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Proc. nº 345/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. foi julgado no Tribunal Judicial do Funchal (3º Juízo), em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, acusado da prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 300º, nº 2, alínea a), do Código Penal de 1982. O tribunal absolveu-o relativamente àquela acusação-crime; no entanto, considerando o disposto nos artigos 12º do Decreto-Lei nº 605/75, 483º do Código Civil, e demais disposições legais aplicáveis, condenou-o a pagar ao queixoso B. a quantia de 3.500.000$00, acrescida de juros bancários.
O arguido recorreu da condenação civil, primeiro para o Tribunal da Relação de Lisboa, e depois para o Supremo Tribunal de Justiça, mas em ambos os casos lhe foi negado provimento ao recurso, por acórdãos de 28 de Novembro de
1990 e de 18 de Abril de 1991, respectivamente. Recorre agora para o Tribunal Constitucional desta última decisão, invocando a inconstitucionalidade do artigo
12º daquele Decreto-Lei nº 605/75.
Nas alegações aqui apresentadas, considera inconstitucional a norma em causa, por ofensa do princípio da igualdade, constante do artigo 13º, nº 1, da Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manutenção da decisão recorrida, por em seu entender não se verificar a apontada inconstitucionalidade.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. É objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 12º do Decreto-Lei nº 605/75, cujo teor é o seguinte:
Nos casos de absolvição da acusação-crime, o juiz condenará o réu em indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco.
Nestes casos, aplicar-se-á o disposto no artigo 34º e seus parágrafos do Cód. Proc. Penal, com as necessárias adaptações.
O artigo 34º do Código de Processo Penal (de
1929) tinha a seguinte redacção:
O juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida.
§1º- Quando a lei conceder a reparação civil a outras pessoas, a estas será arbitrada a respectiva indemnização.
§2º- O quantitativo da indemnização será determinado segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor.
§3º- As pessoas a quem for devida a indemnização poderão requerer, antes de proferida sentença final em primeira instância, que ela se liquide em execução de sentença e, neste caso, se procederá à liquidação e execução perante o tribunal civil, servindo de título exequível a sentença penal.
4º Se estiver pendente ou tiver sido julgada no tribunal civil acção por perdas e danos, nos casos em que a lei o permita, a reparação civil não será fixada na acção penal.
3. Alega o recorrente:
O artigo 12º do Decreto-Lei nº 605/75, revogado por força do disposto no artigo 2º, nº 2, alínea g), do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, prescrevia que no caso de absolvição da acusação-crime, deveria o juiz, mesmo assim, condenar o réu em indemnização quando se provasse a prática de ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco.
E em tais casos, segundo a norma em referência, aplicar-se-ia o artigo 34º e seus §§ do Código de Processo Penal de 1929, com as necessárias adaptações.
Portanto, mesmo que o réu fosse absolvido do ilícito criminal por que vinha acusado, o juiz devia arbitrar ao ofendido uma quantia a título de reparação por perdas e danos, ainda que não tivesse sido requerida, quando se provasse que incorrera em ilícito civil ou em responsabilidade fundada no risco.
E o montante da indemnização seria fixado segundo o prudente arbítrio do julgador, que deveria atender à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica do ofendido e do infractor e à sua condição social (C.P.P de 1929, art. 34º, 2º).
E daí uma situação de flagrante desigualdade relativamente às indemnizações fixadas de harmonia com as normas do artigo 562º e seguintes do Código Civil, com violação do princípio consagrado no artigo
13º, nº 1, da Constituição. E prossegue:
Mas há mais: no processo civil, a indemnização deve ser pedida, sabido como é que o juiz só pode condenar no que for pedido, conforme resulta do disposto nos artigos 661º, nº 1, e 668º, nº 1, alínea e), do Código respectivo, e conforme a regra de que ne eat judex ultra petita partium, enquanto que no processo penal, sendo embora o réu absolvido da acusação, mas provando-se que incorrera em ilícito civil, seria sempre arbitrada uma indemnização ao lesado, ainda que não pedida, conforme as disposições combinadas do artigo 12º do Decreto-Lei nº
605/75 e do artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929.
E daí, outra situação de diferença de tratamento, também contrária ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
4. Examinemos estas razões.
Liminarmente, dir-se-á que a questão aqui suscitada e os fundamentos que o recorrente invoca já foram objecto de exaustiva análise no Acórdão nº 187/90, (Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1990). A conclusão a que aí se chegou foi a de que a norma em causa não é inconstitucional, e é isso o que aqui cabe reafirmar, por não terem sido aduzidas novos argumentos que levem a alterá-la.
Desde logo, e quanto ao primeiro fundamento de inconstitucionalidade, o recorrente labora num equívoco: o de que a decisão recorrida terá aplicado, por remissão do artigo 12º, a norma do 2º do artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929, com o sentido que expõe.
Ora, não foi assim. Esta norma, entendida como mandando determinar a indemnização cível segundo 'o prudente arbítrio do julgador', e não segundo as regras gerais da responsabilidade civil, não foi aplicada pelo tribunal de primeira instância, como não o foi pela Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça. Pelo contrário, a indemnização foi fixada segundo o regime pertinente da lei civil, e só segundo este, como resulta claramente do acórdão do Tribunal Judicial do Funchal e foi reafirmado pela Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Sabe-se que foram em tempos levantadas dúvidas na doutrina sobre a natureza da indemnização de perdas e danos arbitrada em processo penal, propendendo uma parte da doutrina a considerá-la um efeito penal da condenação (v. Figueiredo Dias, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, Estudos in Memoriam do Prof. Dr. Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito, 1966, págs. 110 e segs.), e propendendo outra parte, maioritária, a considerar que ela tinha natureza meramente civil, inclusive no que se refere aos critérios da sua determinação (v. M. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal I, Lisboa, 1955, pág. 141, e A. Vaz Serra, Tribunal competente para apreciação da responsabilidade civil conexa com a criminal - Valor, no juízo civil, do caso julgado criminal, Boletim do Ministério da Justiça, 91, 1959, pág. 196). Para os autores que seguiam esta orientação, era lógico concluir que o § 2º do artigo 34º do C.P.P. de 1929 deixou de vigorar a partir da entrada em vigor do Código Civil de 1966, pois o artigo 3º do respectivo decreto-lei preambular, o Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de Novembro de 1966, revogou toda a legislação civil relativa às matérias abrangidas nesse Código e aí não ressalvadas (Luís Nunes de Almeida, Natureza da reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, Revista da Ordem dos Advogados, 29,
1969, págs. 25 e 26).
A partir da entrada em vigor do referido Decreto-Lei nº 605/75, a primeira corrente perdeu apoio no próprio plano legislativo - pois o artigo 12º deste diploma estendia, como vimos, a indemnização a casos em que não tinha havido sequer condenação -, acabando o assento do S.T.J. de 28 de Janeiro de 1976, na sua fundamentação, por tomar posição inequívoca em favor da segunda (v. B.M.J. nº 253, 1976, págs. 115 e
116).
O artigo 12º do Decreto-Lei nº 605/75 remetia expressamente para o artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929; mas impunha também que se fizessem as 'necessárias adaptações', e entre estas contava-se forçosamente a adopção dos critérios da lei civil - pois, tendo o arguido sido absolvido, já não se podia atender 'à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor', conforme dispunha o § 2º do artigo 34º do C.P.P. de
1929.
No entanto, e se dúvidas ainda houvesse, elas foram eliminadas com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, que no seu artigo 128º determina expressamente que 'a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil'.
Portanto, a decisão recorrida não aplicou a norma do § 2º do artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929 (entendida com o sentido invocado pelo recorrente), mas sim os critérios gerais do Código Civil, pelo que não se pode verificar esta invocada inconstitucionalidade do artigo 12º do Decreto-Lei nº 605/75.
5. Mas quanto ao segundo fundamento, também o recurso é improcedente.
É certo que em processo civil vigora o princípio dispositivo, não podendo o tribunal condenar oficiosamente em facto diverso ou em quantidade superior à pedida, ao passo que da conjugação deste artigo 12º do Decreto-Lei nº 605/75 com o artigo 34º do C.P.P. de 1929 resulta a possibilidade de, em caso de absolvição penal, se arbitrar ao queixoso uma indemnização por perdas e danos, ainda que não tenha sido pedida.
Trata-se de regimes processuais diversificados. Simplesmente, daí não resulta qualquer ofensa do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
Conforme desenvolvidamente se expôs no citado Acórdão nº 187/90, e vem sendo sistematicamente reafirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional aí citada, o princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções. Proíbe-lhe, sim, que estabeleça distinções arbitrárias: o princípio da igualdade tem como critério delimitador a proibição do arbítrio, isto é, a exigência de um fundamento material bastante.
Ora, forçoso é dizer que a apontada diferença de regimes processuais não se mostra arbitrária nem injustificada: injustificado seria que, face a uma prova obtida com o rigor acrescido que caracteriza o processo penal, e perante todos os elementos da responsabilidade civil apurados no caso concreto, o legislador sujeitasse as partes a um novo excurso processual e às maiores contingências probatórias que implica a tramitação do processo civil. Os princípios da economia processual e da justiça material levam aqui a melhor sobre o princípio do dispositivo, daí resultando uma melhor justiça no caso concreto. E, de qualquer modo, a norma em causa aplica-se em todos os casos de absolvição em processo penal, sem excepção, seja qual for a acusação-crime deduzida.
Portanto, as aludidas diferenças processuais
(prevalência do princípio dispositivo num caso, prevalência dos princípios da verdade material e da economia processual no outro) não implicam violação do princípio constitucional da igualdade, antes se traduzindo em melhores vias de acesso à justiça.
III - DECISÃO
Assim, e pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 29 de Junho de 1993
Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa