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Processo nº 421/92
2ª secção Rel. Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório:
1. A. foi acusado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, em processo correccional, na comarca de Braga, de haver cometido, em concurso real e autoria material, as seguintes infracções: um crime de homicídio involuntário, previsto e punível pelo artigo 59º, alínea b); três crimes de abandono de sinistrado, previstos e puníveis pelo artigo 60º, nº 1, alínea a); e as contravenções previstas e puníveis pelos artigos 5º, nºs 5 (última parte) e 8, e 7º, nºs 1 e
10, disposições todas do Código da Estrada.
A mãe da vítima mortal de um dos acidentes (B.) deduziu pedido cível contra a companhia de seguros C., pedindo a sua condenação na indemnização de 2.498.000$00; um outro sinistrado pediu que esta fosse condenada em 53.500$00.
O arguido e a seguradora, notificados para o efeito, vieram declarar que não prescindiam de recurso.
Procedeu-se, então, a julgamento, com intervenção do tribunal colectivo, obtendo-se acordo quanto às indemnizações no decurso na audiência.
Quanto ao penal, o tribunal colectivo, por acórdão de 28 de Julho de 1989, condenou o arguido por um crime de homicídio involuntário e dois crimes de abandono de sinistrado (e não três como constava da acusação), por ter entendido que o abandono de dois sinistrados de uma mesma colisão integrava apenas um crime, e não dois.
2. O MINISTÉRIO PÚBLICO recorreu, então, desse acórdão para a Relação do Porto, manifestando a sua discordância, entre o mais, com a qualificação do abandono de dois sinistrados como um único crime.
No seu parecer, o MINISTÉRIO PÚBLICO junto da Relação corroborou a posição assumida pelo Magistrado da 1ª instância, sustentando que o arguido cometeu três crimes de abandono de sinistrado, e não apenas dois, como julgara o colectivo. Além disso, sustentou que a pena devia ser agravada e a suspensão da mesma revogada.
Este parecer foi notificado ao arguido, que, na resposta, sustentou a manutenção da decisão recorrida.
A Relação, por acórdão de 5 de Dezembro de 1990, agravou a pena - em vez de 12 meses de prisão e 300 dias de multa a 500$00 diários (em alternativa, 200 dias de prisão), aplicou 18 meses de prisão e 150 dias de multa a 1.000$00 por dia (em alternativa, 100 dias de prisão) - e revogou a suspensão que a 1ª instância havia decretado. Para além disso, entendeu a Relação que o arguido cometera três crimes de abandono de sinistrado ('tantos crimes quantos os feridos abandonados'), e não apenas dois.
3. O arguido recorreu, então, deste acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas respectivas alegações, sustentou que a sua fuga, consequente ao primeiro acidente, integra apenas um crime de abandono de sinistrado (e não dois) e que, por isso, se devia manter a pena que lhe fora aplicada na 1ª instância, bem como a suspensão da sua execução. Arguiu erro na forma de processo (em seu entender, devia ter sido processo de querela) e suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, ao abrigo da qual o Ministério Público junto da Relação do Porto emitira o parecer, a que, atrás, se fez referência.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 6 de Maio de 1992, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão da Relação.
4. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vem, interposto pelo arguido, o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929.
No Tribunal Constitucional, o arguido concluiu as alegações do modo que segue:
1. O Digno Representante do Ministério Público junto da primeira instância havia, no seu, aliás, muito douto recurso, limitado o âmbito deste à questão da suspensão da pena que fora aplicada ao ora Recorrente.
2. O excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto na Relação, porém, alargou as fronteiras da questão submetida ao Tribunal, suscitando, pela primeira vez, o problema do número de crimes integradores do concurso e propondo a agravação da pena, por essa via.
3. É manifesto que usou a oportunidade do visto que lhe foi concedido, ao abrigo do art. 664º CPP 29, para alterar profundamente e em prejuízo do Arguido o thema decidendum do recurso.
4. Ao Arguido não é concedida a possibilidade de, numa fase posterior à do recurso interposto e no âmbito deste, repensar o tema submetido à apreciação do Tribunal superior e, eventualmente, suscitar novas questões que não colocara nas suas motivações de recurso,
5. Pelo que o Ministério Público dispôs de uma oportunidade processual que não é nem foi concedida ao Arguido.
6. O Arguido, neste contexto e com este sentido, foi colocado, pela via do art.
664º CPP 29, numa posição manifestamente desigual e menos favorecida.
7. O princípio do acusatório, na medida em que exige e pressupõe a igualdade de armas processuais entre a Acusação e a Defesa, surge, assim, claramente ofendido em prejuízo do Arguido.
8. Quer dizer: o art. 664º CPP 29 é inconstitucional, por violação dos nºs 1 e 5 do art. 32º CRP, se interpretado - como foi neste caso - por forma a permitir ao Ministério Público junto da Relação alargar o âmbito do recurso interposto na primeira instância também pelo Ministério Público, se desse alargamento puder resultar, como resultou, o agravamento da pena do Arguido.
9. E inconstitucional, porque o Arguido não dispõe de idêntica possibilidade, pelo que é, por essa via, colocado numa posição de desigualdade e inferioridade relativamente ao Ministério Público, independentemente de lhe ser ou não assegurado o direito de resposta e, portanto, o exercício do contraditório.
10. Insiste-se: a questão não reside em saber se o Arguido pode ou não (para salvar a constitucionalidade do preceito) responder ao Ministério Público.
12. É anterior a essa e de substância completamente diferente.
O Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, de sua parte formulou as seguintes conclusões:
1º - Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a questão do número de crimes cometidos com o abandono de uma pluralidade de sinistrados na sequência de um mesmo acidente foi logo suscitada nas alegações do recurso interposto pelo representante do Ministério Público na 1ª instância, não tendo o parecer emitido pelo representante da mesma magistratura no Tribunal da Relação do Porto originado qualquer alargamento do âmbito do recurso;
2º - A norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 não viola as garantias de defesa do arguido nem os princípios do acusatório, do contraditório e da 'igualdade de armas' ou qualquer outro princípio ou norma constitucionais;
3º - Acresce que, no presente caso, o parecer emitido ao abrigo da questionada norma foi notificado ao recorrente, que lhe respondeu.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão da inconstitucionalidade do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929.
É o que vai fazer-se.
II. Fundamentos:
6. O artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 preceitua como segue: Os recursos, antes de irem aos juízes que têm que os julgar, irão com vista ao Ministério Público, se a não tiver tido antes.
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, a propósito da questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, tendo por objecto o artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, afirmou:
Assim, pronunciando-se sobre estas duas questões [uma dessas questões respeitava, justamente, à questão da verificação de três crimes de abandono de sinistrado, e não de apenas dois, como julgara a 1ª instância], sem alterar a argumentação do seu colega na 1ª instância, o Sr. Procurador na Relação, no seu parecer de fls. 219 e seguintes, limitou-se a cumprir o preceito do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, preceito que, quando assim interpretado e assim cumprido, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, como não só o reconheceu este Supremo como o entendeu também o Tribunal Constitucional [...].
7. A norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929 já foi objecto de várias pronúncias deste Tribunal: no Acórdão nº 150/87
(Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1987), o Tribunal teve-o por inconstitucional; nos Acórdãos nºs 398/89, 496/89, 495/89, 350/91 e 356/91
(Diário da República, II série, de 14 de Setembro de 1989, 1 de Fevereiro de
1990, 28 de Janeiro de 1991, 3 de Fevereiro de 1991 e 8 de Janeiro de 1992), interpretou a norma em conformidade com a Constituição e, assim, não a julgou inconstitucional.
Escreveu-se, em conclusão, no Acórdão nº 398/89:
Não é inconstitucional a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929, interpretada no sentido de que, quando os recursos lhe vão com vista, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto, com um dos seguintes limites: não lhe ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, quando isso aconteça, ser dada aos réus a possibilidade de responderem.
Tal se concluía depois de se ter escrito, a dado passo:
Ora, não assumindo o Ministério Público no processo penal uma pura posição de parte , antes devendo a sua actuação pautar-se por critérios de estrita legalidade e objectividade, não poderá considerar-se inconstitucional uma norma como a do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, que manda que os recursos vão com vista ao Ministério Público, ainda que tal norma seja interpretada - como deve ser - no sentido de que o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto. Ponto é que - e assim se deve também interpretar a norma - os réus sejam admitidos a responder, quando o Ministério Público, porventura, se pronuncie em sentido desfavorável a eles, ou se vede mesmo ao Ministério Público a possibilidade de se pronunciar nesse sentido.
No citado Acórdão nº 496/89 ponderou-se:
Há de certo que interpretar essa norma em conformidade com a Constituição, mas para tal exigência ficar satisfeita não é necessário [...] que se exclua toda e qualquer possibilidade de o Ministério Público, na vista a que a mesma norma se reporta, se pronunciar sobre o mérito do recurso penal: basta que o faça com qualquer dos limites atrás indicados, a saber (e recordando-os): o de não emitir parecer que possa agravar a posição dos réus, ou então, e, quando tal aconteça, o de ser concedida aos réus a possibilidade de resposta.
8. Do citado Acórdão nº 350/91 - que julgou que o artigo
664º não era inconstitucional, quando interpretado 'no sentido de que, quando os recursos lhe vão com vista, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o respectivo objecto com um dos seguintes limites: não lhe ser consentido emitir parecer que possa agravar a posição dos réus ou, quando isso aconteça, ser dada aos réus a possibilidade de responderem' - foi interposto recurso para o Plenário, ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento em que a questão de constitucionalidade, que aí se julgou, foi decidida em sentido divergente da decisão constante do Acórdão nº 150/87, que - recorda-se - julgou aquele artigo 664º inconstitucional, por violação do artigo
32º, nºs 1 e 5, da Constituição.
O Tribunal Constitucional, em sessão plenária, pelo Acórdão nº 150/93, de 2 de Fevereiro de 1993 (publicado no Diário da República, II série, de 29 de Março de 1993), conclui 'pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem'.
9. É esta jurisprudência que aqui se adopta.
Frisou-se neste Acórdão nº 150/93 que, 'para assegurar as
'garantias de defesa' constantes do artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição, basta que, após o parecer do Ministério Público, o réu tenha a possibilidade de responder'. E mais : 'a resposta do réu só se justifica [...], quando o Ministério Público se pronuncie em termos de agravar a sua posição, e não sempre que o Ministério Público se pronuncie, sejam quais forem os termos em que o faça'.
Prosseguindo, então.
10. Os nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição - que, segundo o recorrente, são violados pelo artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 - dispõem como segue:
Artigo 32º
1. O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Segundo o recorrente, a inconstitucionalidade do artigo
664º existe, toda a vez que este for interpretado 'por forma a permitir ao Ministério Público junto da Relação alargar o âmbito do recurso interposto na primeira instância também pelo Ministério Público' (como, segundo ele, sucedeu no caso), 'se desse alargamento pudesse resultar [...] o agravamento da pena do arguido', como, na hipótese, aconteceu (cf. conclusão 8ª).
É que - diz -, não dispondo o arguido de idêntica possibilidade, fica ele colocado 'numa posição de desigualdade e inferioridade relativamente ao Ministério Público, independentemente de lhe ser ou não assegurado o direito de resposta e, portanto, o exercício do contraditório' (cf. conclusão 9ª).
Ora - acrescenta -, a igualdade de armas processuais entre a acusação e a defesa é exigida e pressuposta pelo princípio do acusatório, que
'surge, assim, claramente ofendido em prejuízo do arguido' (cf. conclusão 7ª).
O recorrente (para concluir que o acórdão recorrido adoptou uma interpretação inconstitucional do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929) parte, pois, do pressuposto de que o Ministério Público junto da Relação, no parecer que emitiu quando os autos lhe foram com vista, alargou o
âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público na 1ª instância - recte, parte do pressuposto de que aquele Magistrado foi quem suscitou, pela primeira vez no recurso, 'o problema do número de crimes integradores do concurso',
'propondo a agravação da pena por essa via' (cf. conclusão 1ª, 2ª e 3ª). E mais: entende que a constitucionalidade do artigo 664º do Código de Processo Penal de
1929 se não salva dando ao arguido a possibilidade de responder: 'a questão
[...] - diz - é anterior a essa e de substância completamente diferente' (cf. conclusões 10ª a 12ª).
Ora, é óbvio que o recorrente não tem razão nestes pontos, como, de resto, o Supremo Tribunal de Justiça já assinalou quanto ao primeiro deles, ao escrever:
[...] o alargamento que teve lugar quanto à agravação das penas não o foi por via do parecer emitido à sombra daquele preceito [refere-se ao artigo 664º sub iudicio] mas, sim, em razão do disposto no artigo 667º, § 1º, nº 2, do mesmo Código, que estabelece que a proibição da 'reformatio in pejus' cessa quando o representante do Ministério Público junto do tribunal superior, no visto inicial do processo, pede a agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que será notificado, como o foi, o réu, para resposta no prazo de 8 dias. E foi isto o que aconteceu e tanto que o réu respondeu ao parecer, como se alcança de fls. 222. Por outro lado, a revogação da suspensão da pena e a verificação de três crimes de abandono, e não de dois, como havia sido julgado na 1ª instância, foram pedidos expressamente no recurso do Ministério Público para a Relação - vide conclusões I,II, e III da respectiva minuta de recurso.
O Ministério Público, com efeito, ao recorrer para a Relação - para além de ter começado por assinalar que um dos dois 'pontos de discórdia com a posição assumida pelo douto tribunal colectivo no acórdão condenatório' era a 'qualificação do abandono dos dois peões sinistrados (B. e D.) com a primeira colisão, como um único crime de abandono de sinistrado' -, a dado passo escreveu:
Com o abandono de dois sinistrados provocados pelo mesmo e único acidente, existe pois o preenchimento efectivo de dois crimes de abandono de sinistrados do artigo 60º, nº 1, al. a), do CE, por ter sido preenchido pelo agente duas vezes o mesmo tipo de crime.
E ainda: Ao considerar o abandono daquelas duas vítimas como um único crime o Tribunal 'a quo' violou o artigo 30º do C. Penal, pelo que o acórdão deverá ser revogado numa parte.
E, por último, nas conclusões, disse: I. a). O abandono sem socorro de duas vítimas (ainda que causadas pela mesma colisão), vítimas essas com individualidade própria, protegidas cada uma de per si, traduz-se no desprezo pela vida e integridade física de duas pessoas distintas, pelo que
b). a pluralidade destas não é elemento constitutivo do art. 60º, nº 1, al. a) do C. Est.
c). O réu ao preencher efectivamente o mesmo tipo de crime praticou dois crimes de abandono de sinistrado - art. 30º do C. Penal.
[..] III. O réu praticou um crime de homicídio involuntário com culpa grave seguido de três crimes de abandono de sinistrados.
Por conseguinte , o Ministério Público na Relação, no parecer que emitiu ao abrigo do disposto no artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, quanto ao número de crimes de abandono de sinistrado, limitou-se a secundar a posição que o Magistrado recorrente (o da 1ª instância) tinha assumido na minuta do recurso, em nada 'alargando' o âmbito deste. Depois, se é certo que, nesse parecer, pediu a agravação da pena, verdade é também que o arguido foi notificado para responder, o que fez, como se disse atrás.
O artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, interpretado (e utilizado) como foi nos presentes autos, não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1993
Messias Bento Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa