salvaguarda a autonomia e responsabilidade do respectivo departamento governativo, com o que fica arredado o vício de inconstitucionalidade invocado pelo recorrente.
Outrotanto não sucederia se o Decreto-Lei nº
454/91, contivesse tão somente a assinatura do Primeiro-Ministro, caso em que não se furtaria à violação do disposto no artigo 204º, nº 3 da Constituição
(cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 244/90, Diário da República, II série, de 22 de Janeiro de 1991).
Decorre do exposto a integral insubsistência das questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 16 de Dezembro de 1993
Antero Alves Monteiro Diniz António Vitorino Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa