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Proc. nº 378/90 Plenário Rel. Cons. ANTÓNIO VITORINO
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I
1. O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea d), do nº 2, do artº 280º da Constituição, e do disposto no nº 1, do artº 51º, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, requereu ao Tribunal Constitucional, em 27 de Dezembro de 1990, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 2, do artº 27º, do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março.
O requerente entende que a norma em causa dispõe sobre matéria relativa à competência do Tribunal de Contas, a qual se inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por dizer respeito a um Tribunal [ artº 168º, nº 1, alínea q) da Lei Fundamental] e que o Governo, ao emitir o aludido Decreto-Lei desprovido da necessária credencial parlamentar, estaria a violar aquele normativo constitucional.
2. Notificado para responder àquele pedido, nos termos dos artºs 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro ofereceu o mérito dos autos, tendo junto dois documentos à resposta ( dois ofícios do Presidente do Tribunal de Contas, o primeiro, de 5 de Janeiro de 1990 dirigido ao Secretário de Estado do Orçamento e o segundo, de 18 de Janeiro do mesmo ano, dirigido ao Ministro das Finanças, ambos atinentes à elaboração do Decreto-Lei de execução orçamental referente ao ano de 1990 ).
II
1. O Provedor de Justiça fundamenta o seu pedido no contraste existente entre a norma impugnada e o disposto na Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, lei esta que aprovou a Reforma do Tribunal de Contas.
Invoca o requerente que a Lei nº 86/89, na alínea f), do nº 2, do seu artº
1, veio sujeitar à fiscalização prévia do Tribunal de Contas todos os contratos celebrados pelas autarquias locais e associações e federações de municípios.
Contudo, o mesmo diploma, no seu artº 13º, nº 3, veio estabelecer que ' só devem ser remetidos ao visto do Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia, os contratos celebrados pelas autarquias locais, federações e associações de municípios que excedam um valor superior a um montante a definir por lei'.
Concretizando a previsão deste artº 13º, o Governo, através do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março (que executa o Orçamento do Estado para o ano de
1990) veio dispôr, no nº 1 do seu artº 27º, que ' os montantes a que se referem os nºs 1, alínea c), e 3 do artigo 13º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, são fixados, respectivamente, em 3500 vezes e 200 vezes o montante correspondente ao
índice 100 da escala indiciária para a carreira de regime geral da função pública, sendo o valor final arredondado para a centena de contos imediatamente superior'. Sem embargo, no nº 2 do mesmo artigo, dispôs-se que ' o limite acima fixado para o nº 3 do artº 13º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, não se aplica aos contratos cujo objecto seja o exercício de funções ou prestação de serviços, por parte de entidades individuais, que estão sempre sujeitos a fiscalização prévia, qualquer que seja o seu valor', estatuição esta cuja constitucionalidade
é questionada pelo Provedor de Justiça.
2. Entende o requerente que a norma em crise afronta a do nº 3 do artº 13º da Lei nº 86/89, na medida em que esta faz depender a sujeição a fiscalização prévia, em relação a quaisquer contratos celebrados pelas aludidas entidades, do facto de eles excederem ' um valor superior a um montante a definir por lei '.
Ora, refere o Provedor de Justiça, ' aquele nº 2 do artº 27º, reportando-se aos contratos cujo objecto seja o exercício de funções ou a prestação de serviços, impõe a sujeição a fiscalização prévia de todos eles, seja qual for o seu montante'.
Desta forma teria o Governo legislado sobre matéria da competência do Tribunal de Contas, quer porque o artº 13º da Lei nº 86/89 se insere no Capítulo II deste diploma, subordinado a essa epígrafe ('Competência'), quer porque da alínea c) do artº 8º da mesma Lei ' flui que aquilo que tenha a ver com a fiscalização prévia da legalidade e cobertura orçamental dos documentos geradores de despesa ou representativos de responsabilidades financeiras directas ou indirectas para as entidades referidas na alínea f) do nº 2 do artº
1º releva da competência do Tribunal '.
Com efeito, invoca o requerente, o nº 3 do artº 13º teve em vista 'obviar a que o Tribunal de Contas viesse a ser invadido por bagatelas financeiras, não justificativas da sua intervenção'. Por isso, o legislador impôs a fixação de um limite mínimo ( 'só devem ser remetidos ao Tribunal de Contas...'). Ou seja, através de uma norma injuntiva, criou como que uma alçada.'
Depois de abordar o sentido da remissão constante da parte final do nº 3 do aludido artº 13º ( se para uma lei formal, se para uma ' lei em sentido amplo, abrangendo um Decreto-Lei do Governo' ), que, aliás, entende não relevar decisivamente tomar partido quanto a tal dualidade de soluções, o requerente conclui que ' em qualquer caso, terá de ser fixado um limite mínimo, que apenas quando ultrapassado fará ingressar a situação na moldura da competência do Tribunal de Contas. Esta apenas começa quando finda tal limite. Dispensando esse limite mínimo, o Decreto-Lei nº 105-A/90 alterou o sistema de competência do Tribunal de Contas'.
Ao considerar o Tribunal de Contas como incluído na categoria dos tribunais
[ artº 211º, nº 1, alínea c) ], a Constituição impõe que a sua organização e competência se enquadrem na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que o nº 2 do artº 27º do Decreto-Lei sofre de inconstitucionalidade, ' pelo menos orgânica', já que na Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 1990) ' não se encontra qualquer suporte que legitime essa ingerência '.
3. Acrescenta ainda o Provedor de Justiça que se poderia obtemperar que
'pela lógica das coisas, e por aplicação do artº 16º da Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro (Lei de Enquadramento do O.E.), esse Decreto-Lei se aplicará apenas ao ano económico de 1990,(...) mas o certo é que, quer a Lei do Orçamento, quer o Decreto-Lei de execução, contém as características de generalidade e de inovação próprias de quaisquer outras normas jurídicas, nem tendo o preceito agora arguido de inconstitucionalidade directamente a ver com matéria orçamental - como, aliás, no caso, advem do confronto entre o Decreto-Lei nº 105-A/90 e a Lei nº 101/89 '.
Termos estes em que o requerente entende que deve ser declarada a inconstitucionalidade da aludida norma, com força obrigatória geral.
4. O pedido do Provedor de Justiça assenta, como já se disse, na Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, que aprovou a reforma do Tribunal de Contas, a qual determina , no seu artigo 1º (jurisdição), nº 2, alínea f), que estão sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas' as autarquias locais e as associações e federações de municípios'.
Em sede de 'competências' do Tribunal, o mesmo diploma, na seu artigo 8º, alínea c), dispõe que compete ao Tribunal de Contas 'fiscalizar previamente a legalidade e a cobertura orçamental dos documentos geradores de despesa ou representativos de responsabilidades financeiras directas ou indirectas para as entidades referidas nas alíneas a), b), c), e) e f) do nº 2 do artigo 1º'. Logo este normativo compreende a fiscalização prévia dos aludidos documentos das autarquias locais e das associações e federações de municípios.
No artigo 12º da Lei nº 86/89 estatui-se que a fiscalização prévia
'tem por fim verificar se os diplomas, despachos, contratos e outros documentos a ela sujeitos estão conformes com as leis em vigor e se os respectivos encargos têm cabimento em verba orçamental própria' (nº ), exercendo-se tal fiscalização prévia através do visto e da declaração de conformidade (nº 2).
Definindo o âmbito da aludida fiscalização prévia, o artigo 13º da Lei nº 86/89 dispõe que 'devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia' (corpo do nº 1) os 'contratos, de qualquer natureza, quando celebrados pelas entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal' [alínea b) do nº 1], 'as minutas dos contratos de valor igual ou superior a um montante a fixar por decreto-lei' [alínea c) do mesmo nº ] e ainda 'os diplomas e despachos relativos às admissões de pessoal não vinculado à função pública, bem como todas as admissões em categorias de ingresso na administração central, regional e local' [alínea e) do nº 1] bem como ' os diplomas e despachos relativos a promoções, progressões, reclassificações e transições exclusivamente resultantes da reestruturação de serviços da administração central, regional e local'
[alínea f) do nº 1].
No nº 3 do mesmo artigo 13º, a Lei em causa dispõe que ' só devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia, os contratos celebrados pelas autarquias locais, federações e associações de municípios que excedam um valor superior a um montante a definir por lei'.
5. Atento este enquadramento, desde logo importa sublinhar que o problema de constitucionalidade colocado pelo Provedor de Justiça exige a dilucidação prévia da questão de saber se a norma em causa ainda deverá ser objecto do pretendido controlo de constitucionalidade. É que, tratando-se de norma integrada no diploma governamental que executou o Orçamento do Estado para o ano económico de 1990, evidente se torna que o diploma onde se insere já não se encontra hoje em vigor, porquanto entrementes foram aprovadas três leis orçamentais, correspondentes aos anos económicos de 1991, 1992 e 1993, bem como os respectivos Decretos-Leis de execução orçamental.
Neste contexto, a determinação da sucessão legislativa verificada importará para efeitos do apuramento da subsistência de interesse processual no conhecimento do pedido formulado.
É o que se passará de imediato a fazer.
6. Num primeiro momento importa verificar que a norma impugnada (o nº 2 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março) não encontra paralelo nos Decretos-Leis de execução orçamental dos anos subsequentes.
Com efeito, o Decreto-Lei nº 372-A/91, de 8 de Fevereiro, que executa o Orçamento do Estado para 1991, no seu artigo 28º, reproduz ipsis verbis a norma do nº 1 do aludido artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90, sendo total o silêncio quanto à matéria objecto do seu nº 2.
De igual forma, o Decreto-Lei nº 62/92, de 21 de Abril, que executa o Orçamento do Estado para 1992, no seu artigo 28º, reproduz sem alterações a norma do nº 1 daquele artigo 27º, nada dispondo quanto à matéria do nº 2 deste citado preceito do Decreto-Lei nº 105-A/90.
Também o Decreto-Lei nº 83/93, de 18 de Março, diploma de execução do Orçamento do Estado para 1993, se limita no seu artigo 30º a reproduzir sem alterações o nº 1 do aludido preceito do Decreto-Lei nº 105-A/90, nada dispondo quanto à matéria do seu nº 2.
Neste contexto, resulta que se nenhum dos preceitos dos subsequentes Decretos-Leis de execução orçamental reedita a norma do nº 2 do artigo 27º, também em nenhum deles se dispõe expressamente quanto à sua eventual revogação. De igual modo as leis orçamentais correspondentes aos anos económicos de 1991,
1992, e 1993 (Leis nº 65/90, de 28 de Dezembro, nº 2/92, de 9 de Março e nº
30-C/92, de 28 de Dezembro, respectivamente) nada dispõem sobre a matéria em causa.
Significa isto que o preceito em causa se mantém em vigor em virtude da ausência de revogação expressa e por a norma revestir as características 'de generalidade e de inovação próprias de quaisquer outras normas jurídicas', como refere o Provedor de Justiça no seu pedido ?
A resposta a esta questão há-de ser, contudo, negativa.
7. A norma do nº 2 do artigo 27º neste momento já não se pode ter como vigente, e isto por duas razões fundamentais.
Por um lado, porque se insere num diploma legal com uma vocação limitada no tempo: é que os Decretos-Leis de execução do Orçamento do Estado estão, por natureza, vinculados à execução (e vigência) de uma dada lei orçamental referente a um certo ano económico, conforme resulta do disposto no artigo 16º da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, a Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro (artigo 16º) à data do pedido do Provedor, hoje a Lei nº 6/91, de 20 de Fevereiro (artigo 16º). A execução de um Orçamento, pela própria natureza das coisas, esgota-se com o período de vigência desse mesmo Orçamento.
Por outro lado, em virtude de os subsequentes Decretos-Leis de execução orçamental reproduzirem ipsis verbis (ou, se se preferir, 'renovarem' sem alteração) a norma do nº 1 do artigo 27º e nada disporem quanto ao nº 2 reforça a ideia de que se trata de normas de execução orçamental, as quais, ainda quando não se revestem de natureza inovatória face ao quadro normativo anterior, carecem de reedição em função de cada Orçamento que visam executar.
Logo, o nº 2 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90 deve ter-se por caducado desde o termo do ano económico de 1990.
A esta conclusão não obsta a natureza da própria norma, que efectivamente não se pode ter rigorosamente como de mera execução orçamental. Com efeito, à regra impugnada poder-se-ia imputar, de alguma forma, a vocação de
'completar' (senão mesmo conformar) o âmbito de aplicação do disposto na Lei nº
86/89, como parece apontar o ofício dirigido pelo Presidente do Tribunal de Contas ao Ministro das Finanças em 19 de Janeiro de 1990, junto aos autos na resposta do Primeiro Ministro, onde se pode ler que ' a 1ª Secção deste Tribunal, reunida para resolver dúvidas que ao longo dos primeiros quinze dias de aplicação da Lei nº 86/89 foram surgindo em matéria de fiscalização prévia, chegou à conclusão que a proposta de artigo, para fixar os montantes referidos no artigo 13º da Lei nº 86/89, tinha como consequência que os contratos relativos a pessoal das autarquias locais nunca estariam sujeitos a 'visto'. Para obviar a tal situação a forma preferível do artigo a inserir no decreto-lei sobre a execução do Orçamento do Estado seria a seguinte [segue-se o texto que viria a ser acolhido no artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90]'.
Seja como for, mesmo que a norma em causa fosse interpretada como tendo uma 'vocação integrativa' da Lei nº 86/89 para o ano económico de 1990, ponto incontestável é que o legislador abandonou tal solução, pelo menos nesta sede, nos diplomas atinentes aos anos económicos subsequentes, uma vez que não procedeu à sua reedição nos Decretos-Leis de execução dos Orçamentos seguintes.
7. Ocorrendo em relação à norma impugnada uma causa de caducidade, pelas razões acabadas de aduzir, tal facto, contudo, por si só, não determina que o Tribunal a deva ter por isenta de controlo de constitucionalidade.
Com efeito, como se escreveu no Acórdão nº 135/90 (publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1990), 'tem sido jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional (cfr., por último, Acórdão nº 238/88 e Acórdão nº 415/89, publicados no Diário da República, 2ª Série, de 21 de Dezembro de 1988 e de 15 de Setembro de 1989, respectivamente) que a revogação de uma norma jurídica nem faz cessar, ipso facto, a possibilidade de fiscalização abstracta da sua constitucionalidade, nem faz desaparecer necessariamente, ao menos, a utilidade dessa fiscalização: atenta a eficácia ex tunc de uma eventual declaração de inconstitucionalidade (artigo
281º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), basta que tal norma, enquanto esteve em vigor, haja produzido efeitos e que estes se mantenham ao tempo em que o Tribunal vai proferir a decisão para que esta possa ter sentido e possa revestir--se de utilidade.' Esta jurisprudência, construída na óptica da ulterior revogação dos preceitos impugnados não pode deixar de se ter por aplicável, por identidade de razões, ao caso vertente em que operou uma causa de caducidade do preceito em crise.
Sem embargo, também este Tribunal tem concluído que, ocorrendo uma situação em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, se justifica plenamente que se conclua pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito (cfr., Acórdãos nº 319/89, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Junho de 1989, nº 238/88 já citado, nº 73/90, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de
1990 e nº 135/90 também já citado).
Ora, verifica-se neste caso uma dessas especiais situações em que razões de segurança jurídica sempre imporiam que o Tribunal Constitucional, na eventualidade de concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada, se socorresse da faculdade conferida pelo nº 4 do artigo 282º da Constituição, em termos de fixar os efeitos dessa inconstitucionalidade com um alcance mais restrito do que o do regime geral previsto no nº 1 do mesmo artigo da Lei Fundamental.
Com efeito, ponderosas razões de segurança jurídica sempre aconselhariam a que a declaração de inconstitucionalidade - a verificar-se - deixasse imprejudicados os actos do Tribunal de Contas praticados durante a vigência do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, razão pela qual se entende que neste momento não subsiste interesse útil no conhecimento do pedido formulado pelo Provedor de Justiça.
III
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de apreciação da constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, por inutilidade superveniente do mesmo pedido.
Lisboa, 23 de Junho de 1993
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
Maria da Assunção Esteves
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa