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Processo nº 317/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do despacho liminar do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da comarca de Faro, de 19 de Abril de 1995, que, em processo de expropriação por utilidade pública remetido àquele Tribunal pela C.P. - Caminhos de Ferro Portugueses, EP, nos termos dos nºs 1 e 4 do artigo 50º do Código das Expropriações, declarou o mesmo Tribunal 'incompetente em razão da matéria para conhecer do mérito dos presentes autos determinando-se a sua remessa, após trânsito e baixas, ao Tribunal Administrativo de Círculo competente, nos termos da al. j) do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF' por entender serem 'inaplicáveis por inconstitucionais, face aos artigos
214º nº 3 e 113º nº 2 da Constituição, e nos termos do artigo 207º da Constituição, os artigos 37º, 50º, 51º nº 1, 52º nº 2 e 53º nº 2 do Decreto-Lei nº 438/91 de 9 de Novembro no tocante à atribuição de competência ao tribunal comum'.
Para o Mmº Juiz a quo, 'é aos Tribunais Administrativos que não aos judiciais que cabe a competência para exercer a função jurisdicional quando e onde lhe compita no tocante à relação jurídica de expropriação' e, por consequência, 'os artigos 37º, 39º nº 1, 42º nº 2, 50º, 51º nº 1, 52º nº 2, 53º nº 2 e 64º nº 2 do Decreto-Lei nº 438/91 de 9 de Novembro, infermam, a nosso ver, de inconstitucionalidade na medida em que, por via de legislação ordinária, atribuem aos tribunais comuns competências constitucionalmente reservadas aos tribunais administrativos nos termos do citado artigo 214º nº 3 da Constituição pelo que, nos termos do artigo 207º do mesmo diploma fundamental se não profere o despacho a que alude o artigo 50º do citado Decreto-Lei nº 438/91 de 9 de Novembro'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público recorrente:
'1º
A relação jurídica emergente da expropriação litigiosa reveste natureza híbrida, sendo necessário distinguir os aspectos que se situam no campo do direito administrativo - os referentes à declaração de utilidade pública, enquanto facto constitutivo de tal relação - e os que extravasam o campo do direito público, por se reportarem ao arbitramento da justa indemnização devida ao expropriado.
2º
Na verdade, tal indemnização surge como sucedâneo patrimonial, como decorrência jurídica da extinção de um direito (privado) de propriedade, sendo fixada segundo critérios que se prendem essencialmente com o valor real dos bens expropriados, visando compensar patrimonialmente o expropriado da perda daquele direito.
3º
A atribuição, pelas normas desaplicadas, de competência material aos tribunais judiciais relativamente ao processo de expropriação litigiosa, na fase que tem como objecto a fixação do valor global da indemnização, dirimindo o litígio existente entre expropriante e expropriado sobre tal matéria, é mero corolário da regra que subtrai à jurisdição administrativa o conhecimento das questões de natureza privada, em nada ofendendo, consequentemente, o disposto no nº 3 do artigo 214º da Constituição da República Portuguesa.'
3. Vistos os autos, cumpre decidir.
Talqualmente regista o Mmº Juiz a quo, este Tribunal Constitucional vem-se pronunciando no sentido de que o nº 3 do artigo 214º da Constituição consagra uma cláusula de reserva material da competência dos tribunais administrativos, atribuindo-lhes a dirimição dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Como se pode ler no acórdão nº 607/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 64, de 15 de Março de 1996, citando-se outros arestos do Tribunal Constitucional:
'A existência dos tribunais administrativos e fiscais - que era facultativa
('Podem existir tribunais administrativos e fiscais [...]', dispunha o nº 2 do artigo 212º, na redacção de 1982) -, após a revisão constitucional de 1989, passou a ser constitucionalmente obrigatória.
Aos tribunais administrativos compete, assim, a justiça administrativa, que o mesmo é dizer que lhes cabe o julgamento das acções e dos recursos destinados a dirimir os conflitos emergentes de relações jurídico-administrativas. Ou seja: a Constituição comete-lhes a resolução das controvérsias nascidas de relações jurídicas administrativas, dos litígios emergentes de relações jurídicas que sejam de direito administrativo (relações jurídicas administrativas públicas ou em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido)'.
Entendeu-se nesse aresto que não era necessário nele decidir a questão 'de saber se naquele artigo 214º, nº 3, se atribui aos tribunais administrativos uma reserva material absoluta de jurisdição, se, aí, apenas se consagram os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matérias administrativas'. Dir-se-á agora, porém, que, seja como for, em hipóteses como a destes autos, em que existe toda uma tradição jurídica e onde, além disso, concorrem razões que têm a ver com uma mais fácil defesa dos direitos, nada obsta se siga a solução legislativa de atribuir a outros tribunais - recte, os tribunais judiciais - a competência para julgamento de questões de direito administrativo (vejam-se os exemplos citados naquele acórdão nº 607/95).
Ora, a nossa tradição jurídica, desde a primeira lei sobre o processo expropriativo, a Lei de 23 de Julho de 1850, tem sido a de fazer intervir sempre o juiz comum para se decidir a matéria da indemnização (cfr. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, a propósito dos aspectos históricos do conceito de expropriação e ainda págs 154/155, António Pais de Sousa e Manuel Fernandes da Silva, Da Justa Indemnização nas Expropriações de Utilidade Pública, Porto, 1980, dando notícia, a págs. 27 e seguintes, da legislação portuguesa e das característica da sua evolução, e considerando aquela lei de 1850 'a trave- mestra e ponto obrigatório de referência de todo o direito legislado posteriormente sobre expropriação' e ainda João Peixoto de Almeida, Expropriações ... nos Municípios, Cadernos de Direito Administrativo, Braga,
1953).
Regista, a propósito, o Ministério Público, nas suas alegações: 'Bem se compreende, pois, que o processo de expropriação litigiosa - que tem como objecto a dirimição de um conflito entre expropriante e expropriado acerca da indemnização devida, pressupondo a 'falta de acordo sobre o valor global da indemnização', nos termos do artigo 37º do Código das Expropriações em vigor - deva decorrer perante os tribunais judiciais. Sendo, na realidade, a justa indemnização a conversão ou sucedâneo do direito de propriedade extinto em consequência da expropriação - e estando vedada à jurisdição administrativa a dirimição dos litígios relativos a direitos reais, de natureza privada - é perfeitamente compreensível que a lei lhes retire também competência para o arbitramento de tal indemnização, confiando-a aos tribunais comuns'.
Em síntese: sem se tomar posição quanto à consagração ou não aí de uma reserva material absoluta de jurisdição, o certo é que o sentido do nº 3 do artigo 214º da Constituição é o de que ele foi pensado para a fase declarativa da apreciação de acções e recursos administrativos, sendo este o
'núcleo caracterizador do modelo', na expressão de Vieira de Andrade (citado no acórdão já referido nº 607/95 e ainda nos acórdãos deste Tribunal Constitucional nºs 508/94 e 509/94, publicados no Diário da República, II Série, de 13 e 14 de Dezembro de 1994).
Entendeu, porém, o legislador que não são essas acções e recursos administrativos o modelo processual adequado à matéria em causa. Entendeu para tal, como mais indicados, os tribunais judiciais.
Essa decisão legislativa, consagrada nos artigos 37º, 50º,
51º nº 1, 52º nº 2 e 53º nº 2 do Decreto-Lei nº 438/ /91 de 9 de Novembro, goza entre nós de uma longa tradição jurídica, além de que, atenta a diferente organização judiciária dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos
(aqueles muito mais próximos das populações), ela se apresenta como mais adequada a assegurar uma mais fácil defesa dos direitos dos expropriados, ao menos quando se trata da fixação do valor global da indemnização. Ora, estes são valores capazes de legitimar constitucionalmente uma tal solução legislativa.
4. Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, para ser reformado em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade. Lx, 29.5.96 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa