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Proc. nº 237/91
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos de recurso, após ter sido proferido acórdão a negar provimento ao mesmo e depois de as partes terem sido notificadas deste, veio a recorrente A. apresentar requerimento (a fls. 292 a
294 dos autos), a pedir a aclaração desse Acórdão nº 346/93, afirmando correr o risco 'de ver uma vez mais concluir-se das suas dúvidas a clareza da decisão' e sustentando que, 'quando a Constituição se torna ornamento da retórica política, e tantas vezes é adiada por uma jurisprudência de cariz conservador e formalista, que, por razões de crise consabidas, privilegia o quanto se julga e não o como se julga, a função de legitimação constitucional do direito que os tribunais podem aplicar quando julgam em nome do povo assume a sua plenitude como garantia dos cidadãos'.
Formulam-se nesse requerimento várias interrogações sobre o teor do acórdão aclarando:
- Após se referir no acórdão que a natureza da sublocação como subcontrato permaneceu inalterada ao longo das sucessivas leis em matéria de arrendamento após a revolução de 25 de Abril de 1974, ter-se-ia pretendido dizer 'que com o direito de preferência ao novo arrendamento e o direito ao novo arrendamento, criados após a Constituição de 1976, não se ultrapassou a concepção de subcontrato da Câmara Corporativa, transcrita a fls. 10 do acórdão?'
- Na sequência da referência no acórdão à jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de direito à habitação, nomeadamente ao Acórdão nº
101/92, quais as limitações intoleráveis e desproporcionadas' verificadas no caso sub judice 'que não se verifiquem nos referidos diplomas que regulam o direito do sublocatário ao novo arrendamento?
- Acerca da razão do carácter intolerável e desproporcionado das limitações ao direito de propriedade no caso de subarrendamento eficaz perante o senhorio, por que não se atendeu a que 'foi por acto de vontade do mesmo que se criou [n]o vínculo jurídico do artigo 1061º do CC?'.
- Relativamente ao disposto no art. 62º, nº 1, da Constituição, qual a razão por que não retira o 'acórdão qualquer ilação útil para a interpretação do artigo 1102º [do Código Civil], invocando para tal o imobilismo do legislador ordinário desde 1966?'
- Ao julgar-se legitimamente constitucional 'a norma do 1102º como foi interpretada pelas instâncias não se está precisamente a negar-se essa hipoteca social e a ditar a subordinação do direito à habitação ao direito à propriedade privada, contra o disposto no nº 2 do artigo 290º da Constituição (cfr. Jorge Miranda, Manual de Dto Constitucional, IV, pág. 37)?'
- Qual a interpretação que um declaratário normal faz do art. 1102º do Código Civil que seja coincidente com a que o acórdão da Relação de Lisboa objecto de recurso fez?
- A Constituição de 1976 nada trouxe de novo que imponha uma interpretação actualística do art. 1102º do Código Civil, de modo a conferir ao sublocatário um direito com a dimensão do art. 4º do Código de Processo Civil?
2. Ouvidos os recorridos sobre este pedido de aclaração, sustentaram que o acórdão aclarando é suficientemente claro, pelo que não carece de qualquer esclarecimento, sendo o pedido formulado pela recorrente impertinente, merecendo, por isso, indeferimento (a fls. 296).
II
3. Na tramitação dos recursos de constitucionalidade são aplicáveis subsidiariamente as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação (art. 69º da Lei do Tribunal Constitucional).
Por força de tal remissão, há-de atender-se ao disposto no art. 716º do Código de Processo Civil, pelo que são aplicáveis a esta instância de recurso as normas dos arts. 666º a 670º deste último diploma.
É, assim, lícito ao Tribunal Constitucional
'esclarecer dúvidas existentes na sentença' (art. 666º, nº 2, do Código de Processo Civil), ou seja, esclarecer 'alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha' (art. 669º, alínea a), do mesmo diploma).
Estamos, assim, no domínio da patologia da decisão judiciária, isto é, perante casos em que ocorrem vícios impropriamente ditos, meros defeitos materiais (cfr. F. Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Coimbra, 1985, pág. 846).
Importa, antes de tudo, situar com rigor o âmbito do pedido de aclaração. Recorrendo à lição da doutrina do processo civil, a decisão judicial 'é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz'. (J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol V, Coimbra, reimpressão 1981, pág. 151).
Não pode utilizar-se este meio processual 'para se obter, por via oblíqua, a modificação do julgado' (J. Alberto dos Reis, ob. cit, V, págs. 151-152).
4. Da leitura do pedido de aclaração, logo se alcança que a recorrente entendeu perfeitamente o teor do acórdão, considerou inteligível a fundamentação nele acolhida e não apontou qualquer passagem do mesmo que se prestasse a interpretações diferentes. Quer dizer, os vícios imputados ao acórdão (e decorrentes das respostas implicitamente tidas por correctas para as sucessivas interrogações formuladas pela requerente) não se situam no plano da materialidade textual (defeitos materiais, ambiguidades, passos ininteligíveis), mas no plano dos defeitos jurídicos, dos erros de interpretação das normas aplicadas que conduzem a um resultado injusto (errores in judicando, na terminologia do direito comum).
Na verdade, a recorrente imputa ao Tribunal Constitucional não ter valorado devidamente a consagração sucessiva de dois novos institutos (o direito de preferência a novo arrendamento, surgido no Decreto-Lei nº 420/76, de 28 de Maio; o direito a novo arrendamento regulado no Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro, mantido na legislação subsequente) e não ter interpretado a norma do art. 1102º do Código Civil à luz da legislação ordinária que tutela deste modo a posição do subarrendatário. Aponta, assim, um error in judicando ao Tribunal Constitucional, o que poderia constituir fundamento de recurso, se houvesse recurso da decisão do próprio Tribunal Constitucional.
Por outro lado, coloca ainda a recorrente questões técnicas ou dúvidas doutrinais ao Tribunal, pretendendo que este explique que limitações intoleráveis e desproporcionadas ocorrem no caso sub judicio, que se não verifiquem nos casos previstos nos diplomas que regulam o direito do sublocatário ao novo arrendamento. Bastará ler o passo que se acha a fls. 19 do acórdão aclarando, para se ver que a citação aí feita se refere a que não é exigível constitucionalmente que a realização do direito à habitação tenha de fazer-se à custa de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, embora também se reconheça mais à frente a liberdade de conformação do legislador, havendo credencial constitucional para que se consagrem soluções legislativas que impliquem uma 'hipoteca social' ao direito de propriedade de particulares (na folha 20 do mesmo acórdão).
Finalmente, as obscuridades ou ambiguidades sucessivamente apontadas constituem apenas críticas à solução perfilhada no acórdão, que nada têm a ver com a sua obscuridade, ininteligibilidade ou ambiguidade, mas se dirigem à fundamentação tida por errada ou constitucionalmente inadequada desse mesmo acórdão.
Está-se, pois, fora do plano de defeitos materiais,
'dos defeitos não jurídicos que a lei providencia para que sejam corrigidos: erros de escrita ou de cálculo, ambiguidades de expressão, omissões de palavras na estrutura de uma fase, lapsos na referência a artigos da lei, obscuridades da linguagem, etc. (Luso Soares, ob cit., pág. 845). Imputa-se ao acórdão alegadamente aclarando a sua desconformidade com a ordem jurídica e pretende-se, encapotadamente, obter, por via oblíqua, a modificação do julgado.
Não pode, pois, proceder nenhum dos pedidos de aclaração formulados pela requerente, recorrente nos autos.
III
5. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional indeferir o pedido de aclaração na sua totalidade, fixando-se a taxa de justiça, em 4 unidades de conta (quatro).
Lisboa, 30 de Junho de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida